quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Psicologia: a ciência da alma.

Embora a psicologia moderna seja uma ciência com método e objetivos próprios, sua fundamentação doutrinária requer ainda uma boa dose de filosofia, o que infelizmente só é admitido por uma parte dos grandes sistematizadores da psicologia. Toda doutrina, as ciências incluídas, pressupõem um ponto de partida filosófico que lhe define a validade. Nas ciências naturais esse papel é desempenhado, geralmente, por premissas positivistas genéricas, ou, mais recentemente, pela filosofia da ciência enquanto disciplina específica. Já com as ciências humanas, por outro lado, pode-se observar uma discussão qualificada com a filosofia, mas ainda assim há distinções entre os pensadores que confessam esta herança, como Jung em relação a Kant e Goethe, e os que não a mencionam, como Freud em relação a Schopenhauer e outros românticos.
De qualquer modo interessa-nos sobremaneira a relação entre psicologia e filosofia, já que ambas se completam na descrição e análise da subjetividade humana. Uma predominantemente debruçada sobre a manifestação empírica da alma em sua economia vital, a outra mais orientada para a especulação sobre as estruturas invariáveis do espírito.
Quem primeiramente empreendeu uma unificação relevante destas abordagens foi o filósofo e médico estóico Posidônio (135 a.C. – 51 d. C.), cuja obra foi lamentavelmente perdida, restando dela apenas citações e fragmentos reunidos por outros autores. Mesmo que seu nome não tenha alcançado grande destaque no mundo antigo, sendo conhecido basicamente pelos estóicos e investigadores da natureza, seu impacto profundo sobre a medicina de Galeno e a filosofia de Cícero e Sêneca tornou populares as suas idéias centrais.  
Posidônio
Posidônio confrontou-se com os dois grandes psicólogos de sua época, Epicuro, representante das paixões: prazer e poder, e Crísipo, defensor da tese de que todas as ações humanas resumem deliberações racionais. Posidônio parecia chocado com o fato de ambos os grandes filósofos serem incapazes de entender o lado oposto da questão, e estabeleceu uma síntese em sua doutrina, na forma das três afinidades humanas, poder, prazer e razão. As primeiras corresponderiam ao aspecto animal da alma, a última ao aspecto espiritual e divino. Nas palavras do próprio Posidônio: Algumas pessoas equivocam-se ao pensar que aquilo que pertence aos poderes irracionais da alma, como seus fins naturais, são fins naturais sem qualificação;  o que estes não apreendem é que prazer e poder em detrimento do próximo é a meta do aspecto animal da alma, enquanto a sabedoria, bem como tudo o que é bom e moral, são os fins do aspecto divino e racional.” (Fi6iEK)[1]
         Essa hierarquia, no entanto, implicava o governo da razão sobre as volições, não um desprezo destas últimas, sem as quais a vida perderia toda a sua concretude. O mérito de Posidônio está em não apenas reconhecer a existência das paixões, mas reconhecê-las como forças positivas (pois, para os estóicos, tudo o que é natural é correto e bom). Como em Platão ou Aristóteles, bem e mal, num sentido moral, não são categorias relacionadas às paixões, e sim à razão. As paixões podem ser boas ou más na ausência da razão, e são sempre boas na sua presença. Posidônio evoca a metáfora platônica da alma como uma biga puxada por dois cavalos, prazer e poder, e conduzida pelo cocheiro, a razão. Sem o condutor ela estaria desgovernada e perderia seu objetivo; sem os cavalos ela perderia sua força motriz, ficando inerte e inútil.
         O ponto complexo dessa dinâmica psicológica é o fato de que, para Posidônio, a razão tem uma influência mínima no estímulo ou repressão das paixões. Ela tem grande poder de compreensão, mas pouco poder para disciplinar a paixão. Dessa forma, muitas vezes os cavalos tentam mudar a direção imposta pelo condutor, complicando a viagem.
         Este conflito é provocado por dois motivos: o primeiro, correspondente ao erro de Crísipo, é desconsiderar a influência das paixões sobre a própria deliberação racional. A razão escolhe, mas é auxiliada na escolha pelos interesses semi-independentes das paixões. E o segundo corresponde ao erro de Epicuro em desconsiderar o poder da razão em eleger fins capazes de satisfazer as paixões. Se isso fosse verdade só restaria reprimir as paixões com um racionalismo artificial, ou entregar-se a elas; ou convento ou carnaval.
     Com isso, Posidônio atingiu uma compreensão avançada da constituição psicológica humana e de seus desdobramentos na vida prática, percebendo que os elementos ou forças da mente são ao mesmo tempo distintos e comunicantes. Em outras palavras, a razão podia elaborar justificações para interesses das paixões, e as paixões poderiam ter “interesses espirituais”, educados pelo consórcio com a razão. 
         Para moralizar é preciso transformar a emoção tanto quanto a razão. Cada pessoa carrega em si todas as forças que nela geram conflitos e são responsáveis pelo bem ou mal, de modo que o indivíduo é responsável pelas emoções que deixa despertar em si ou descontrolar no contato com o estímulo externo. Se a emoção, por outro lado, estiver em contato íntimo com a inteligência, não será por mera argumentação que a alma se inclinará para o bom caminho, senão antes porque a inteligência soube falar à emoção em sua linguagem, despertando nela a consciência de que sua própria realização depende de tal ou qual fim. É inútil tentar agredir ou olvidar a emoção no esforço moralizador. O que se obterá com isso, repetimos, é uma adesão artificial à lei moral, que termina com revolta contra essa lei imposta. O resultado prático é a vida de convento seguida de carnaval, se a razão reprimiu o prazer; ou, pior, moralismo ditatorial, se a razão corrompeu a vontade de poder.
         Um quadro simbólico e simplificado do comportamento humano poderia ter este formato.


Vontade de prazer
Vontade de poder
Sob opressão do intelecto.
Culpa, repressão.
Moralismo, vaidade.
Sem intelecto.
Hedonismo, vício.
Violência, medo.
Em consórcio harmônico com o intelecto. (estoicismo)
Alegria.
Segurança, coragem.

O esquema dispensa maiores explicações. Há versões introvertidas e extrovertidas de cada disfunção. Culpa quando o intelecto quer abafar o prazer, mas não o logra, repressão quando é bem sucedido; moralismo quando se logra abafar a vontade de poder, vaidade quando a inteligência a estimula. E assim por diante.
Posidônio diz, segundo Galeno, que devemos silogizar da seguinte maneira: “Coisas que não dão a mente grandeza de espírito, confiança inabalável ou paz de espírito não são bens. Riqueza, saúde e semelhantes não produzem essas características mentais. Portanto não são bens.” ( E mais tarde Posidônio acrescenta que o que nos conduz a essas coisas é o acaso, e não há bem proveniente da arbitrariedade. O bem é sempre algo exercido, pois assim a sua realização depende exclusivamente de quem o persegue; as coisas casuais, por outro lado, são aquelas que não podemos realizar por nossa forca apenas, logo são exteriores.
Devemos votar-lhes apenas um interesse moderado despreocupado, já que não nos são nem inerentes, nem constantes. Tudo isso pode ser facilmente provado pela razão. Quão ridículo é aquele que persegue a riqueza ou a saúde sem os obter, e não percebe que a sua posse depende grandemente de sorte, destino e condições do ambiente. Quão igualmente ridículo não é aquele que possui riqueza e poder e se acha o único responsável pelo seu gozo, orgulhando-se de sua pretensa capacidade, até que um vento do destino tudo lhe arranca. Estes são inclusive piores do que os primeiros, porque enquanto fruem de bem-estar acham-se melhores que os demais. 
O homem racional não se deixa perturbar nem pelo orgulho, quando frui de conforto, nem pela lamentação, quando é dele privado. Esforça-se por obter prazer e poder, mas sem desesperar-se ou acomodar-se por eles. Sabendo da casualidade das condições materiais, tenta espiritualizar sua busca por prazer e poder. Logo o seu prazer se torna o deleite da alma, e o poder se direciona do exterior para o interior, para o governo da própria vida.
Tais pensamentos tiveram enorme impacto sobre o estoicismo, modificando significativamente o seu tratamento da psicologia e espraiando-se daí para o cristianismo nascente. Perdeu, entretanto, sua riqueza de detalhes, na medida em que sua obra não pode ser conservada, o que logo extinguiu o interesse por um estudo aprofundado de suas teorias.
O mesmo esquema parece só ter surgido dois mil anos depois com a psicologia junguiana, que tenta acomodar as distintas fontes de energia da alma, o prazer identificado por Freud e a vontade de poder identificada por Adler.[2] A este reconhecimento de uma dupla modulação da energia psíquica o sábio suíço acrescenta uma significativa síntese entre estas forças imanentes da alma e a razão, reconhecidamente através de Kant e de Goethe,[3] que lhe permitem elaborar o conceito de símbolo, onde a razão não está mais isolada, e sim perfeitamente acomodada às necessidades e interesses anímicos. 
Com excepcional sensibilidade para os marcos de fronteira entre as distintas partições da alma, sem, contudo, permitir que as diferenciações se traduzissem em uma insípida rigidez técnica, o psicólogo mais completo do século XX apresenta o quadro vivo da dinâmica psíquica, com ampla valorização das expressões religiosas e morais, que até então não haviam sido justamente reconhecidas em sua relevante função de sentido e nas peculiaridades de sua experiência.
Embasados nessa excelência que nos dispensamos de pormenorizar, os numerosos estudos comparativos entre a psicologia de Jung e o Espiritismo, ressaltando-se indubitavelmente a obra de Joanna de Ângelis, revelam-se pertinentes e apreciáveis no que tange a formulação de uma futura e mais ampla ciência da alma.
De nossa parte observamos nas obras dessa autora uma fantástica sensibilidade para as nuanças psicológicas que não necessita estar vestida sob um tecnicismo aparente. Ao contrário, experiência e ciência abrangentes dos fenômenos mais variados da vida psíquica são por elas acomodados ao senso de realidade da sobre a vida psicológica do leitor. Aos críticos da linha psicológica de Joanna de Ângelis, alguns dos quais alegam que a obra não atinge o objetivo de estabelecer uma psicologia espírita, escapam as prerrogativas e premissas lucidamente declaradas nas entrelinhas do texto, as quais invertem de maneira satisfatória essas mesmas críticas.
Esperam os polemistas que Joanna parta de Jung para o Espiritismo, quando ela insiste em fazer o inverso, escapando, assim, de aplicar ao Espiritismo uma ciência cujos fundamentos conceituais são extremamente vagos. Não é preciso grande conhecimento sobre o assunto para reconhecer que as dificuldades quanto à credibilidade de Jung estão na fundamentação de sua análise, o que igualmente se aplica a Freud. Os resultados saltam aos olhos, a perspicácia revela assombrosa intuição e poder de observação, mas o ponto de partida carece de uma justificação filosófica exaustiva, comprometendo a solidez teórica. 
Com o Espiritismo ocorre o oposto; já que o que ele tem a dizer sobre psicologia é inteiramente desdobrado de uma bem estabelecida filosofia prévia. Na ordem teórica seguem-se a justificação da validade do conhecimento espírita em geral, a cosmologia e o estudo do sistema da natureza em seus detalhes (incluindo a natureza da alma humana) e só então chega-se ao interesse nos detalhes da vida prática. A psicologia está, dessa forma, amplamente escorada sobre uma visão de mundo onde o homem encontra-se elucidado como ser espiritual, radicado na carne e a ela conectado por um corpo energético. Este ser está contextualizado num mundo que possui fundamento moral objetivo, sendo por isso afetado por choques de realidade no contato com valores concretos que traz em seu íntimo, e possui um histórico de vidas pretéritas cujos efeitos podem ser rastreados para critério de esclarecimento de tendências e situações críticas do presente. 
Todos esses elementos estão ausentes na moderna psicologia atual que se vê em conflito com a visão de mundo materialista da ciência a qual quer pertencer. Por isso, mesmo ao negar essa concepção de mundo, uma teoria como a de Jung acaba por abdicar da fundamentação por ela mesma exigida, abstendo-se de afirmar qualquer coisa sobre sua proveniência, condenando-se à posição de sistema excelente, mas cujas bases precisam ser lançadas como que do nada, e a critério de confiança.
         Até onde podemos ajuizar - o que não significa que assim seja realmente-, Joanna de Ângelis está a lançar diante de nossos olhos um projeto psicológico inteiramente fundamentado pela metafísica e cosmologia espíritas, e isso há décadas sucessivas, sem que alguém se dignasse de secundá-la no esforço de sistematizá-lo em linguagem acadêmica. 

Bibliografia:

JUNG, Carl G. A dinâmica do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1984.
JUNG, Carl G. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes, 1997.
JUNG, Carl G. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1980.
KIDD, I. G. Posidonius: III. The translation of the fragments. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.


[1] KIDD. Posidonius: III. The translation of the fragments. Pg. 19.
[2] C. G. JUNG. Psicologia do inconsciente.
[3] O que nos parece implícito em A vida simbólica e A dinâmica do inconsciente.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O lugar do Espiritismo no pensamento brasileiro

       Ao mesmo tempo em que se insere num contexto global da história humana, o Espiritismo guarda também a particularidade de uma profunda associação com a cultura brasileira. Historicamente, não se pode desconsiderar o fato de ter ele prosperado no Brasil em proporções e com efeitos imensamente maiores do que em outras terras. Filosoficamente deve haver também razões para isso. Em ambos os casos, no entanto, estamos lidando com uma lacuna constrangedora em termos de pesquisa.
         Se já impressiona o fato de haver pouquíssimos estudos espíritas sobre a relação e situação de sua doutrina frente à filosofia e religiosidade nacionais, quão mais impactante não é descobrir que o Espiritismo, elemento exótico para a generalidade da cultura ocidental e que tanta influência exerce sobre a religiosidade e o pensamento brasileiros, não possui a mais rasteira menção nos tratados destinados a esgotar a genealogia cultural do país.
         Na vasta obra de Antônio Paim, o mais excelente historiador do pensamento brasileiro, não há uma única menção aos filósofos espíritas, ou tampouco ao papel do movimento espírita na construção das raízes morais e no imaginário religioso do povo brasileiro. Também nos estudos antropológicos de Meira Penna, ilustríssimo pesquisador da cultura, só se encontram referências redutivas e estereotipadas da prática espírita, para não dizer condenações preconceituosas, prejudicando assim sua análise final do espírito da nação. Esses são, apesar disto, os pensadores que rendem ainda algum respeito à religião, sendo por isso inapreciavelmente mais completos do que os historiadores e sociólogos que, por orientação ideológica marxista, excluem logo de saída o elemento espiritual da cultura, ou condenam-no como dejeto cultural do arcaísmo português e do primitivismo africano e ameríndio a ser brevemente superado.
         Semelhante desprezo pelo papel do Espiritismo como movimento filosófico e força moralizadora da sociedade brasileira é injustificável em face da generalidade da crença na reencarnação, que é estatisticamente maior do que em qualquer outra nação ocidental; do trâmite entre religiões afro-brasileiras e catolicismo, muitas vezes mediado filosófica, teológica e socialmente pelo Espiritismo, em cujo quadro doutrinário estão santos católicos e fenômenos animistas lado a lado. De uma função social destacada à franca desproporção com o seu percentual na população, o Espiritismo faz-se notar pelas instituições de caridade e iniciativas comunitárias, pelos números expressivos de seu mercado editorial, discrepantes em relação à sua participação na população. 
         Nas estatísticas atuais do IBGE os espíritas ocupam a primeira posição em anos de instrução, enquanto judeus e agnósticos/ateus disputam a segunda posição. É preciso mais do que conveniência pessoal para ignorar dados como esses e limitar-se a reproduzir o juízo herdado da Igreja ou da academia de que tudo isso não passa de uma superstição muito popular.
         Por outro lado, não se pode culpar unicamente o pesquisador que lança uma visão externa sobre o tema, se da própria tradição não surgem respostas qualificadas a esse tipo de atitude. Todo intérprete tem suas peculiaridades de estilo e interesse, quando não uma ideologia própria com agenda propagandística. É necessário, portanto, que os espíritas saiam de sua área de conforto junto à própria comunidade e escrevam para o público leigo e/ou acadêmico. Enquanto essa função permanece até certo ponto discriminada no seio do movimento espírita, ora taxada como desperdício de energias, ora como perda de enfoque motivada por orgulho e pretensões mundanas do fiel, é natural que os antologistas e enciclopedistas da cultura ignorem o que só puderam conhecer indiretamente.
         Para se ser ouvido em certos meios não basta que se seja por natureza apropriado à temática, ou gozar de um direito conquistado pelo mérito no exercício das funções em questão, mas é preciso também dominar a linguagem que aquele meio exige.
        O Espiritismo é um movimento filosófico rico e dinâmico por si mesmo, aqueles que a ele se dedicam bem o sabem, mas ele tem falhado em dialogar com a filosofia vigente. Tem também uma vinculação profunda com a história do Brasil e com a formação da identidade nacional, mas insiste em interpretar a si próprio e se apresentar como elemento transplantado da França, sem um embate adequado com os elementos nativos que permitiram a sua rápida difusão e sua permanência. 
     Se o Espiritismo não aclara suas origens junto às figuras estabelecidas do pensamento brasileiro à época de sua chegada ao país, como esperar que estas mesmas tenham nele um ponto de identificação? Conquanto seja comum às novas filosofias o ímpeto de se destacarem da tradição como uma novidade revolucionária, é obrigatório reconhecer que nenhuma novidade se estabelece sem que o terreno esteja previamente preparado por idéias semelhantes. Kardec o fez esplendidamente em relação à cultura francesa, mas o mesmo não foi até hoje empreendido a contento pelos pensadores espíritas brasileiros.
         O que gostaríamos de oferecer neste ensaio são pequenas referenciais que auxiliem o culturalista brasileiro a enquadrar mais corretamente o Espiritismo, ou sirvam de estímulo ao pesquisador espírita/do Espiritismo na formulação de teses e coletâneas aptas a relacionar o Espiritismo ao quadro geral da cultura brasileira, com destaque para a filosofia, mas apenas porque este é o campo onde nossas limitações pessoais são menos completas.
         Primeiramente, é forçoso assumir que o Espiritismo conta com poucos filósofos de profissão, ou estes não se dedicaram minimamente a estabelecer ligações com a tradição filosófica em geral. Muitas vezes os filósofos espíritas partem de uma formação autodidata focada nas filosofias francesa e antiga, talvez por um instinto mais ou menos consciente de emulação de Kardec.
Até onde sabemos, os dois únicos escritores com formação em filosofia a se dedicarem a este mister foram Carl du Prel, professor de Leipzig em fins do século XIX, e José Herculano Pires, professor de filosofia da USP nos anos 60 do século passado e membro do Instituto Brasileiro de Filosofia, também tendo atuado como professor de psicologia e sociologia. O primeiro desenvolveu um aparato filosófico e psicológico muito elaborado a partir das obras de Kant, Schopenhauer e Fries, que era complementado por estudos sobre fisiologia, hipnotismo e mesmerismo, também populares na Alemanha de fins do século XIX. A teoria de du Prel teve enorme influencia sobre Jung, que replicou a abordagem kantiana da psicologia, abrindo espaço significativo para uma ciência subjetiva do numinoso, o elemento de mistério intuído pelos limites do conhecimento humano. O segundo tratou resumidamente de Descartes, Bergson e Heidegger, identificando nos dois primeiros uma fundamentação da independência do espírito em relação a matéria, e reinterpretando o último de forma extremamente original. 
Para Herculano Pires, o pensamento ontológico de Heidegger na sua busca pelo modo de constituição do ser é uma descrição perfeita do espírito conforme apresentado pelo Espiritismo. As limitações de Heidegger quanto à finitude da existência humana são, para Herculano, perfeitamente válidas, na medida em que ao ser humano só estejam disponíveis as experiências desta vida, mas graças ao fenômeno da mediunidade é possível estender de forma crítica o estudo fenomenológico da existência aos aspectos não-corpóreos, mas ainda perfeitamente descritíveis pela analítica existencial. Em outras palavras, com a fenomenologia mediúnica a existência extra-corpórea passa a ser concreta, não abstrata.
Ainda é muito pouco, mas já é um começo para estudos que objetivem o enquadramento da filosofia espírita em comparação às linhas e escolas de maior renome.

         Do ponto de vista da genealogia cultural brasileira basta dizer que o Espiritismo tem ligação com todos os principais movimentos do período imperial. Por um lado bebe ele fartamente da tradição espiritual agostiniana (Pascal, Fénelon, Lammenais e o próprio Agostinho são considerados espíritos patronos da revelação espírita). Como produto francês, ao menos em certa medida, estava também perfeitamente integrado ao quadro da elite intelectual brasileira, extremamente ligada à Paris. 
        O Espiritismo pode ainda ser referido ao ecletismo espiritualista do século XIX, com sua apologia à perfectibilidade humana, e sua tese geral de que todas as revelações guardam uma parte de verdade, e todos os movimentos históricos contribuem para a marcha do progresso dos indivíduos e da sociedade. 
         Por fim, o Espiritismo está desde o começo ligado ao positivismo, ao liberalismo e ao socialismo franceses, todos movimentos capitais para a formação do pensamento brasileiro. Basta lembrar que eram espíritas assumidos o renomado astrônomo Camille Flammarion e o escritor socialmente engajado Victor Hugo.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Visão histórica e cultural do Espiritismo


     Até aqui foram apresentados pequenos ensaios sobre religiões e filosofias de diferentes povos, com destaque para a Antiguidade, objetivando responder às nossas próprias exigências traçadas no texto introdutório sobre a perspectiva crítica do Espiritismo. Reunimos algumas poucas informações sobre assuntos diretamente ligados à abordagem culturalista e metafísica do Espiritismo, mas não apenas faltam estudos específicos sobre o Espiritismo na África, na Rússia, no xamanismo americano, australiano ou indonésio, como seria preciso um tratamento competente sobre os temas que bisonhamente apresentamos. Não obstante, nosso esforço principal era o de ilustrar o quão viáveis são esses estudos, e o quanto se poderia avançar em história e filosofia espírita se levarmos a sério a sua pretensão de universalidade, não considerando-o um produto do século XVIII.
         Por outro lado, e ao mesmo tempo, toda a teoria científica, paradigma filosófico e descoberta de fenômenos até então ignorados ou mal interpretados não apenas pode, mas precisa estender a sua validade para além de quaisquer limites temporais ou geográficos. O Espiritismo o faz sem esforço e com muito poder persuasivo; diria até que o faz melhor do que qualquer outra filosofia, na medida em que, sem excluir nenhum dos problemas e fenômenos compreendidos pelas demais, tem a vantagem de explicar rigorosamente um amplo espectro de outros problemas e fenômenos patentes e até então sem o mínimo tratamento conceitual.
         Do ponto de vista teórico, ensaios sobre história do pensamento, filosofia ou religião comparada atestam de forma excepcional a abrangência e consistência de uma doutrina; e do ponto de vista prático esse contato interpretativo com outras tradições viabiliza a aproximação, a compreensão e a tolerância para com elas. Isso já é verdade até para as perspectivas reducionistas, que negam a base das filosofias ou religiões alheias por reduzi-las a um elemento comum. Com as teorias afirmativas, como é o caso do Espiritismo, esse efeito é potencializado ao extremo, já que as tradições alheias não são reduzidas segundo um elemento comum, mas integralmente afirmadas e valorizadas em seus valores essenciais.
          As inúmeras leituras espíritas sobre o Velho e o Novo Testamento demonstram bem esse caráter positivo de uma teoria mais abrangente que explica mais sem desmentir as alegações do sistema anterior. Os santos e profetas continuam santos aos olhos do Espiritismo, suas revelações e experiências não são desmentidas, mas complementadas. E, como bem sabemos, o mesmo pode ser aplicado ao Hinduísmo, ao Budismo, ao Taoísmo e ao Islamismo.
         Um dos motivos principais de fazermos aqui uma pausa para esclarecimento está na impressão que o site possa ter transmitido, por nossa culpa, de que o propósito dessa coletânea seja enciclopédico. Se isso fosse verdade nenhum serviço teríamos prestado, visto que todos os ensaios aqui desenvolvidos não superam em detalhamento as enciclopédias virtuais mais vulgares e às quais hoje todos têm acesso, como a Wikipédia. 
          Nosso objetivo não é de forma algum apresentar uma enciclopédia da filosofia e da religião, ou sugerir que o leitor deva se ilustrar sobre todos esses temas a fim de fazer um estudo filosófico do Espiritismo. Ao contrário, nosso único propósito é demonstrar que, pela sua própria natureza fenomenalista, racionalista e fraternalista, por sua combinação não sectária de ciência, filosofia e religião, o Espiritismo pode ser “enxergado” em toda a parte, o que faz dele uma verdadeira e completa cosmovisão.
         Outra questão relevante nesse “balanço” do site até aqui é a prioridade dos estudos sobre a Antiguidade. Um estimado amigo que analisou estes ensaios nos chamou atenção para o fato de que alguns deles não são voltados nem para o Espiritismo, nem para a filosofia, o que em princípio fere a proposta temática deste site. Só nos resta anuir completamente. Afinal o que o judaísmo arcaico ou a filosofia milenar chinesa podem ter a ver com o Espiritismo? Nada! O Espiritismo, por outro lado, pode e deve ter a ver com as experiências religiosas e teóricas mais antigas, pois é ele quem pretende englobar as doutrinas isoladas e superar suas contradições num modelo mais abrangente. Não se pode esperar que tradições cuja intenção básica seja a de bastarem-se a si mesmas deem partida a iniciativas agregadoras. É ao Espiritismo que cabe ir de encontro a elas, pois é ele quem está constituído como proposta explicativa e complementadora.
         Caso essa seja realmente uma necessidade ou pretensão da doutrina espírita, ela não precisa se desgastar no estudo dos detalhes de uma história da filosofia ou uma história da cultura. Basta-lhe demonstrar sua aplicabilidade aos princípios gerais, e para isso nada é mais efetivo do que retornar à matriz de cada cultura e linha de pensamento.          Na teoria interpretativa do Espiritismo parecem estar pressupostas duas teses fundamentais sobre a cultura: a primeira se refere à universalidade da revelação espiritual em todos os povos e épocas, o que é uma tese arrojada, mas possível de sustentar diante das similaridades entre crenças e filosofias religiosas; a segunda se refere à absolutidade do Cristianismo, ou seja, a capacidade do Cristianismo de abranger todas as outras crenças e filosofias ou ao menos apresentar uma equivalência satisfatória. Embora essas teses não sejam diretamente declaradas elas podem ser inferidas de tudo o que o Espiritismo prega no âmbito de sua história da cultura. São paradigmáticas as palavras do Espírito de Verdade no sexto capítulo do Evangelho segundo o Espiritismo: “...reuni o bem esparso no seio da humanidade”.
         Esse posicionamento possui, como qualquer definição, um aspecto agregador e um aspecto segregador, pois o conceito mais abrangente precisa também separar e distinguir para não se confundir com uma afirmação vazia. A sua parte positiva é que, ao reconhecer o gérmen de verdade na essência de todas as filosofias humanas, reúne-as e dignifica-as. A sua parte mais delicada e possivelmente danosa é que a afirmação de um caráter especial do Cristianismo pode dar a entender que as demais crenças e filosofias não passem de formas primitivas e/ou decadentes dele. Expurgar essa impressão é tarefa do Espiritismo bem como do Cristianismo, ao que são obrigados pela sua teoria explicativa abrangente, e essa tarefa só pode ser posta em prática através de uma atitude legitimadora diante das demais crenças e religiões.
         É comum ouvirmos expressões de suposta tolerância por parte dos espíritas, discriminando sua própria doutrina a título de exemplo de humildade. Esse comportamento não é mais racional ou louvável do que o de considerar as demais posições como estágios infantis da religião, correspondentes ao espírito menos amadurecido dos que as professam. Não é preciso desvalorizar-se para valorizar os outros, nem negar sua própria virtude para agir com dignidade
         Espiritismo e Cristianismo podem com toda a segurança afirmarem a sua autoridade universal enquanto tomarem todos os seres humanos por filhos de Deus, louvarem todos os santos, profetas e guias espirituais de outras religiões, e enquanto posicionarem os praticantes dignos de outras crenças na dianteira dos praticantes indignos de sua própria. Com isso distinguem-se, no geral, de quase todas as outras doutrinas filosóficas e religiosas que, junto a excelentes verdades, guardam quase invariavelmente o sectarismo das idéias de origem puramente humana.
A doutrina oficial do catolicismo e o seu escalão político sediado no vaticano são um perfeito exemplo de quão personalista pode se tornar a religião. O próprio Cristianismo não sobreviveu à soberba da teologia exclusivista, dos rituais espúrios e hierarquizados, da máquina econômica e política da igreja romana. Que pensar de uma filosofia que ponha os seus adeptos no paraíso e os seus opositores no inferno; aos seus a verdade e aos demais o engano e a mentira? E por mais absurdo que seja não é assim que procede a maior parte das religiões sob a Terra?
         É, portanto, perfeitamente razoável afirmar que o Espiritismo, ou outras doutrinas semelhantes, qualifica-se e distingue-se de outras crenças e filosofias pelo seu caráter progressista, universalista e crítico. Enquanto o Espiritismo toma diversas referências católicas como Francisco de Assis e Vicente de Paulo como modelos de perfeição humana, o mesmo não se pode dizer da postura católica em relação ao Espiritismo, que desde o princípio direcionou-se para a associação da prática espírita com a magia negra, a queima de livros no auto de fé de Barcelona e a discriminação ostensiva. Não há contradição em abraçar o universo da fé católica num gesto conciliador e, ao mesmo tempo, condenar a sua postura e estrutura obsoletas e anti-cristãs. Aliás, chega a ser uma redundância lógica pregar a tolerância e repudiar o partidarismo.
         A natureza do saber humano é progredir através da reformulação de teorias que nos ajudem a agrupar os diferentes aspectos da vida, e essas teorias não nos oferecem nada se não puderem incluir de modo proveitoso as teorias prévias.
        Não cabe aqui um verniz de tolerância politicamente correta que ao final se traduza em indiferença, pois, se tudo é indiferente, igual ou dependente do gosto de cada um não há qualquer critério racional para efetuar um julgamento, e estamos confessando escolher com base em dogmas prévios. Uma vez que não o queremos mais, precisamos definir fronteiras e pontes claras entre as diversas estruturas de pensamento.