sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O pensamento no Antigo Egito

A primeira tarefa de uma filosofia que almeja abranger as origens históricas do pensamento humano é o estudo dos povos primitivos em seus aspectos psicossociais. Para tanto é preciso que nos debrucemos demoradamente sobre a vida do homem primitivo, como o fez André Luiz em Evolução em dois Mundos, seguindo-se com não menos paciência ao estudo dos primeiros antigos, e particularmente dos egípcios.
Infelizmente, contudo, a pesquisa de tais eras primigênias da humanidade é muito difícil e sujeita a diversas imprecisões, motivo pelo qual só muito modestamente arriscamos juízos sobre elas.
Mas como as pesquisas progridem também neste campo em passo satisfatoriamente acelerado surgem há todo momento novas informações e bancos de dados.
No caso da egiptologia, o melhor manual de referência é o Lexikon der Ägyptologie, organizado pelos célebres institutos da Suíça e da Alemanha com grande participação de universidades da França, da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, o que resume basicamente todos os institutos sérios de egiptologia do mundo. O léxico tem, portanto, a vantagem insuperável de reunir virtualmente todos os institutos egiptológicos do planeta, de maneira a potencializar ao máximo o crivo crítico dos verbetes, já que não são produzidos conforme o olhar de uma escola específica, sendo antes fruto do trabalho coletivo de toda a humanidade.
Espelhando esta vocação internacional e universal, o léxico tem verbetes nas três línguas principais em que a pesquisa em egiptologia é praticada: alemão, inglês e francês, tendo sido os verbetes divididos segundo o grau máximo de especialidade nos respectivos assuntos.
 Assim, os alemães e suíços se incumbiram principalmente da religião e filosofia, os franceses das questões sociais e cotidianas, os britânicos e americanos da tecnologia e economia egípcias, seguindo a ordem de interesses e competências de cada instituto. 
O resultado é este fascinante léxico de 7 volumes e mais de duas mil e oitocentas páginas que é atualizado a cada três décadas. E embora a versão que estudamos seja a de 1975, é provável que as maiores mudanças desde então tenham sido no sentido de achados materiais e arquitetônicos, ao passo que a papirologia e as descobertas arqueológicas envolvendo hieróglifos e outras formas de comunicação não foram tão relevantes após esta data.
A versão que ora apresentamos do léxico é, então, um bom retrato do que se sabe hoje sobre a cultura e o pensamento egípcio em geral, o que é muito pouco, mas suficiente para despertar uma intuição geral sobre o clima psíquico do Egito Antigo.
O primeiro e mais básico verbete que vale a pena considerar é o referente a Abstração, capacidade exclusiva do homo sapiens que permitiu o surgimento da cultura (conceitos e símbolos) há aproximadamente 80 mil anos, e atingiu sua forma mais espetacular exatamente no Egito de 3 mil a.C.
Como qualquer cultura, a egípcia é marcada pela abstração, diferenciando-se decididamente dos povos bárbaros e selvagens para os quais a praticidade é praticamente a única prioridade. Esta abstração é projetada na civilização através de formas e sinais de referência que transformam um prédio, instrumento, vestimenta ou ação humana em eventos culturalmente significativos. O que de outro modo seria apenas um abrigo adquire agora uma alta significação através de um projeto que não tem apenas a utilidade como também o sentido cultural em conta. Em outras palavras, o abrigo torna-se além de um abrigo um referente social, religioso ou artístico. O túmulo torna-se também um marco de memória, um instrumento de poder mágico que viabiliza a ressurreição ou ao menos o contato dos vivos com os mortos, um símbolo de status, um ponto de equilíbrio no desenho urbano, e outras coisas mais.
Pirâmides e obeliscos, estátuas e murais decorados são o melhor exemplo de investimento de esforço, tempo e dinheiro na edificação de estruturas sem qualquer utilidade prática. São as primeiras obras “anti-darwinistas”, no sentido da teoria materialista da seleção natural, pois constituem um verdadeiro desperdício da força e do engenho humano em operações inúteis à sobrevivência dos indivíduos e da espécie. Demonstram, bem ao contrário, que o indivíduo pode se engajar em atividades que consomem séculos, e que, portanto, superam qualquer interesse particular a que este poderia jamais aspirar. Demonstram ainda e por isso que o espírito despertou definitivamente, e que um interesse puramente abstrato, intelectual e espiritual pode sobrepor-se a todos os interesses fisiológicos, até mesmo ao sacrifício destes, pois fisicamente falando as obras faraônicas só acarretam em ônus e sacrifício para toda a economia do reino, atingindo inclusive a classe dominante que vê seu luxo reduzido pelos incomensuráveis e intermináveis gastos com templos.
É também a capacidade de abstração que permitiu aos povos semicivilizados do Egito e de outros pontos do globo a formação da escrita, da religião e da arte, cada uma delas dependente de se projetar imagens e referenciais que ultrapassam seu uso comum. Traços e círculos se tornam números, o Sol assume o lugar de pai e legislador, a chuva é associada a uma divindade feminina da fertilidade, o animal deixa de ser um ser natural para simbolizar um atributo.
Contudo, a consciência egípcia do papel da abstração nos elementos culturais não significa que eles estivessem isentos da convicção na sua força real e prática.
Como outros povos antigos os egípcios tinham um grau bem mais alto de esclarecimento do que supunham as pesquisas pretéritas e nossa imagem romântica dos povos primitivos que criam literalmente em seus panteões e mitos. Ao menos a classe instruída tinha razoável ciência de que o mágico e o imaginário deviam ser cuidadosamente distintos, e eram muitas vezes céticos quanto à efetividade última dos rituais e da teologia.
Mais do que os hebreus ou os chineses, talvez só comparáveis aos gregos e indianos, os egípcios sabiam que as lendas de monstros e heróis, gênesis e catástrofes primordiais resumiam mais um recurso pedagógico para a moralização do povo do que registros históricos.
Tal elevação da abstração a sua autoconsciência filosófica é atestada pela teologia, se nos dedicamos à apreciação da Teogonia, a gênese dos deuses.
A teologia egípcia prega que Atum era o primeiro e único ser, unidade primordial do universo a partir da qual a multiplicidade se formou. O criador, contudo, é também o deus do fim do mundo, e sobrevive à aniquilação do universo. Atum é alfa e ômega, o infinito e eterno que precede ao nascimento e transcende o fim do mundo.
Exceto pelos deuses ancestrais, como Atum, os próprios deuses estavam sujeitos à mudança e, portanto, à morte. Eram seres viventes, finitos, mais ou menos corpóreos (veremos a seguir), e bastante próximos do conceito moderno de espíritos tutelares responsáveis por diferentes aspectos da ordem social ou natural.
Êmulo ou filho de Atum é o deus Sol, Aton, que difunde por todo o mundo a força sem a qual nada vive. É um deus impessoal e apartidário, não distinguindo o bom e o mau ao espargir seus benéficos raios. Os egípcios o representaram com enorme sensatez e agudeza de espírito como um sol cujos raios terminam em mãos que acariciam todos os seres indistintamente. Este detalhe é fundamental para que não se confunda a imparcialidade do deus com indiferença, o que lhe retiraria toda a dimensão espiritual fazendo-o assemelhar-se a um gerador de energia, uma lâmpada, ou qualquer outra metáfora material. O sol cujos raios terminam em mãos é um ser imparcial, mas vivente, sensível, pensante e atuante, cujos infinitos raios prodigalizam infinitas obras edificantes. É um espírito mantenedor e cultivador de todos os seres.
Típica representação de Aton onde os raios de Sol terminam em mãos que distribuem bençãos.

Outros verbetes dignos de menção são que designam a “exortação aos vivos” e as “cartas aos mortos”, os quais exemplificam magnificamente a complexidade e relativa banalidade com que os egípcios entravam em intercâmbio com os mortos.
As “exortações aos vivos” eram mensagens dos mortos dirigidas aos vivos. Em casos muito raros poderiam ser mensagens dos deuses, mas o comum era que se tratasse de familiares e amigos íntimos. Os mortos aconselhavam, ameaçavam, amaldiçoavam, abençoavam ou repreendiam os vivos através destas mensagens quase invariavelmente transmitidas por sonhos, mas que também poderiam em casos graves manifestar-se como visões diretas ou por meio de profetas.
A mais conhecida e comum destas exortações aos vivos poderia figurar como máxima de qualquer patriarca a seu povo: “Apegai-vos aos escritos. Trabalhai o seu conteúdo.”[1]
Leitura e interpretação criteriosa dos clássicos e das escrituras sagradas eram já, como hoje, os mais úteis de todos os conselhos.
As “cartas aos mortos” eram um recurso utilizado pelos vivos para endereçar mensagens aos seus mortos.
Estas mensagens consistiam principalmente de lembranças, agradecimentos, rogativas, bravatas e ofensas. Algo que lembra um pouco o propósito dos epitáfios.
 Um filho poderia reclamar ao pai por tê-lo deixado em má situação financeira, ou poderia recomendá-lo aos deuses ressaltando suas qualidades. Um inimigo poderia amaldiçoar o morto para que não encontrasse bons caminhos no além, enquanto um amigo poderia inscrever numa placa comemorando os seus feitos.  É, portanto, difícil distinguir as mensagens que realmente se destinam aos mortos daqueles muitos comentários ou alegações feitas sobre um morto, as quais também são muito frequentes. A verdade inquestionável em meio a todas estas questões é, “os mortos jamais eram esquecidos”.
Havia muitas outras formas de “relação entre este e o outro lado”.[2]
Em geral o além era visto como um lugar escuro e deprimente, de modo que o homem normal pretendia voltar a viver o mais rápido possível. Este renascimento era comumente associado ao corpo original, dando origem, como é sabido, à mumificação dos corpos. As almas mais puras, contudo, podiam aspirar a uma boa vida no além, ao lado dos deuses, mas o cidadão comum e mesmo muitos faraós temiam que este não fosse o seu destino.
A consciência do pecado era muito forte na cultura egípcia, mesmo que o esforço para superá-lo não fosse tão grande. Egípcios parecem ter sido menos propensos ao ascetismo e à bondade do que os sábios hebreus ou gregos, mas eram provavelmente mais humildes ao avaliarem seu estado moral.
A filosofia egípcia era essencialmente dualista,[3] isto é, criam que todas as coisas funcionam por oposição. A geografia influenciou-os, como de costume, mais do que a outros povos na adoção do dualismo. As duas margens do Nilo, o alto e o baixo Egito, unificados na tiara do faraó, o contraste entre o calor escaldante do luminoso dia e a noite fria do deserto.
Mas é claro, a oposição principal é aquela entre corpo e espírito, o mundo material e o dos deuses. E a intermediação entre estas duas substâncias é feita através de uma terceira e ainda uma quarta substâncias (ou propriedades semimateriais do espírito): Ka eBa.[4]
Ba é a força plástica, animalizada e praticamente material através da qual a alma interfere no mundo dos vivos. É através de Ba que a força vital, Ka, se relaciona com o corpo. Os deuses também possuem Ba, e é por isso que podem intervir fisicamente no mundo dos vivos. Mas Ba não é uma energia amorfa, senão uma personificação da energia vital, um duplo ou molde do corpo, em alguns aspectos, e/ou uma projeção da personalidade e dos atributos psíquicos, em outros.
O Ka, por outro lado, é a força vital em seu aspecto mais espiritual, não tendo relação direta com o corpo, o que o torna dependente do Ba. Enquanto Ba parece ser mais um envoltório ou ectoplasma, Ka é a energia pura emanada do espírito.
 Às vezes simploriamente traduzido como alma, a etimologia do Ka guarda forte parentesco com “touro”, palavra da qual se derivam outras como “força”. O Ka também não pode ser resumido como alma pois não é um princípio inteiramente individual, mas reúne famílias ou comunidades. O pai transmite o Ka ao filho, e o filho herda o Ka do pai.
Trata-se, portanto, um padrão de energia que tipifica a atividade da alma.
O primeiro deus cria os demais através da divisão ou doação de seu Ka. E estes ajudam a formar o mundo também através da emanação de seus respectivos Ka. As vibrações das almas dos deuses produzem algo como uma sinfonia cósmica com tons muito distintos, e por isso os deuses têm papéis muito específicos na criação e manutenção do mundo.
Um homem morto geralmente está destituído de Ka, mas pode ser reunido novamente a ele através de rituais poderosos em que o espírito do morto ganha substância anímica, estando a um passo da vida carnal. Um espírito cheio de Ka pode, entre outras coisas, aparecer aos vivos e afetar o mundo dos vivos.
Em resumo, Ka parece ser uma força de que o espírito necessita para produzir fenômenos espirituais de natureza inteligente, inclusive os ligados às leis e à ordem naturais, ao passo que Ba é  um adensamento plasmático que viabiliza fenômenos físicos como curas, maldições e transporte de objetos por parte dos espíritos.
Porque criam firmemente nesta capacidade dos espíritos e deuses de intervir no mundo dos vivos, os egípcios tinham em altíssima conta o ato de orar.[5]
Os próprios deuses são instados a orar para entidades maiores, como o Sol. Os animais também oram, apesar de que suas orações não são verbais.
Os egípcios oravam para qualquer coisa não mundana, isto é, seus antepassados mortos, entidades intermediárias entre os espíritos dos mortos e os deuses, aos deuses, ao rei-deus (faraó). Era possível orar de pé, mas orações sinceras e intensas eram feitas “sob um ou ambos os joelhos, em prostração (beijando o chão) e com os braços geralmente estendidos, com as mãos para baixo ou para cima.”[6]
As orações eram feitas com grande frequência ao nascer do Sol, às vezes ao pôr do Sol, mais raramente em outras ocasiões. Podiam ser ditas em voz alta ou apenas murmuradas, raramente em silêncio. “A parte principal da oração era um hino de agradecimento ou, o que era mais comum, um pedido.”[7]
Quando a oração parecia não ser suficiente os egípcios apelavam para a “visita aos deuses” ou para o “sono reparador”.[8]
A visita aos deuses é o termo que a teologia egípcia empregava para procissões e peregrinações. Tanto quanto qualquer povo antigo, os egípcios acreditavam radicalmente na importância da procissão. A procissão tem duas funções fundamentais: 1- reconhece que algum lugar é sagrado, ou ao menos mais sagrado do que os locais próximos. 2- lembra ao fiel que a busca pelos deuses é uma viagem, uma jornada. Neste segundo sentido pouca diferença faz o destino final da procissão, mas o seu trajeto, a marcha em si enquanto movimento sacrificial de desapego pelos interesses mundanos, pelo lar e pelo estilo de vida local.
O sono reparador ou regenerador era uma técnica, tanto quanto uma crença da religiosidade egípcia. Os egípcios eram bem cientes de que o contato com os deuses ocorre preferencialmente através de sonhos. Sabiam também que a alma acessa, através do simbolismo onírico, recessos de si mesma inatingíveis pela mente consciente. Por isso empregavam amplamente uma variedade de técnicas do sono e dos sonhos.
 A divisão mais básica dos sonhos se refere aos espontâneos em face dos provocados. Provocar sonhos era uma arte que os hierofantes (e apenas eles) dominavam com prática e teoria, sendo que a melhor maneira de produzi-los era dormir em locais especiais, como templos, locais de sacrifício e na proximidade de monumentos. Estes lugares e objetos estariam impregnados da presença e emanação dos deuses a eles associados, alterando por si sós o conteúdo dos sonhos.
A razão principal pela qual um leigo buscava dormir em locais propícios aos sonhos divinatórios ou simbólicos era de saúde. Assim, ou os doentes se dirigiam aos templos na busca de dormir sob o manto dos deuses, ou os sacerdotes eram convidados às casas dos doentes para ministrar o sono regenerador, através de encantos especiais que visavam criar uma atmosfera na residência capaz de imitar o ambiente do templo. Em ambos os casos a autoridade absoluta competia ao sacerdote. O homem leigo, inclusive se poderoso, não ousava discordar ou sequer opinar em questões espirituais.
 Os egípcios observavam também que a técnicas de sono reparador eram especialmente efetivas em casos de doenças e transtornos mentais.
Passando da religiosidade para a base metafísica e teológica da religião, é necessário considerar as características atribuídas aos deuses.
Deuses egípcios são caracterizados por:
·         Tempo: Todos nascem, vivem seus dias divididos em horas e, possivelmente, morrem. Em alguns sentidos são imortais (não envelhecem), mas como podem morrer em conflitos com outros deuses não são jamais eternos e indestrutíveis. Como suas ações são limitadas pelo tempo, é improvável que ajam ou estejam em muitos lugares no mesmo instante.
·         Lugar: Deuses têm corpo, apesar de poderem assumir vários corpos ou formas, e estão sujeitos às leis normais de espacialidade como alto, baixo, dentro e fora.
·         Mudança. Nenhum deus egípcio é imutável. Não apenas porque existem no tempo e espaço, mas porque a existência para os egípcios é sempre regrada por ciclos de transformações.
·         Substancialidade metafórica: Ao contrário dos seres corpóreos que possuem uma substância material e concreta, deuses são compostos por substância fluídica (termo do próprio léxico) e podem emanar partes de suas características ou presença por irradiação. “Este conceito de “fluido divino” só foi confirmado bastante tardiamente”[9]
·         Subclassificações: o sexo, a função e outras características menos importantes, mas comumente atribuídas aos deuses.

Naturalmente, há exceções que não se enquadram neste perfil, como vimos ser o caso de Atum.
Em seu aspecto filosófico, a religião se debruçava sobre os conceitos de segredo e mistério.[10]
A princípio toda ciência pode ser dita um segredo. Os segredos dos céus designam, assim, a astronomia, enquanto a medicina trata dos segredos da saúde e da vida. Toda a natureza encerra, portanto, os seus segredos, e o papel do homem é aos poucos retirar os véus dos fenômenos revelando para si as leis naturais. Os grandes segredos, contudo, pertencem ao mundo dos mortos, e só podem ser vagamente conhecidos pelos homens, através de símbolos.
A teoria do conhecimento egípcia assumia, portanto, que as partes mais profundas da realidade são e sempre serão inacessíveis ao intelecto humano, de maneira que em face das leis maiores estamos absolutamente em dependência para com os deuses. Os mortos descerram alguns segredos a mais em comparação com os sábios encarnados, mas mesmo eles são ignorantes se comparados aos deuses, os detentores do conhecimento sobre o funcionamento básico do mundo e sobre as questões mais radicais da filosofia. Por isso pensadores egípcios não se dedicavam demais à meditação sobre o sentido da vida ou a origem do universo. Tais questões eram por definição assuntos destinados às mentes supremas, não às humanas.
Segundo a convenção típica dos estudos de religião, mistérios é o nome geralmente dado à taumaturgia, à necromancia, à adivinhação e à filosofia pertinente a estes assuntos.Trata, portanto, essencialmente do intercâmbio com os mortos e/ou com os deuses, de sua ação no mundo dos vivos, de presságios e profecias e de um conhecimento ao menos parcialmente divino que justifica tais atividades e ocorrências.
Os mistérios são, assim, a parte espiritual dos segredos da natureza, e os iniciados nos mistérios são os “cientistas dos fenômenos psíquicos”.
Apesar da concepção geral, o léxico de egiptologia afirma que os egípcios não acreditavam na reencarnação como fenômeno corriqueiro ao qual todos os seres estariam sujeitos. A reencarnação pode ocorrer, mas não é uma fatalidade, de modo que algumas almas de fato jamais retornam à Terra, enquanto outras só o poderiam fazer por intermédio da múmia.
Isto é consequência de uma complexa e confusa concepção do além.[11]
Para os egípcios o além não pertencia ao não-ser, mas a uma dimensão do ser. A morte não era ameaça à existência individual, e sim uma transposição do indivíduo do plano carnal para o além, um mundo relativamente desconhecido, mas concreto, onde a vida podia continuar.
O mundo egípcio não se resumia, portanto, na realidade material. Havia também um céu (reino dos deuses) e um submundo (reino dos mortos) que ainda não sendo inteiramente físicos e identificáveis dentro do mundo material, podiam ser apreendidos de um modo ou de outro (pela magia, pelos oráculos, pela razão...). Uma vez que os três mundos respeitam os mesmos princípios de diferenciação e ordenação, não há qualquer mudança de personalidade na passagem entre eles.
Mesmo assim, viver limitado ao submundo não parecia algo desejável aos olhos egípcios, que tinham do além uma impressão obscura, fúnebre e às vezes assombrada.Em consequência disso os egípcios se esforçavam ao máximo para garantir que um lastro de sua existência física, o corpo, pudesse perdurar, daí a “necessidade” de mumificação.
É o caso de se dizer que os egípcios temiam a vida no além não porque fossem pessimistas quanto ao além em si, pois havia dois mundos, um magnífico dos deuses e um obscuro no submundo. Eles eram pessimistas quanto à avaliação de sua moralidade, julgando que o homem comum praticamente nunca merece ascender ao mundo dos deuses após a morte, sendo arrastado por seus pecados ao submundo.
Estranhamente, pelo que podemos inferir do léxico, esse pessimismo moral não estimulava o moralismo, como é comum ocorrer com as teologias que enfatizam o mal radical da alma humana. Ao contrário, havia uma certa condolência e resignação quanto ao fato de que o caráter humano é assediado por desejos indignos. Ao mesmo tempo que tinham total consciência do pecado, do mal, da tentação, não se esforçavam demasiadamente para evitá-los, aceitando ser essa a condição humana. A filosofia moral dos egípcios era schopenhaueriana.
Como na Índia ou no Extremo Oriente, o Lótus era para os egípcios o símbolo máximo da beleza e da perfeição, trespassando por sua glória a mundanidade e trazendo aos homens uma brisa espiritual. Nascida do lodo mais fétido e dos excrementos dos animais, ela também carrega o simbolismo do renascimento, da alma que se desprende pura do cadáver, e do espírito que retorna da morte.
Com isso encerramos esta curtíssima exposição das curiosidades que mais nos atraíram neste fabuloso e extenso manual. É sempre de lamentar que um tema tão instigante e frutífero quanto a cultura da primeira grande civilização humana tenha sido depauperado pelas areias do deserto e do tempo.

Bibliografia.
HELCK, W.; OTTO, E. Lexikon der Ägyptologie. 7Bd. Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1975.





[1]Verbete Anruf an Lebende. Vol. I, p. 297.
[2] Verbete Diesseits-JenseitsBeziehungen.Vol. I, p. 1085.
[3] Verbete Dualismus. Vol. I, p. 1148.
[4] Verbete Ba. Vol. I, p. 589.
[5]Verbete Ba. Vol. II, p. 453.
[6] Idem.
[7]Verbete Ba. Vol. II, p. 455.
[8] Verbetes Besuch an den Götter e HeilendeSchlaff. Vol. II.
[9]Verbete Götter. Vol. II, p. 759
[10] Verbetes Geheimniss e Mysterien. Vols. I e IV.
[11] Verbetes Jenseitsvorstellungen. Vol. III.

5 comentários:

  1. MUITO INTERESSANTE MATÉRIA, HUMBERTO. CERTAMENTE ENRIQUECE A DISCUSSÃO SOBRE A ESPIRITUALIDADE NO ANTIGO EGITO. RECOMENDAREI AOS ANTIGOS ALUNOS DE COSMOLOGIA!

    ResponderExcluir
  2. ... e aí Schubert? Estamos esperando + artigos. Sempre q der manda a caneta aí no blog. Vc tem muito material p compartilhar.

    ResponderExcluir
  3. Oi William. A vida anda meio apertada. Mas a boa notícia é que quando sair o material terá a melhor qualidade possível. Obrigado pelo incentivo. Grande abraço.

    ResponderExcluir
  4. Depois de ter lido vários textos deste blogue, decidi inscrever-me como seguidor. Venho por este meio apresentar os meus melhores cumprimentos a Humberto Schubert Coelho, pela magnífica seriedade cultural que nos oferece. Abraço a todos

    ResponderExcluir