quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Problema no estudo das religiões: retornando ao Budismo.


          O estudo das religiões é um dos campos mais “arriscados” da atividade intelectual humana. Impossível participar dele sem provocar desconforto e incômodo em pessoas ou grupos, o que pode ganhar proporções indesejadas devido ao grau de valor agregado aos objetos e princípios religiosos.
            Esta página tem recebido a sua cota de crítica e ataques neste sentido. Ataques que fizemos por merecer, adentrando no terreno de inúmeras crenças, e sempre com uma abordagem crítica e investigativa. É com naturalidade que recebemos e-mails de católicos, materialistas e diletantes preocupados com nossa interpretação do Judaísmo ou do Islamismo, e, sobretudo, de defensores do Budismo, indignados com a forma supostamente agressiva com que temos tratado as doutrinas alheias.
           É de suma importância que a sociedade em geral, e a brasileira em particular, comece a se inteirar do movimento global de estudos e diálogo interreligioso, sem o que não poderemos passar dessa fase mais particularista das religiões entendidas como ilhas isoladas. Falar delas, nessa perspectiva, estaria de fato reservado não só ao especialista naquele credo específico, como também se exigiria a adesão de fé sem a qual qualquer juízo seria por demais alienígena.
           Para que o leitor entenda melhor o ponto em questão, no entanto, é preciso mencionar os ataques que nos foram dirigidos e a sua motivação. Em resumo, quatro pessoas muito qualificadas (do ponto de vista da terminologia e conceitos budistas)  e dois simpatizantes se sentiram indignados com nosso texto anterior, Budismo: o cinismo compassivo.
            Expor essas críticas é importante para que futuros leitores possam julgar melhor a pertinência ou não do texto que apresentamos anteriormente, e, acredito, a discussão é perfeitamente cabível para os outros trabalhos aqui apresentados, os quais lidaram com o Judaísmo, o Islamismo e outras grandes religiões.
O ponto central de nossos interlocutores budistas e simpatizantes do Budismo é: “esta análise não corresponde ao cânone budista, nem ao credo da maioria dos budistas. Sua visão é absolutamente ocidental.” Um argumento simples e direto, imbuído de importantes conotações. Nossa reação a esse posicionamento – nas diversas formas em que nos foi apresentado – foi: “Ok, vocês estão certos, mas nunca quis apresentar nenhuma religião alheia como ela é, senão interpretá-la. E sim, meu ponto de vista é absolutamente ocidental, mas isso não o invalida automaticamente.”
De fato, nosso interesse jamais foi o de retratar bem esta ou aquela tradição religiosa. Para isso existem os livros de história das religiões e os autores gabaritados de todas as tradições. Quem queira saber algo sobre o Budismo enquanto credo deve ler o Dalai Lama, Suzuki ou Tich Nhat Hanh., e quem queira conhecer o fundamento filosófico do Budismo deve buscar os maiores intelectuais especializados no assunto. Jamais pretendemos preencher esse requisito. Quem lê um texto sobre o Budismo num site chamado “Filosofia e Espiritismo”, busca saber o que a Filosofia e/ou o Espiritismo pensam sobre o Budismo.
Sendo declaradamente externo, nosso ponto de vista poderia ter dois objetivos: 1- uma aproximação do Budismo (Judaísmo, Islamismo, etc.), com vistas a compreendê-lo em sua estranheza e diferença; 2- um juízo externo sobre ele. Nosso texto claramente segue a segunda orientação, e o fato de ela ser vista como agressiva e errada é atestado da precariedade dos estudos científicos e filosóficos sobre as religiões dentro da cultura brasileira.
Emitir julgamentos de um ponto de vista externo, sem mergulhar no universo de ideias e crenças alheias, é uma atitude tipicamente ocidental, mas não digna de condenação, pois esse procedimento nada tem de preconceituoso ou tirânico. Ele constitui simplesmente o que chamamos mentalidade científica ou crítica, e significa precisamente que devemos cancelar nossos preconceitos, inclusive positivos, e falar livremente, desde que de modo rigoroso. O incômodo com esta abordagem externa e crítica de uma religião está associado à ideia de que ela parte de uma visão religiosa que tenta engolir outra. Definitivamente este não é o caso, e as reações de horror ao criticismo no campo religioso são, de resto, injustificadas.
O ponto de vista ocidental não é, como pensam os adeptos e simpatizantes de outros credos, necessariamente cristão, e mesmo que o fosse, isso não significa que ele seja imune ao criticismo do Ocidente. Muito mais do que uma perspectiva cristã, a mentalidade ocidental está enraizada no debate e na crítica que deram luz à ciência e à filosofia. A discussão grega é uma essência ocidental mais forte do que o Cristianismo, prova disso é a fase agnóstica e ateísta sem precedentes que a cultura ilustrada ocidental vive há duzentos anos. De um modo geral, Jesus está quase exclusivamente na boca do homem comum, ao passo que a casta intelectual com frequência fala mais em Marx e Nietzsche.
O Cristianismo não foi poupado à crítica mais do que o Budismo ou o Islamismo. A bem da verdade, ele foi atingido de forma mais dura e sistemática do que qualquer outra religião “distante”. De Laplace a Sagan, de Hobbes a Nietzsche, o Cristianismo enfrentou seus mais duros adversários dentro da própria tradição ocidental. As demais religiões não devem esperar, agora que estão plantadas no seio de uma comunidade global, ataques menos duros e menos frequentes.
Honestamente, nosso ataque não foi tão incisivo que justificasse qualquer reação, uma vez que nos esforçamos para deixar claro o tom amigável e respeitoso de nossa interpretação do Budismo. Em verdade, eu não havia imaginado ser um ataque até registrar o incômodo por parte desses fiéis e simpatizantes. Não temos qualquer dúvida de que algumas das pessoas que se indignaram com nosso texto estão em perfeita paz com Marx, que condenou todas as religiões como ópio do povo, ou Freud, que a considerou uma completa e infantil ilusão. Incomoda muito mais uma crítica leve partida de um confesso admirador do que uma crítica devastadora partida de um materialista anti-religioso. Que seja assim é de lamentar, pois isso mostra que as religiões preferem se desentender entre si do que com os seus adversários declarados.
 O engano que originou a indignação de nossos interlocutores está mais, como seu argumento demonstra, numa concepção sociológica sobre a religião. “A de que nossos argumentos não correspondem ao cânone, nem à crença da maioria dos budistas.”
Convertendo esta afirmação para a realidade ocidental nos damos imediatamente conta de sua improcedência. O seu equivalente cristão seria: “Tua interpretação do Cristianismo difere dos dogmas da Igreja de Roma, portanto é errada.” Precisamos de pouco esforço para rejeitarmos como absurdas exigências deste tipo.
Em primeiro lugar essa posição exclui imediatamente uma fatia expressiva da cristandade, os protestantes, talvez também os ortodoxos, e certamente os movimentos recentes como o Espiritismo, cristãos sem igreja, etc. Seria também grosseiro inferir que o número de adeptos do catolicismo garante que a sua interpretação do Cristianismo seja melhor do que a de qualquer outro grupo. Na verdade, nada impede que seja a pior, e muitos protestantes se basearam neste argumento para confrontarem a Igreja e os problemas do clero.
Para evitar a disputa no campo do sectarismo inútil, temos de nos ater puramente aos argumentos, sem forçar leituras oficiais e confessionais como se elas próprias fossem um argumento.
Mas, então, poder-se-ia alegar que há certas unanimidades inquestionáveis que caracterizam o Budismo, independente de quaisquer variações. Uma destas unanimidades seria o ateísmo, que criticamos em nosso artigo sobre o Budismo.
Novamente, convém aplicar o mesmo argumento ao caso ocidental. Afinal, a unanimidade absoluta que caracteriza a fé cristã, na visão da maioria dos cristãos, é a divindade de Cristo expressa no dogma da Trindade. Mas, para os que ainda não o saibam, o Espiritismo, o unitarismo e alguns grupos menores de dissidentes cristãos combatem mesmo esse princípio, além de inserirem elementos também repudiados pela maioria, como o livre-arbítrio radical (pelagianismo), a reencarnação, etc. Esse exemplo, do qual há também similares no Budismo, no Judaísmo ou em qualquer outra religião, mostra que é sempre possível uma “outra” versão da mensagem fundamental de uma tradição, inclusive para alguns de seus próprios adeptos e praticantes, o que nos deveria levar, segundo Erasmo de Rotterdam, à completa liberdade interpretativa das escrituras.
Esta outra versão, contudo, poderá ser tão verdadeira quanto as versões mais populares e predominantes, sendo, não obstante, uma versão dogmática, já que o dogma não é privilégio da maioria. Daí a necessidade de diálogo franco e estudo imparcial das religiões.
Contrariamente à política de indiferença entendida como obrigatória, queremos fazer justiça às tradições que nos cercam e muito nos interessam. E fazer justiça não implica em aceitação passiva ou silêncio respeitoso diante do discurso alheio, não importa qual ele seja. Às vezes é preciso levar questões e problemas à baila, confrontar algo estranho ou mal esclarecido, e tomar posição, assumindo o risco de errar. Isto não significa que não estejamos dispostos a receber e aprender com uma vasta e, para nós, ainda muito desconhecida realidade cultural. Mas podemos e devemos fazer esta recepção de modo crítico, consciente e sem abrir mão de nossos próprios princípios.
Temos ainda de chegar à fase aberta do diálogo entre as religiões, para que possamos lidar com cada uma delas com a intimidade que se fala a um amigo, sem medos e pudores excessivos, sem recriminações mútuas do tipo “tu não tens o direito de falar assim comigo.” Precisamos urgentemente ter o direito de falar abertamente uns com os outros se quisermos nos entender. As religiões são velhas o bastante para que as tratemos como adultas, sem a preocupação permanente de só lhes dizer o que lhes é agradável. Do contrário nosso diálogo só vai até o ponto que no fundo não nos interessa. Eu falo de mim, tu falas de ti, e não podemos expressar o que pensamos um do outro. Um noticiário de curiosidades incapaz de nos envolver.
Para não nos alongarmos em demasia, cabe ainda tratar de modo rasteiro da questão do ateísmo budista. Como nosso artigo expressou, não nos opomos à uma tendência ateística no Budismo, nem deixamos de notar que ela é mais forte do que em qualquer outra religião. Só nos reservamos o direito de tomar parte da discussão ao lado de alguns pesquisadores (budistas ou cientistas da religião) que veem no Budismo apenas um meio-ateísmo, ou, como dissemos, um ateísmo epistemológico, o que vale dizer, um agnosticismo radical.
Nenhum registro das palavras do próprio Buda se assemelha ao materialismo ou a qualquer forma de ateísmo ocidental, mas sim fala de uma inexistência de nossos objetos mentais, incluindo Deus ou os deuses, mas também o mundo, os átomos ou qualquer outra coisa. O nada Budista também não se compara com a noção ocidental de um nada metafísico, um “anti-ser”, mas é o que autores de língua inglesa competentemente identificaram como um no-thing (nada em inglês é não-coisa). Isso não difere muito do que inúmeros pensadores ocidentais tinham a dizer sobre Deus, e a filosofia sempre preferiu termos como absoluto, incondicionado, inefável, a termos bíblicos como “O Senhor”. Não obstante, a filosofia ocidental não é menos interessada em Deus do que a religião ocidental (aqui voltamos ao problema da dupla origem do Ocidente: grega e judaica).
            Também concordamos com a percepção de inúmeros estudiosos da religião que, como Donald Wiebe, identificam elementos decididamente místicos e panteísticos no Budismo. Para este autor, o Budismo de Buda pode até ter sido algo como uma não-religião, uma filosofia ou método que conduz ao agnosticismo e a um certo ateísmo, mas o Budismo como é praticado pelas correntes contemporâneas tem apenas um eco intelectual deste ateísmo.
Nas palavras dele: “a crença da maior parte dos budistas está geralmente permeada de crenças pré-budisticas”.[1] (21) Isto quer dizer, animismo, xamanismo, yoga, I-Ching, magia, cerimonialismo confuciano ou taoísta, formas diversas de “espiritismo” (koreano, japonês, birmanês) etc. De modo que é esquivo e duvidoso apontar para o Budismo como doutrina inteiramente ateísta.
         Acresce a isto que uma definição geral de religião é virtualmente impossível se não considerarmos o Budismo como estando referido a nenhum sagrado transcendente. A nenhum absoluto em nenhum aspecto. Isso, no entanto, não parece ser uma ameaça tão séria, e pelas razões que expusemos é aceitável continuar com o tipo de postura que aqui assumimos, a de conectar as religiões a uma noção maior de espiritualidade e religiosidade humana. Esta estratégia pode até não ser muito frutífera, mas se der apenas um fruto, ele será muito mais saboroso do que simplesmente reconhecer as diferenças entre as religiões, aquilo que as separa.

Bibliografia: WIEBE, Donald. Religião e Verdade. São Leopoldo: Sinodal, 1998.


[1] WIEBE, Donald. Religião e Verdade. Pg. 21.