sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Qual é a filosofia espírita?


       Da compreensão geral de que o Espiritismo é ou tem uma filosofia surge a necessidade de explicitá-la. Os seus adeptos reproduzem com acerto os seus aspectos filosóficos, e os separam com habilidade adquirida pelos estudos kardequianos daqueles outros científicos e religiosos. E também o caráter filosófico de uma doutrina qualquer é sempre mais discernível e menos controverso do que um seu possível elemento científico. Essas são razões pelas quais se fala numa filosofia espírita com alguma segurança.
         Entretanto, a academia possui no que tange à filosofia não menos exigências e regras do que às que competem à prática das ciências. Afinal, então, o que é e como se sustenta a filosofia espírita? Tentaremos mais problematizar do que responder a este questionamento.
         Do ponto de vista da filosofia como especialidade, o Espiritismo apresenta-se como filosofia popular, o que equivale a dizer, como razão argumentativa, mas não fundamentadora. Esta qualificação não precisa ser pejorativa, e mesmo algumas das melhores filosofias tiveram um cunho acentuadamente popular, como em Voltaire, Rousseau e Nietzsche. É também uma visão filosófica válida e oficial a de que a razão já está desde sempre em jogo com seus problemas específicos, e não pode ou não requer fundamentação. Ainda assim, a maior parte do que se produziu sob o título de filosofia na história humana destinava-se à fundamentação do conhecimento ou de julgamentos sobre questões de valor.
         São mentes analíticas e interessadas na fundamentação das certezas a de Platão, a de Descartes, a Locke e a de Kant, alguns, portanto, dos maiores filósofos. Segundo estes, a atividade filosófica não se faz propriamente sem o esforço exaustivo de sua própria crítica, de modo que qualquer filosofia digna do nome ou vai até as últimas consequências ou compra um método que já o tenha feito. Os bons filósofos populares o são por seu interesse prático (moral ou político), sem que dispensem o concurso de uma boa base metodológica. E se Kardec foi um bom filósofo popular, o que acreditamos razoável afirmar, devemos encontrar em sua prática os princípios de algum ou alguns filósofos mais analíticos, para não dizer sistemáticos (nome que à época não soava bem).
         O primeiro indício de que Kardec não é um filósofo sistemático está em ele lançar mão de múltiplos conceitos e axiomas sem os justificar. Semelhante atitude pode significar, como dito, tanto o descompromisso com a filosofia quanto uma adoção prévia de métodos filosóficos bem estabelecidos. E não há a mais remota dúvida de que os conceitos e axiomas pressupostos por Kardec correspondem à visão eclética do saber filosófico de princípios do século XIX. Em primeiro lugar porque todos esses pressupostos pertencem à ala ortodoxa da filosofia francesa, requerendo assim pouca ou nenhuma exposição sistemática; em segundo lugar porque essas conquistas em especial eram classificadas como conquistas da ilustração e todos os autores da época estavam habituados a assumir os elementos deste grande edifício eclético e enciclopédico como ponto de partida. Pensadores tão importantes como Benjamin Constant, Madame de Staël e Tocqueville jamais se preocupam, assim como Kardec, em fundamentar o conceito de razão, ou analisar a constituição metafísica da liberdade. Ao invés disto eles os tomam do poço da filosofia iluminista e os aplicam com habilidade de filósofos práticos aos seus interesses.
         Para elencar alguns dos pressupostos essenciais da classe ilustrada francesa e/ou européia dos anos 1800 a 1840 podemos citar resumidamente:
1-                             A fundamentação do pensamento por Descartes, com a respectiva separação entre o princípio pensante do princípio material, a constituírem os modos de ser.
2-                             A ideia platônica de que a matemática corresponderia ao modus operandi da natureza. Noção renascentista que foi solidificada por Galileu, Bruno e Descartes.
3-                             O atomismo de Diderot, que copiando Demócrito e Epicuro postulou todas as leis da física como consequências das leis que regem as partículas elementares.
4-                             A noção de liberdade como direito garantido por Deus, uma ideia cristã que se desenvolveu em séculos de teologia e filosofia, casando-se com as noções gregas de liberdade e culminando no axioma da liberdade humana conforme Locke, Voltaire e Rousseau.
5-                             A positividade da experiência como fundamento do saber, desenvolvida por Comte e imediatamente diversificada e adaptada por inúmeros pensadores e cientistas.

Poderíamos citar outros pontos, mas isto só aumentaria o volume de uma defesa que consideramos suficientemente estabelecida.
Está claro ao filósofo contemporâneo que a segurança de algumas dessas pressuposições foi duramente abalada, durante o próprio século XIX e especialmente no XX. O item mais controverso hoje é o da equivalência entre matemática e natureza, ainda defendida com certa ingenuidade por muitos físicos e francamente proibida pela filosofia da ciência. O que se pode dizer hoje com sobriedade filosófica é que haja alguma correspondência entre as leis que postulamos matematicamente e o funcionamento da natureza, mas precisar a exatidão desta correspondência seria considerado uma postura dogmática.
 Basta, contudo, o conhecimento do contexto histórico para lembrar que a nova filosofia responsável por questionar as certezas iluministas é de matriz alemã, e não estava plenamente acessível aos franceses da primeira metade do século XIX. Apesar de estar entre os poucos falantes de alemão da sociedade francesa da época, Allan Kardec provavelmente compartilhava da crença geral de seu povo a respeito dos germanos: a de se tratarem de um povo grosseiro recém chegado às raias da civilidade e que ensaiava suas forças intelectuais numa filosofia prolixa, mas essencialmente infrutífera.[1]
         O posterior sucesso da filosofia alemã, com todo o seu aparato crítico, com a restauração da metafísica pelo Idealismo e com as reviravoltas teológicas, marcou para sempre a face da filosofia, um fenômeno que o orgulho francês ainda digere com atraso, apesar da grande influência de autores como Kant e Hegel sobre os franceses.
         A filosofia sistemática viu sua tocha ser cedida da França para a Alemanha, e desta para o mundo globalizado do pós-guerra. Resta saber em que medida isto depõe contra as filosofias práticas e populares.
         Neste particular uma comparação entre Kardec e os outros filósofos populares franceses é indispensável. A maioria deles, exatamente por ser popular, sofreu minimamente com a transformação da filosofia sistemática, e a popularidade dos pensadores políticos e religiosos, dos psicólogos e moralistas franceses continuou tão irretorquível sob a luz dos sistemas alemães como quando em seu terreno natural do Iluminismo autóctone.
         Redefinidos os fundamentos dos conceitos de razão e liberdade, sobre bases mais críticas e rigorosas, continuaram a viger na esfera prática as conclusões e intuições sóbrias que a análise social e psicológica francesa ou inglesa haviam efetuado em dois ricos séculos de modernidade.
        A filosofia atual se esforça por refinar a fundamentação metafísica e epistemológica da razão, de Deus, da liberdade e da relação entre sujeito e objeto, etc., mas no campo prático e popular a maioria dos postulados iluministas continua a viger como moeda válida de interpretação dos fenômenos naturais e sociais. Em muitos aspectos, mudaram os caminhos, mas permaneceram os resultados da filosofia. É bem mais ingênuo ver algo de “errado” em Platão, por incompatibilidade de seus métodos com os recentes, do que dispensar os métodos recentes na apreciação de trabalhos filosóficos pregressos; e a história da filosofia continua a ser fonte de inspiração principal para os que pretendem reelaborá-la com vistas ao futuro.
         Qual é, então, a base filosófica do Espiritismo, se o ecletismo espiritualista francês e o positivismo que o constituíram estão agora em cheque? Precisamente a mesma base que continuou a sustentar as outras filosofias práticas e populares após a substituição da Ilustração francesa, seu ecletismo e positivismo, pela filosofia crítica alemã.
Procurai então os defensores de Pascal, Voltaire, Rousseau, Staël e Tocqueville, e achareis o caminho para sustentar em linguagem atualizada aqueles mesmos pressupostos que fomentam o método kardequiano. E os caminhos para essa revisão técnica da filosofia espírita podem ser muitos, como muitas são as correntes mais recentes.  O pragmatismo de James, a filosofia liberal e crítica de Popper e mesmo uma forma revisada da analítica existencial de Heidegger, como foi intentado por Herculano Pires, podem ser boas soluções.
       Particularmente, acho que a forma mais apropriada de releitura técnica da filosofia espírita seja a partir da Metafísica da Subjetividade, uma variante eclética que se apropria de praticamente todas as outras correntes contemporâneas numa forma ao mesmo tempo clássica e crítica da metafísica, permitindo a validade dos conceitos-chave de Deus, imortalidade, razão e liberdade.


[1] Veja meu texto sobre Madame de Staël e o “descobrimento” da Alemanha:  http://www.portalsophia.org/textos/stael/allemagneschubert.pdf

5 comentários:

  1. Rafael do Nascimento Teixeira16 de outubro de 2011 às 10:44

    Realmente muito bom seu texto. Me fez repensar a ideia que eu tinha de que Kardec apenas falava que era Filosofia porque não conhecia ou para se autoafirmar, roubar autoridade da filosofia.

    Entretanto ainda tenho minhas dúvidas se podemos considerar mesmo Kardec como filosofia popular nesse sentido, anda mais comparando com grandes nomes como Voltaire e Rousseau.

    O problema me parece ser o caráter religioso embutido nos livros de Kardec. Claro que não é problema o filósofo ter uma religião, mas a religião não pode servir para embasar seu pensamento. Quando Kardec pretende se apoiar na revelação dos espíritos, usando o argumento de que um método falho como o CUEE sustenta essa revelação, para mim nesse ponto o texto todo dele mostra que passa muito longe da filosofia.

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  2. Você está certo Rafael. Na verdade Kardec não faz filosofia, ciência ou mesmo religião em sentido convencional. Até porque estas coisas de fato não se encaixam tão bem quanto parecem fazer no trabalho dele.
    Tentarei postar outros textos comparativos entre filosofia e espiritismo, de modo a deixar claro que o que Kardec faz é uma "outra coisa", cujos parâmetros se "assemelham" aos da filosofia, da ciência e da religião.

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  3. Humberto, permita-me agradecê-lo por tamanha empresa que realiza com elegância e bom senso. Gostaria de lhe perguntar: você enxerga avizinhações entre a Filosofia Espírita e a filosofia contemporânea de pensadores como Eric Voegelin, Leo Strauss, Xavier Zubiri, René Girard, Louis Lavelle ? este último, lembro-me que Herculano Pires o viu como fonte de estudos para aproximações. E pensadores brasileiros como Mário Ferreira dos Santos e Vicente Ferreira da Silva ?

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  4. Amigo. Como a muitos peço perdão pelo longuíssimo atraso. Destes só conheço com mais segurança Girard e Vicente Ferreira da Silva. Creio não ser nada difícil encontrar relações com o último, e o primeiro também ajuda a colocar a religião e o espiritismo particularmente em forte perspectiva. Entretanto, mesmo quando faço análises a partir de um autor tenho sempre uma perspectiva mais cultural do que autoral/pessoal da filosofia.

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  5. Olá, Humberto. Obrigado por manter o blog em funcionamento, como fonte de conhecimento.

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