terça-feira, 8 de março de 2011

Visão a partir do centro da natureza: A “heresia” mística no segundo século do Protestantismo.

Jakob Böhme: sapateiro e visionário, considerado por Hegel o pai da filosofia alemâ
       Jakob Böhme não é um autor que dispense apresentações no Brasil. Ele influenciou toda a mística da Idade Moderna, da Maçonaria ao Espiritismo (via teosofia). Na Teologia ou na filosofia alemãs ele tem um papel de destaque, embora também marginalizado a partir do século XIX em função da predominância da “desmistificação”. Esse é, aliás, o problema com Böhme: ele era um alquimista, em parte um cabalista, e definitivamente um escritor esotérico; e não o ajuda muito dizer que ele era tudo isso “no bom sentido” das palavras. Nosso tempo simplesmente não o perdoa por associar-se a Paracelso e a uma linguagem bíblica profética e simbólica.
         Não obstante, Böhme foi um dos pensadores que abriu o mundo protestante para a revisão da ortodoxia luterana, dando fôlego à interpretações liberais, pessoais e plurais do Protestantismo que hoje se traduzem em ampla liberdade interpretativa, espiritualismo, inclusão de gênero, liberalidade política etc, dentro do ambiente ocidental, que de uma forma ou de outra é marcado pela vitória intelectual do Protestantismo sobre o Catolicismo.
Além disto, aquele que supõe ser um pensador irrelevante pelo simples fato de ele ter uma visão animista ou mesmo mágica do mundo, deve, logo de saída, eliminar de sua biblioteca Newton, Kepler e Bruno. Do contrário terá de aceitar que razão e fé, ao menos numa época mais eclética do que a nossa, conviviam harmonicamente, e completavam-se no exercício de revelação das leis naturais. E neste tocante seremos forçados a rever aquelas concepções que nossa cultura julgou por bem excluir sem um cuidadoso exame, observando-se, com isso, que há boas razões para considerá-las superiores, em diversos aspectos, àquelas que prevaleceram.
Jakob Böhme é um desses pensadores que indubitavelmente pesou na balança histórica da formação do espírito moderno, seja pela sua atuação no campo da filosofia, exaltando o estudo da natureza, seja pela sua atuação no campo da teologia, apresentando uma concepção filosófico-mística de Deus em confronto com a dogmática estabelecida por Lutero e dando importantes passos para conciliar o determinismo protestante com a noção de liberdade individual. Tal tendência para o pensamento sintético e o fato de ter escrito em alemão garantiram-lhe o reconhecimento e muitas vezes o título de primeiro filósofo teutônico.
O sapateiro de Görlitz, entretanto, jamais pretendeu elaborar um sistema de ciência, filosofia ou teologia, tendo sido arrastado a esse ministério por força de suas visões místicas espontâneas iniciadas pouco após o término de seu aprendizado na guilda dos sapateiros e que culminaram numa invocação para o início imediato de seu ministério como escritor, em 1610. A primeira destas visões se deu na forma de um homem que posteriormente Böhme identificaria como um anjo, a lhe profetizar a sua missão. Eis a descrição do místico e amigo Franckenberg acerca desta primeira revelação de Böhme:
Enquanto ele dava conta de fechar a loja após a última encomenda, ouviu um homem chamá-lo pelo seu nome de batismo, o que ninguém ali deveria saber. Encarou o homem de porte vistoso e olhos brilhantes, que lhe disse: Jacob, você é pequeno, mas será grande e tornar-se-á uma pessoa e um homem totalmente distinto, de modo que o mundo se espantará contigo! Em vista disso seja piedoso, tema a Deus e honre a Sua palavra; de resto leia sempre a sagrada escritura, de onde terás consolo e orientação, pois você terá de sofrer muita miséria e desolação, mas tem confiança e firmeza, porque tu és amado de Deus e ele te abençoa!  O homem desapareceu das vistas de Jacob, mas ele jamais se esqueceu de sua feição ou de seu aviso...
Terminada a sua aprendizagem de sapateiro, aos 25 anos, ele teve outra visão: Foi conduzido de Görlitz ao centro da natureza, de onde vislumbrou o móvel do mundo e encontrou muitos amigos e seres simpáticos desconhecidos.[1] *

         Böhme não era douto, senão de suas intuições originais, mas, apesar disso, não era tampouco um ignorante. Conhecia muito bem a Bíblia e leu Paracelso, Schwenckfeld e Weigel. O diferencial dele em relação à mística, o que faz de sua doutrina uma teosofia, é o fato de que ele não foge do mundo, vendo nele, ao contrário a “carne de Deus.”[2]
         O transporte místico de Böhme ao “centro da natureza” é fenômeno incontroverso na literatura religiosa. Paulo parece tê-lo experimentado (Segunda aos Coríntios: 12), Plotino escreveu um extenso tratado sobre como atingir o transporte místico, santos de várias religiões o relatam, e Swedenborg afirmava obtê-lo sem grande esforço. Todos esses privilegiados garantem que a união mística transforma radicalmente a compreensão que se tem da realidade. Mas o que mais chama atenção no relato de Böhme é o ter encontrado muitos seres amigos e simpáticos, embora desconhecidos.
         Esse relato é interessante por estar livre da interpretação simbólica que os santos católicos geralmente empreendem através dos arquétipos dos santos e anjos, e que alguns místicos protestantes repetem em certa medida. A descrição de Böhme, ao contrário de suas teorias, parece estar purificada de simbolismo esotérico. Também é peculiar o fato de não haver figuras conhecidas, sem que isso impedisse a automática identificação, por simpatia, com esses seres amigos. A memória do inconsciente profundo, responsável pelos registros emotivos, ou o simples processo de sintonia lhe conduz a esta conclusão que o entendimento não sabe discernir analiticamente. Não é este o fenômeno de visualizar a fisionomia de um completo estranho e nele reconhecer um amigo, ou o processo análogo pelo qual dois desconhecidos “reconhecem-se” instantaneamente como amantes?
         A sensibilidade para esse tipo de percepção é tão rara quanto bem aceita em linguagem científica, mas a literatura e o instinto popular desimpedido depõem a favor dela. Místicos famosos como Dante e Kepler encontraram em sonho seus guias e patronos espirituais. Virgílio no caso do primeiro, Arquimedes no segundo. E em ambos os casos os ilustres escritores afirmam ter experimentado aquela tomada de consciência que só o sonho ou a visão mediúnica proporcionam, de ver-se alguém pela primeira vez e saber intimamente de quem se trata, e de que este é um amigo de longa data.
         Mas voltando a Böhme, seu mérito está principalmente na forma como seguiu a risca a orientação recebida através de suas visões. A tradução para linguagem mundana desta experiência de vislumbrar o fundamento de tudo é uma filosofia mística.
Para o sapateiro, todo ente é um universo completo em si mesmo, e guarda a “mensagem” ou a “assinatura” de suas origens. Assim, a pesquisa científica de qualquer elemento natural é autoconhecimento, e o autoconhecimento revela, por sua vez, as leis intrínsecas da natureza.
         A mística de Böhme é um tratado especulativo sobre um elemento imponderável, a vontade, não um dizer assistemático e obscuro sobre algo desconhecido. Naturalmente que não se trata também de uma filosofia crítica, pois o conhecimento da vontade divina é dado por revelação imediata que, embora universalmente acessível, nem sempre está concretamente presente em todos os indivíduos. O ar de mistério dessa filosofia provém da incapacidade de conceituar a vontade, mas ela é sempre perseguida por Böhme até os limites da cognoscibilidade.
         Na sequência de seus seguidores, como Leibniz (em parte), Goethe e o Idealismo, a vontade torna-se a matéria-prima do mundo, o intelecto é a ordem que estrutura essa vontade em inúmeras formas e assim a mística assume o duplo papel de reconhecimento da assinatura de Deus em tudo (processo intelectual idealista) e escolha pelo essencial, liberdade de ser real (processo voluntarista místico). Assim descreve ele a liberdade da vontade:
Mas isso deves saber, que no regimento da tua alma tu és o senhor de ti mesmo; não se levanta nenhum fogo a partir do círculo do teu corpo e espírito, tu o despertas por ti mesmo. Verdadeiro é isto, todos os teus espíritos fluem para ti e se elevam de ti; e na liberdade um espírito tem mais força em ti do que outros.
Se uma fonte do espírito se eleva, isto não está oculto à alma: Ela pode imediatamente acordar as outras fontes do espírito, que se opõem ao fogo insurgente, e podem apagá-lo. [3]

         O que ele chama de espíritos são os ânimos da alma. Nenhum deles se levanta sem que o indivíduo o saiba. Não há como se esquivar da responsabilidade sobre o ânimo, que é o fluxo inconsciente da vontade, pois nós não apenas o identificamos, como podemos usar outro ânimo consciente contra aquele que não nos convém. É a mais pura psicologia analítica, não espantando que Jung fosse um admirador da linguagem alquímica.
         Os ânimos se levantam sem aviso, pois são muitos e muitas são as suas causas. Motivos corpóreos, atávicos, vícios, memórias conscientes ou não. Mas o espírito pode despertar de seu estado passional, em que os ânimos vem e vão sem controle, para o estado “vivo”, em que o ânimo é criado ou modelado conforme o esforço e buscando certos fins.
Esse despertamento é mais propriamente um renascimento, na linguagem dos místicos, e o seu outro nome é fé. A fé não é, portanto, uma crença em conteúdos dogmáticos ou históricos, podendo-se inclusive submeter estes à crítica. Ela resume-se numa transformação do caráter, numa decisão por assumir o controle da vida, ou melhor dizendo, dos conteúdos emotivos e volitivos da alma, direcionando-os com zelo e devoção. Devotamento, aliás, é a palavra chave para a fé verdadeira, pois se ela não depende da crença em dogmas, alinhando-se antes como estado existencial, a sua relação com o divino deixa de ser teórica para ser vital. A fé viva é uma postura de doação, ato livre de oferta das forças, pensamentos, sentimentos e ações do indivíduo.
         A fé, ou renascimento, como tal exige muito mais do que uma adesão à doutrina Cristã (ou possivelmente outra religião), senão uma completa e voluntária transformação íntima, que não se resolve num instante, precisando ser sustentada com lutas e sacrifício a longo prazo. Böhme está, assim, na linha dos pietistas que iniciaram um processo colossal de revisão do Protestantismo. Em oposição à fé que salva sem obras, e que já naquele primeiro século pós-Reforma produziu uma certa complacência moral, eles pregavam a necessidade da reforma íntima, a importância do livre-arbítrio e da luta constante contra o mal moral.
         Essa luta da vontade consigo mesma pelo controle do seu ânimo, dos seus sentimentos, é dificultada pelos hábitos ancestrais do homem, já que ele esteve quase desde sempre entregue à dissolução e dispersão provocada pelas paixões. As paixões em si não possuem tanta força, mas elas geram imagens que as estimulam ainda mais. No animal as paixões são limitadas à necessidade e sua satisfação, mas no homem, como a alma quer satisfazer suas necessidades com mais urgência do que no reino animal, criam-se imagens, desejos, que estimulam a paixão para muito além de sua força natural. A imagem é o estado normal da mente humana, desacostumada a reflexão profunda, à disciplina e educação dos sentimentos e pensamentos, e assim a mente está constantemente tomada por imagens que estimulam a sensualidade, a violência, o orgulho, a ganância, o ócio, e assim por diante.
A imagem possui um imenso poder, pois além de a mente estar mais habituada a ela do que ao pensamento livre, imparcial e regrado, e de ela estar já perfeita e simbioticamente associada a energia emocional que quer estimular, a sua afluência à mente é ininterrupta, pois a mente entende que precisa ocupar-se sempre de algo, evitando com isto o entorpecimento da vida. O mecanismo natural e salutar que dificulta a fixação de idéias estimulando a troca emocional e a dinâmica mental torna-se empecilho ao movimento posterior de focalização do espírito e educação sentimental, mas toda passagem bio-psicológica para um nível superior é marcada pelo confronto entre o velho, estabelecido, e o novo, que precisa estabelecer-se com esforço.
         As duas fontes de orientação do espírito, razão e vontade/sentimento, conduzem a Deus. A primeira revela em tudo a assinatura do Criador, e persuade o homem pela inteligência a adotar o bom caminho e a conhecer o livro da natureza, autobiografia e romance de Deus. A segunda revela no interior do homem o poder de Deus, como conhecimento intuitivo e imediato do “fogo divino” que há em tudo. Se esse poder estiver passivo, será regido pelos desejos de prazer e poder em suas múltiplas variações. O homem pode, entretanto, tomar-se a si mesmo a partir do uso ativo desse mesmo poder, deixando de ser escravo das imagens produzidas pelas paixões, e emergindo do caos e do turbilhonamento para a ascensão gloriosa de seu ser como vontade individual, focada na ação e na criação, à semelhança de Deus.

*Todas traduções são nossas.

Bibliografia:

BÖHME, Jakob. Schriften Jakob Böhmes. Organizador, Hans Kanser. Leipzig: Im Insel, 1923.
BERDIAEFF, Nikolas. Jakob Boehme Mysterium Magnum: Études sur Jakob Böhme. Paris: Aubier, 1945.


[1] Abraham von FRANCKENBERG. Lebensbeschreibung Jakob Böhmes. Schriften Jakob Böhmes (S. J. B.) Pg. 24-25.
[2] Nikolas BERDIAEFF. Études sur Jakob Böhme. Pg. 7.
[3] Jakob BÖHME. Aurora. S. J. B. Pg. 156-157. 

sexta-feira, 4 de março de 2011

Carta ao Materialismo

           É a filosofia materialista a causa do consumismo, do hedonismo e de uma atitude existencial pautada na superficialidade? Esta a pergunta que exige resposta, em vista do recente artigo “Materialismo é Consumismo?”, de Daniel Alves da Silva Lopes Diniz, publicado no site www.abiblioteca.webs.com sobre a posição Espírita acerca da filosofia materialista. Escrevi ao site pedindo um direito de resposta, e fui atendido positivamente, confirmando minha impressão inicial de tratar-se de um espaço de debate onde se destacam a civilidade e a probidade.
Antes de qualquer pormenor gostaríamos de afirmar enfaticamente: o materialismo não tem ligação necessária com o consumismo, a falta de ideais e valores, ou com o autoritarismo dogmático; mas tais relações são possíveis e frequentes, aumentando na proporção direta em que o seu proponente possua mais fervor doutrinário e menos sobriedade filosófica. O mesmo se pode dizer da religião em geral; sua relação com a superstição, o obscurantismo e o moralismo pedante não é obrigatória, mas lamentavelmente rotineira.
            Ao apresentarmos uma forma de pensamento é necessário estabelecer o ponto de vista segundo o qual se a julga. É o da teoria pura? Então cabe discutir se há falácias envolvidas, quais são as premissas e axiomas a partir dos quais se desenvolvem os argumentos. É o da manifestação social, na forma de credo ou doutrina? Então nos cabe discutir as consequências dessa doutrina para a vida prática. São esferas distintas onde cabem críticas igualmente independentes.
            No artigo publicado pelo referido site, pareceu-me haver uma correta distinção entre a crítica filosófica do Materialismo, apresentada por mim no livro Genealogia do Espírito, e a crítica ao materialismo como movimento social e formador de padrões de comportamento, feita por Suely Schubert em seu livro Mentes interligadas e a Lei de Atração. Mas mesmo tratando-se de recortes, tanto de meu texto quanto daquele referente à autora, é digno de nota o fato de o Materialismo não ser apresentado de forma jocosa. E a má impressão que o segmento possa provocar não me parece justificada diante dos textos na íntegra. A título de esclarecimento, portanto, confirmo o tom condenatório dos trechos destacados, sem que com isso admita, no todo das obras, qualquer discriminação ou condenação do Materialismo.
            Prefiro, de toda maneira, falar somente sobre o escrito do qual sou autor e pelo qual sou responsável, pois somente em relação a ele posso proferir um juízo definitivo. Em Genealogia do Espírito não se pode encontrar uma passagem que discrimine o Materialismo, ou qualquer outra doutrina. Isso seria contrário aos fundamentos basilares do Espiritismo, que pregam o respeito a todas as crenças sinceras.
            Isso não significa que eu me abstenha da crítica. Eu as tenho, aliás, em quantidade, como também as tenho para com diversas religiões, ideologias políticas e idéias independentes, o que inclui o próprio Espiritismo; e estou convencido de que a crítica é o nosso instrumento mais eficaz de aproximação, desde que tenha sempre um cunho construtivo. Igualmente crítico é o referido artigo “Materialismo é consumismo?”, mas a crítica severa que ele impõe aos textos analisados e ao Espiritismo enquanto tal é, não obstante, respeitosa e civilizada. O que não considero apropriado em nenhuma circunstância é o desprezo pelas e a condenação das idéias alheias, e isso jamais fiz conscientemente.
            Minhas ressalvas filosóficas quanto ao Materialismo se resumem no fato de que ele se cristalizou como doutrina dogmática, especialmente na associação com o Cientificismo e o Ceticismo dogmáticos. Este é um acontecimento ideológico que em nada depõe contra o Materialismo crítico de pensadores conscientes e moderados como Herbert Spencer e Carl Sagan. O Socialismo igualmente desenvolveu-se como ideologia dogmática em sua forma marxista, pregando uma distinção de classes sociais, uma boa e outra maléfica, à semelhança de um racismo transferido para a esfera social. Isso não significa, também, que devamos condenar o Socialismo como filosofia, conforme foi proposto com muita correção e tolerância pelos filósofos de Frankfurt, ou pelos espiritualistas franceses da era pré-Marx. O problema todo está em se pregar aquilo que não se faz. O Materialismo é uma doutrina, como o Espiritismo, o Socialismo, o Budismo, o Catolicismo e até mesmo o Ceticismo, enquanto este último tem uma forma normativa e persuasiva; e toda doutrina é construída pela razão humana, limitada pelas nossas carências e condicionamentos. Nenhuma doutrina teórica pode afirmar-se na posse da verdade, em detrimento de outras elaborações que a interpretam de diferente maneira. Todas representam esforços humanos na busca pela verdade; são, em termos de filosofia da ciência, especulação.
            Qual é a origem do Materialismo? É a mente humana elaborando uma concepção de mundo a partir de sua experiência, inclinação pessoal e vontade. Qual é a origem do Espiritismo? Exatamente a mesma; só mudam a experiência, a inclinação pessoal e a vontade, que direcionadas para outras vivências e interesses justificam outra doutrina. Qual é então o problema com o Materialismo? É o fato de ele comumente negar esta origem na mente humana, como proposta interpretativa da realidade, e afirmar-se, ao contrário, na posse de prerrogativas especiais, geralmente baseadas no respaldo da ciência. A ciência, contudo, não é materialista, e sim neutra e imparcial, independente da doutrina filosófica que queira figurar o mundo como puramente material ou povoado de espíritos. Ao tentarem se apropriar do método científico como se fosse este um produto da filosofia materialista, os materialistas cometem um crime contra a ciência e contra sua própria doutrina, que perde a dignidade filosófica de que goza por direito como uma proposta racional de interpretação do mundo.
            Assim pervertida, a doutrina materialista assemelha-se ao erro cometido pela instituição da Igreja, que, ao monopolizar a interpretação da revelação bíblica, o modelo de acesso à verdade reconhecido na Era Medieval, condenava à marginalidade todas as demais idéias. Mas não é preciso que se proceda dessa forma. As religiões podem respeitar-se no campo da interpretação das Escrituras, reconhecendo-se limitadas ao campo da proposição de teorias religiosas, como vem acontecendo há alguns séculos. O Materialismo, igualmente, pode conviver com outras filosofias que busquem interpretar os dados da ciência, ao invés de condicioná-los ao seu esquema doutrinário. A este Materialismo que reconheça a possibilidade de uma doutrina filosófica alternativa, mesmo que a considere pior do que ele mesmo, só poderíamos render louvores. Ao Materialismo que execra e espezinha a experiência pessoal de fé e sentido das demais doutrinas, que acredita-se o intermediador oficial entre ciência e filosofia, tal qual a Igreja atribuía-se a exclusividade da interpretação bíblica e da intermediação entre Céus e Terra, verdade e teoria, contra este têm de se revoltar todas as pessoas intelectualmente honestas.  
            O que fazer quando as sumidades e as figuras mais respeitáveis do Materialismo atual, como Richard Dawkins, adotam exatamente a postura fundamentalista e dogmática de condenar “com respaldo da ciência” outras filosofias que não as suas? E o que pensar quando os partidários do Materialismo aderem em massa a este tipo de ditadura ideológica?
            Estamos no século XXI! Os embates entre filosofia crítica e ideologia já foram travados. A ciência já desceu de seu pedestal positivista para o papel de formuladora falível de hipóteses a serem confrontadas com a experiência (Popper). Não é mais cabível o materialismo ideológico, o único que me permito criticar. Nem se justificam mais as idéias retrógradas de que a arqueologia desmente a Bíblia (relato essencialmente simbólico e desde sempre desprovido de função científica), de que o darwinismo comprova a inexistência de Deus ou de forças vitais que possam atuar em paralelo com o processo de seleção natural, de que o Big Bang foi provocado pelo acaso...
As teorias científicas versam sobre nossa experiência sobre o mundo, não sobre questões filosóficas de por que ou para que ele funciona desta ou daquela forma. As doutrinas filosóficas, por outro lado, têm o direito e o dever de elaborar respostas especulativas para aquelas e outras questões que extrapolam as possibilidades de observação. E nesse âmbito todas as propostas devem ser respeitadas e criticadas com base em sua lógica interna e adequação à experiência. Jamais pode uma doutrina apropriar-se da ciência, ou da revelação religiosa, ou de qualquer outra esfera de conhecimento, para sustentar uma autoridade inquestionável em detrimento de outras. Mas todas as doutrinas, infelizmente, o fazem, pois a manutenção da postura crítica é um esforço constante e desgastante demais para a maioria dos partidários de qualquer uma delas. Devemos temer o olvido e o relaxamento crítico por parte de qualquer doutrina, mas especialmente quando ela está culturalmente associada a instituições de poder político ou um programa cultural reconhecido como foro privilegiado de julgamento da verdade. Ocorre de o Materialismo ser a doutrina especulativa mais próxima, na mentalidade geral, da ciência, que é o nosso foro privilegiado de julgamento na Era Moderna. Somente por isso gera-me ele mais desconforto do que outras doutrinas especulativas desprovidas de prerrogativas especiais.
            Minha opinião sobre os materialistas? São representantes de uma doutrina racional e sóbria, dedicados ao progresso do saber, mas constantemente ameaçados pela tentação dogmática; e isso é reforçado pela crença geral de nossos tempos de que a ciência é materialista, assim como já foi dominante a crença de que o Cristianismo fosse católico. O materialista não é per si desprovido de valores morais, mas está mais sujeito ao desespero existencial, ao niilismo e ao cinismo do que pessoas religiosas, já que crença numa objetividade moral imprime nos últimos uma forte sensação de responsabilidade diante de um juiz absoluto. Contra todos estes revezes deve e pode conscientizar-se e preservar-se.
            Acredito sinceramente ser possível defender a convicção espírita e empreender crítica ao materialismo, na medida em que temos o direito de expor de modo argumentativo a nossa posição, nossos agrados e desagrados por estas ou aquelas idéias. Esperamos receber críticas semelhantes dos materialistas, uma vez que, na condição de buscadores da verdade, tenham interesse em nos esclarecer quanto ao seu ponto de vista, raciocínios e vivências. A defesa de nossos pontos de vista e a avaliação crítica das perspectivas alheias não implica, contudo, que não possamos nos valorizar mutuamente, aproveitando os esforços coletivos rumo ao progresso do saber.