quarta-feira, 18 de maio de 2011

O vazio de um mundo sem sonhos.


Como ser de liberdade, condenado a escolher seus próprios rumos e diretrizes, o homem não tem outra missão senão aquela que impõe momentaneamente sobre si mesmo.
Enquanto as provas são inerentes à vida, derivando diretamente dos desafios que ela a todos impõe, e ao passo que a expiação dos males está a cargo do automatismo da lei moral quanto física de causa e efeito, a tarefa missionária diferencia-se por sua dependência total da adesão voluntária.
Num sentido menos espiritual, como o da filosofia existencialista, o homem pode propor-se qualquer espécie de projeto de vida, sendo sua realização pessoal um subproduto da aplicação desse projeto. A desgraça, para a popular filosofia existencialista do século XX, estaria em não se possuir um projeto, situação na qual o homem, não tendo referenciais externos de julgamento, perderia a capacidade de valorizar e julgar os fatos de sua existência.
O que podemos aproveitar dessa filosofia, mesmo quando acreditamos em valores essenciais e conhecíveis, é a realidade psicológica dessa afirmação, uma vez que a grande descoberta do existencialismo está em saber que a posição do homem em relação ao mundo está na razão direta da forma como ele escolhe reagir e se relacionar com ele.
Ora, isso é perfeitamente admissível ao homem religioso, particularmente ciente da esterilidade da crença na ausência do compromisso. Ideias e valores têm a sua força na medida em que os assumimos e com a energia com que os assumimos. De outro modo não há ressonância entre a crença e a vida prática, entre o que aceitamos com a opinião e o que acolhemos com a vontade e o sentimento.
Nossa vida tem o sentido que produzimos, e tal é, em consequência, a importância dos projetos. É pelos nossos projetos que organizamos todo o nosso ser _ intelectual, volitivo e sentimental _ para o enfrentamento dos desafios do mundo. Sem um projeto, ou vários, nossa existência é meramente automática; a inteligência se limita a entender, sem criar; a vontade se restringe ao desejo, sem inflamar-se diante dos grandes desafios ou renovar-se para a persistência nos trabalhos árduos; e o sentimento, pobre e lastimável, atrofia-se em órgão destinado ao entretenimento, desperto somente por estímulo exterior e casual, perdendo toda a sua função dignificadora e embelezadora que, aplicada a um propósito qualquer, torna-o um sonho, um ideal.
O combustível do projeto idealizado para o futuro não demanda refinamento para dar partida no motor da vontade humana. A mais simples meta tem poder suficiente para organizar e focar o turbilhão dos desejos dissonantes em um objetivo de vida, ainda que temporário; o pensamento reage deixando de vagar em perturbação, e fixa-se alegremente nos planos e análises das condições de execução; o homem ontem perdido na sucessão das ideias e interesses desencontrados, mero receptor de notícia, estímulo e influencia, passa instantaneamente a produtor destas e de outras relações.
Imagine-se um homem que, assolado pelo desânimo da falta de perspectivas, tem toda a sua ação limitada à manutenção do corpo e à cata de distração que lhe mantenha o espírito longe do desgosto de pensar em seu estado. Ponha-se uma única meta de difícil realização a esse indivíduo e o veremos transformar-se como por encanto. Logo o cidadão é todo planos, fala de seus objetivos com empolgação, esquece-se do prazer imediato e poupa, ou estuda, ou se exercita em algum esporte ou arte. Visto de fora esse homem recebe com frequência críticas maliciosas por voltar suas forças para fins tão mundanos como a aquisição de um carro, o progresso na ginástica ou a conclusão de um pequeno curso, mas se suspeitassem dos benefícios que o mesmo colhe, se tivessem em mente que há pouco este alegre e dedicado indivíduo estava mergulhado em marasmo e talvez a beira da depressão, outra seria decerto sua atitude.
Qualquer cometimento sério é meritório, diríamos mesmo que é sagrado, pelos resultados que traz ao indivíduo que se lança ao trabalho. O milagre de resgatar uma vida do vazio e da paralisia, tornando-a útil à coletividade e saudável para o seu dono, é também um milagre da fé, visto que a fé é, entre outras, a forma básica da confiança e do comprometimento existencial consigo mesmo e com o mundo. Convença-se um homem de que o mundo está contra ele, de que todos os seus esforços não serão recompensados, de que ele não possui valor ou capacidade, e ele não alimentará sonho algum. Desperte-se nele, ao contrário, uma autoconfiança inabalável, fazendo desta criatura humilde o herdeiro da divindade, coloque-se diante de seu olhar um universo benigno que o ampara em todos os seus projetos mais nobres, e logo ele estará com a mente fervilhando das mais elevadas concepções.
Quando a fé míngua, o sonho esmorece com ela, e quando o sonho, que é o compromisso com a transformação, deixa de orientar o projeto de vida de um indivíduo, este perde a parte melhor da liberdade, a sua força criativa e expansiva. Resta somente uma liberdade ética, de escolher entre o certo e o errado, mas não há mais liberdade para crescer, para expandir-se.
         A conduta moral correta é por si só meritória, mas ela é improvável se não estiver constantemente impulsionada pelo espírito de sacrifício e dedicação extremos que somente a fé num projeto nobre proporciona. Por isso é tão importante ter-se um referencial; ele não constitui uma virtude por si mesmo, mas cria em nós um vigor, uma disposição psicológica e existencial para superar barreiras internas que antes pareciam maiores.
         É de pouca importância o resultado final de um programa grandioso. Se o sonho se realiza ou não, é questão secundária. O valor de sonhar está em fazer crescer diante dos olhos da imaginação o próprio valor, e com ele a própria responsabilidade. Não há que se desacreditar da importância da colheita, pois também ela é necessária para a economia do mundo, quanto para a do espírito, mas no estágio em que a humanidade se encontra o exercício é muitas vezes mais essencial do que os seus resultados, de modo que lançar-se a um objetivo fútil e banal agora prepara o homem para esforços maiores no futuro. Com que outro propósito poderia a ordem do mundo dispor-nos a tantas ocupações vãs? Por que afinal tem a Suprema Inteligência tanto gosto em deixar-nos entregues à nossa própria liberdade, se em todas as nossas ínfimas e simplórias atividades não estivéssemos também sutilmente envolvidos numa tarefa grandiosa?
         Tal tarefa não há de ser outra que a construção de nós mesmos, e para ela concorrem decerto todos os nossos esforços num cenário em que nem o mundo nem a humanidade parecem tirar grande proveito deles.
O filosofia moral do liberalismo (o político, não o econômico) diz que o valor de um homem está no grau de exigência que ele impõe sobre si mesmo. Se a exigência é mínima, o seu valor é equivalente, mas se nossa exigência for extrema, também elevado será nosso valor, pois nosso esforço produz sempre resultados proporcionais. Essa percepção coincide com a velha sabedoria das religiões e filosofias que pregam o desapego, considerando os frutos aparentes sempre como consequências condicionadas a outros fatores exteriores ao trabalho do indivíduo. Garantidos, no entanto, são os frutos interiores que toda atividade enseja pelo simples fato de nos ocuparmos dela com persistência.
A disciplina, a força de vontade, o conhecimento, o hábito, a habilidade, a simpatia, o gosto, o apreço e a sabedoria se adquirem com esforço, mesmo quando o propósito deste não está a altura de sua função engrandecedora do espírito. Por isso podemos dizer com desassombro serem as metas mais vulgares sumamente úteis para o crescimento interior.
Mas, ao passo que toda a atividade justa é proveitosa, os objetivos elevados guardam para nós recompensas ainda mais desejáveis. E se nos desembaraçamos de compromissos com os resultados, nada nos obsta a traçar limites cada vez mais altos às nossas exigências pessoais, já que a frustração pelo eventual insucesso deve desaparecer na medida em que dermos mais valor ao comprometimento do que aos seus produtos visíveis.
As pessoas mais exitosas no cultivo do espírito sempre foram as que se dedicaram aos ideais mais elevados. A arte, a ciência, a religião, a justiça, a humanidade, a saúde, a educação, o progresso, a ordem; estes os objetivos das almas que mais crescem aos olhos de Deus. O empenho de qualquer ação em prol destes fins exige uma cota extra de sacrifício, paciência, estudo, tolerância, devotamento e transformação íntima, de modo que a existência aparentemente mais fugaz e apagada aos olhos do mundo pode ter sido a mais radiante para a aquisição do patrimônio eterno. 
Além disso, o simples fato de almejar os objetivos mais elevados coloca a mente em estado diferenciado, minorando instantaneamente os malefícios da visão acanhada da vida presente e das circunstâncias isoladas. O ideal alarga os horizontes do futuro e enobrece o passado e o presente. As conquistas do homem tornam-se mais evidentes, e menos relevantes os seus vícios e misérias. 
A grandeza do espírito nunca é mais evidente do que quando nos deparamos com ideias e realizações de alta complexidade em tempos remotos. Imagine-se a complexidade da matemática, o talento do escultor, o gênio do político, a grandeza do santo de há dois mil anos, e nosso ser não pode experimentar senão assombro e admiração, reverenciando intimamente aqueles que com tão pouco tanto fizeram.
Quanto mais alto elevar-se nossa visão, mais nos obrigaremos a subir. Até o ponto em que nos parecerá viável desejar o que estas grandes almas desejaram. Se conseguirmos manter essa expectativa sobre nós mesmos, não de uma forma tirânica, mas com a consciência de que é uma meta auto-imposta, as nossas energias logo saberão organizar-se numa frequência correspondentemente mais intensa.

Um comentário:

  1. Este texto veio bem a calhar com meu momento. Uma fagulha se acendeu dentro de mim. Eu precisava ler isso, e hoje! Não por motivo de alguma desilusão, ou carência... ou algo que assim pareça... Mas sim, porque eu precisava encontrar novamente meu Norte.
    Estava cansada de sonhar, havia decidido parar de sonhar. Encarar a realidade nua e crua. Só seguir adiante. Também não é fácil. Mas é insossa, insólita. Muitas coisas são efêmeras. Como distinguir?
    Seu texto veio a calhar, nesse momento.
    Obrigada por esta postagem.

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