quarta-feira, 13 de julho de 2011

Pascal e Kardec I


Blaise Pascal, o orgulho da raça humana, só não brilhou mais alto no desfile da cultura porque sua morte precoce, devido a uma doença que também o debilitou, e o seu zelo cristão em apagar a própria personalidade impediram que as multidões, ávidas de acontecimentos impressionantes, guardassem as marcas de seu gênio sutil.
Entre os primeiros franceses, Pascal é também um nome que marca a distinção eterna desta nação no cortejo dos povos. É destes homens que nos dão a impressão de terem contribuído mais do que povos inteiros, só não sendo isto verdadeiro porque os padecimentos e trabalhos dos simples angariam aos poucos o mérito da regeneração pela expiação das paixões.
Gênio e santo no sentido mais profundo dos termos; criança prodígio como nenhuma outra, deduziu sozinho e sem qualquer instrução os princípios de Euclides em tenra idade. Adolescente, escrevia tratados científicos de impacto permanente sobre o conhecimento. Inventou aos dezenove anos a máquina de calcular, primeiro computador eficiente da humanidade. Repetiu os experimentos de Torriceli e os aperfeiçoou, destacando-se no estudo do vácuo, e, graças a esta última contribuição, inseriu-se na ponta dos debates sobre a natureza da matéria e dos átomos. Como matemático está ao lado de Descartes e Laplace, tendo desenvolvido o cálculo de probabilidade, para o jogo de dados, e criando as bases do cálculo infinitesimal, de Leibniz e Newton, através de seu estudo sobre a exponenciação. Como filósofo, foi um dos pais do Iluminismo na contramão do movimento racionalista, embora mestre dos métodos empregados pelo mesmo. Estimulou o iluminismo da religião, os estudos psicológicos e morais, e desenvolveu a imortal aposta que leva o seu nome. Como homem religioso conseguiu o tremendo feito de destacar-se ainda mais. É um dos maiores defensores da fé que a humanidade já viu. Entre as primeiras inteligências do mundo, soube esquivar-se da vaidade intelectual, considerando-se, inclusive, muito pobre e apagado; e tendo vivido sem pecado ou qualquer falha moral durante toda a sua vida, apontou ao mundo somente seus defeitos e fraquezas, deixando como único conselho o método que usava para desvelar a parte corrompida da própria alma. Não há dúvida de que, numa pátria que se destaca pelos seus santos, ombreia com os maiores nomes da religião.
Pascal. Olhar lúcido e sereno.

Como qualquer outro homem, no entanto, Pascal cometeu erros, e, embora todos fossem desculpáveis pelo contexto e época em que vivia, as pessoas mesquinhas sempre encontram alegria na descoberta dos pontos falhos, que logo ampliam na esperança de rebaixarem as mais dignas figuras, evitando com esta técnica o confronto com a virtude que as constrangeria.
         Devido ao clima impregnado pelo Racionalismo, especialmente febril na França de Descartes, nosso autor buscou refugio numa espécie de conservadorismo fideísta daquele período, o Jansenismo. Graças a essa influência, ele tornou-se defensor ferrenho dos dogmas e rituais da religião católica, em consciente contradição com a razão, na qual teve reduzida a confiança.
         Incapaz de encontrar o meio termo ao exagero do Racionalismo, preferiu escorar-se unicamente na fé; e apesar de ter contribuído com a domesticação das pretensões intelectuais humanas, se excedeu ao afirmar ser preferível a adoção incondicional da religião revelada.
         Mais tarde, com a intensificação do confronto entre fé e razão, desenvolveram-se respostas mais completas e satisfatórias, onde ambas as partes da querela puderam ser novamente entendidas como elementos de um mesmo todo harmônico. Mas seria demais cobrar também isto do pobre Blaise.
Pascal sozinho deveria garantir para a França a posição de liderança na cultura mundial; se ao menos as pessoas o conhecessem. O leitor não espere que este artigo pobremente escrito na forma de apologia e convite lhe faça jus, e nem mesmo sirva como boa introdução ao seu pensamento. O que se pode fazer sem um estudo especializado dessa figura fascinante é caminhar em sua sombra, e talvez com isso possamos guardar vaga de sua grandeza.
         Sua obra principal são os Pensamentos, uma sequência de aforismos conectados pela temática, mas fragmentados pela falta de estrutura. Pascal morreu antes de completar o que deveria ser a sua segunda maior obra, ou talvez até mesmo a primeira, a Apologia, que teria o objetivo de fazer uma defesa da religião cristã e sua excelência. Mas os Pensamentos, ainda que dividindo espaço com uma infinidade de críticas sociais, psicológicas e considerações filosóficas e literárias, já cumpre muito bem a função de defender filosoficamente o Cristianismo.
Sua tese mais primária é a da divisão do espírito em duas excelências, o espírito de geômetra e o de finura. O primeiro corresponde a razão, enquanto o segundo ao sentimento. Mas os medíocres e os homens falsos não possuem nenhum dos dois, e raciocinam geralmente errado, enquanto os que possuem uma destas virtudes geralmente têm dificuldade em pensar da outra forma. Aos dotados de fineza, os argumentos de razão parecem estéreis e incapazes de produzir, em seus resultados, verdadeira satisfação. Aos dotados de razão, os argumentos da intuição e do sentimento parecem loucos e obscuros, pois são incapazes de dissecá-los e identificar com clareza suas origens.
O sentimento vê as coisas de um só golpe, precisa navegar entre as brumas com segurança. A razão enxerga às claras, e só apreende o objeto divisado à distância e pacientemente analisado. Ambos se afastam e se desgostam da atividade que não lhes é típica, como procedem os medíocres em relação aos dois. É que, como em tudo, aprecia-se somente aquilo que se sabe e faz. Dito de forma direta pelo próprio autor:
Os Geômetras que são somente geômetras possuem o espírito reto, desde, porém, que lhes sejam bem explicadas todas as coisas por definições e princípios; de outro modo, tornam-se falsos e insuportáveis, pois são retos apenas em relação aos princípios bem esclarecidos.
E os sutis, que são simplesmente sutis, não são capazes da paciência de descer aos primeiros princípios das coisas especulativas e da imaginação, que nunca viram no mundo e que estão completamente em desuso.[1]

         Naturalmente o ideal seria desenvolver ambas as virtudes, e somente com ambas se pode atingir uma vida moral e religiosa verdadeira. Contudo, já é muita coisa possuir-se uma propensão para uma única virtude, o que denota enorme progresso realizado, e ainda que dotado apenas de razão ou de sentimento, o homem pode se tornar um homem de bem, por noção do dever ou pela compaixão.
         Enquanto não possui as duas virtudes, ou nenhuma, o espírito deve cuidar de educar-se, o que  se realiza preferencialmente pela conversa. A conversa é o ponto profundo do contato com outros humanos, e é por ela que se atingem as virtudes ou vícios de outrem com maior precisão. Por isso as conversações com cafajestes e patifes é corruptora, enquanto a presença dos nobres e bons cidadãos é sempre edificante. Que verdade mais simples e completa. E quão evidente não é a ligação estreita entre a atual degeneração do caráter e a vulgaridade do vocabulário, nas músicas e nas conversações, o estímulo incessante pelos temas revoltantes, pelos crimes hediondos, pelos escândalos, pelas torpezas dos artistas e pessoas públicas, que nos provocam uma excitação patológica caracterizada pelas conversas raivosas, pelos comentários vingativos, pela vontade de sobressair na conversa com um tema mais picante, um crime mais bárbaro...
         A formulação exata de Pascal é:
Do mesmo modo como se corrompe o espírito, corrompem-se o sentimento. O espírito e o sentimento são formados pelas conversas. O espírito e o sentimento corrompem-se pelas conversas.
Dessa maneira, boas ou más conversas formam-no ou o corrompem. Escolher bem, para formá-lo ou corrompe-lo é o mais importante de tudo; e somos incapazes dessa escolha se já não o formamos, sem o corromper. Isso compõe um círculo, e são bem-aventurados aqueles que dele escapam.[2]

         Mas após esta explicação técnica ele desfia inúmeros exemplos valiosos. Quem já não esteve, em nossos tempos, envolvido num debate sobre pedófilos, assassinos, terroristas, traficantes, etc; e não disse ou ouviu: “– Se fosse comigo eu matava.” Ou ainda “– Tínhamos de ter pena de morte.” A emoção não teria se convertido em rancor se não fosse pela conversação inapropriada, pela forma deseducada como é conduzida. E é pelo mesmo motivo que tão difíceis e tão enfadonhos nos parecem os textos ou comentários apresentados na norma culta da língua, com desenvolvimento complexo ou exigências de vocabulário. Joanna de Ângelis é um dos alvos preferidos deste tipo de crítica, e isso dentro de um ambiente onde a leitura e a disciplina do pensamento são contados entre as virtudes maiores.
         No fio da navalha entre a disciplina da linguagem (que é indiretamente a do pensamento e da emoção) e a moralidade, está a modéstia. Esta última é o termômetro da moralização da fala. “Quereis que falem bem de vós? Não o faleis vós mesmos.”[3] Ou no sentido ainda mais preciso do Evangelho, a boca fala do que está cheio o coração.
         Maledicência e xingamento são vícios tão arraigados que praguejar contra Deus e a “má sorte” deve estar até em segundo lugar. E se isso fosse tudo, não estaríamos tão mal. Não, temos ainda de elogiar a nós mesmos, não somente por um trabalho bem feito, mas nossa inteligência, nossa virtude, nossa bondade, ainda quando ninguém o faça. “Aos homens não se ensina a ser homens de bem, e tudo o mais se lhes ensina; e de nada se gabam mais que de ser homens de bem. Só se jactam de saber o que não aprenderam.”[4]
         Poucas coisas, segundo Pascal, nos são mais aversivas. O ridículo dos homens não é apresentar inúmeros defeitos, mas sua pretensão, sua arrogância, sua empáfia em imaginarem-se excelentes onde são mais carentes. “Como explicar que um coxo não nos irrite e um espírito coxo nos aborreça? É que o coxo reconhece que andamos direito, e um espírito coxo afirma que nós é que mancamos; se assim não fosse, teríamos piedade e não raiva.”[5]
         Há um fio sutilíssimo entre os males que praticamos com consciência e os em que somos dirigidos pelo inconsciente, e poucos traçaram esta linha com maior maestria do que Blaise Pascal. Primeiramente, pode-se dizer que o espírito é mais consciente quanto mais voluntária seja a ação, e inconsciente quando a ação for involuntária, fruto de hábito ou instinto. A vontade é, assim, elemento constitutivo da consciência, e o exercício do poder da vontade aumenta ao mesmo tempo a consciência.
Há diferença universal e essencial entre as ações da vontade e todas as outras.
A vontade é um dos órgãos principais da crença, não porque a forme, mas porque as coisas são verdadeiras ou falsas de acordo com o ângulo pelo qual as vemos. A vontade, que se satisfaz mais em um do que em outro, afasta o espírito da consideração das qualidades que não deseja enxergar; de sorte que o espírito, marchando de comum acordo com a vontade, detém-se a olhar do ângulo que esta aprecia. Julga-se desse modo pelo que se vê.[6]

         Nada é mais difícil do que educar a vontade; aí está o problema. Para melhor compreender o dilema, devemos analisar a compulsão automática da vontade, a inclinação de conservação e bem-estar de si, o amor-próprio. E aqui vai todo um tratado:
A natureza do amor-próprio e desse eu humano é não amar senão a si e não considerar senão a si. A que pode conduzir? Será incapaz de impedir que o objeto do amor apresente-se repleto de defeitos e misérias: deseja ser grande e se julga pequeno; quer ser feliz e se acredita miserável; pretende ser perfeito e acha-se cheio de imperfeições; quer ser objeto de amor e da estima dos homens e nota que seus defeitos não merecem senão repulsa e desprezo. Esse embaraço produz nele a mais injusta e criminosa paixão que se possa imaginar; porque cria um ódio mortal contra essa verdade que o repreende e o convence de seus defeitos. Seu desejo seria destruir essa verdade; não podendo destruí-la em si mesmo, a elimina quanto pode em seu conhecimento e no dos outros; isto é, coloca todo o seu zelo em encobrir os próprios defeitos a si mesmo e aos demais, e não suporta que lhe façam vê-los, nem que os vejam.
Sem dúvida, é um mal possuir tão numerosos defeitos; mas é um mal ainda maior tê-los todos e não desejar reconhece-los, porque então se lhes acrescenta também uma ilusão voluntária. Não queremos que os outros nos enganem; não julgamos justo que pretendam ser estimados por nós mais do que merecem; não é, assim, igualmente justo que os iludamos e queiramos que nos estimem mais do que merecemos.
Dessa maneira, quando os outros apenas vêem em nós imperfeições e vícios, os quais na verdade temos, é evidente que não nos provocam danos, uma vez que não são eles os causadores dessas imperfeições, e que nos fazem um bem, porque nos auxiliam a nos livrar do mal que é a ignorância das imperfeições. Não devemos nos zangar porque eles as conhecem e nos desprezam, pois é justo que nos conheçam por aquilo que somos e que nos desprezem se somos desprezíveis. Esses seriam os sentimentos naturais de um coração cheio de retidão e justiça.
(...)
Há diferentes graus nessa repulsa à verdade; é possível dizer, porém, que até certo ponto ela existe em todos, porque é inseparável do amor-próprio. Assim, essa falsa delicadeza é que obriga aqueles que têm necessidade de repreender os demais a optar por tantos rodeios a fim de não os magoar. Precisam amenizar nossos defeitos, fingir que os desculpam, mesclar elogias e testemunhos de afeição, de estima. Mesmo assim, tal remédio não deixa de ser amargo ao amor-próprio. Tomamos dele o menos possível, e sempre com aversão, e muitas vezes com um secreto despeito contra os que nos mostram a ele. Por isso ocorre que, quando alguém se interessa em ser amado por nós, foge de prestar-nos um serviço que, sabe, nos é desagradável; trata-nos como queremos ser tratados: odiamos a verdade, a verdade nos é ocultada; desejamos adulação, a temos; gostamos de ser enganados, engana-nos.[7]

E além de nos cercarmos de amigos lisonjeiros, ao invés dos sinceros, que detestamos como inimigos, buscamos avidamente pelos vícios nos grandes, para desculpá-los em nós mesmos; mesmo quando não existe vício algum.
Jesus comia carne, dizem uns; bebia vinho, os outros. Muito natural em quem tem de escolher entre uma refeição com carne ou o pão puro todos os dias. Mas hoje chega ao infinito a variedade de alimentos naturais ou sintéticos, locais ou importados, quase todos mais baratos do que a carne que custa a vida de um ser indefeso.
“– O próprio Cristo molhava o pão no vinho!” É uma verdade, e dela temos relato em duas ou três passagens dos Evangelhos. Mas espere; que nos garante que essas não foram as únicas ocasiões nos três anos de ministério? E qual é a passagem que relaciona esse ocasional consumo à embriaguez, ao entorpecimento do juízo, que é quase o único objetivo dos que bebem por esporte? Nenhuma. Ainda assim, o desavergonhado que rola pela sarjeta identifica nos santos amigos de copo.
 Eis a natureza humana. A madame jamais se convence de que uma nobre ação não seja secretamente impulsionada por algum interesse fútil, por uma oportunidade de aparecer. O político em tudo vê a mentira e a malícia; nenhuma ação lhe parece virtuosa, sobretudo se empreendida por partidários dos grupos alheios. O vagabundo jura para si que todos os trabalhadores são profundos infelizes; hipócritas que se gabam da escravidão voluntária de se desgastarem em atividades outras que a diversão e o ócio. E assim, ao final, estão todos satisfeitos, pois mentem a contento para si próprios, e acreditam-se, ao invés de viciados, em perfeita consonância com o restante da humanidade.
Decorre daí que o jogo e a conversa das mulheres, as guerras, os altos empregos sejam tão disputados. Não que exista felicidade verdadeira nisso, nem que se imagine que a real beatitude constitua-se em possuir o dinheiro que se pode ganhar no jogo, ou na lebre que se persegue: nada disso nos interessaria se nos fosse oferecido. Não é essa vida indolente e tranquila que nos proporciona tempo para refletir sobre nossa infeliz condição, que buscamos; como não são os perigos da guerra, nem os aborrecimentos dos empregos; é o ruído, que nos afasta da reflexão acerca da nossa condição e nos diverte.
Por isso os homens amam tanto o ruído e a agitação; por isso é a prisão um suplício tão horrível; por isso o prazer da solidão transforma-se em algo incompreensível. E por isso, finalmente, ser o maior objeto de felicidade da condição dos reis essa preocupação constante dos outros em diverti-los e em proporcionar-lhes todo o tipo de prazeres.[8]
(...)
Esse homem tão abatido com a morte de sua mulher e de seu único filho e sujeito ao tormento de tão grande dor, por que não está triste neste instante, e o vemos tão desprovido de tais pensamentos dolorosos e inquietantes? Não há por que estranhar: acabam de entregar-lhe uma bola e cabe-lhe atirá-la a seu companheiro, e ei-lo a pegá-la de modo a marcar um ponto. Como pretendeis que medite sobre seus tormentos quando tão nobre assunto o ocupa? Trata-se de uma ação, com efeito, digna de encher sua grande alma e de expulsar todos os demais pensamentos de seu espírito. 69

Chegamos, sem o percebermos, do autoengano à diversão. Talvez porque essa passagem seja realmente imperceptível, mas, reconhece Pascal, a diversão não precisa ser evitada sempre. Consciente de que ela é um paliativo para seus problemas, o homem deve moderar o seu emprego, mas, enquanto é homem e não anjo, a ele é permitido entregar-se ocasionalmente à diversão quando seus problemas não possam ser resolvidos, ou quando suas dores não possam ser compreendidas pela reflexão e pela piedade.
Outra forma mais sutil e prejudicial de autoengano é a vaidade, esta sim desprovida de qualquer aspecto positivo.
Não nos satisfazemos com a vida que temos em nós e no nosso próprio ser: desejamos viver na ideia dos outros uma vida imaginária, e, para isso, esforçamo-nos por fingir. Trabalhamos incansavelmente para embelezar e conservar nosso ser imaginário e negligenciamos o verdadeiro. E se temos tranquilidade, ou generosidade, ou fidelidade, apressamos em fazê-lo saber a todos, a fim de relacionar estas virtudes a esse nosso outro ser; e de bom grado as destacaríamos de nós para uni-las a ele; e seríamos prazerosamente covardes para adquirir a reputação dos corajosos.[9]

         E finalmente atingimos a conclusão essencial do início dos Pensamentos, a de que a vontade tem em seu patrimônio, pelo poder de ceder ou impor sua própria determinação, o móvel central da vida moral.
Não é vergonhoso para o homem sucumbir à dor e é-lhe vergonhoso sucumbir ao prazer. E isso não decorre do fato de vir-nos a dor de outra parte, enquanto buscamos o prazer, pois podemos procurar a dor e sucumbir a ela sem essa baixeza. De onde vem, então, que seja glorioso para a razão sucumbir sob o esforço da dor e vergonhoso sucumbir pelo esforço do prazer? É porque não é a dor que nos tenta e atrai; nós mesmos é que a buscamos por vontade própria e desejamos que nos domine; de sorte que somos senhores da coisa; nisso é o homem que sucumbe ante si próprio (o homem animal sucumbe ante a imposição do espiritual); no outro caso, é ante o prazer que o homem sucumbe. Ora, só o domínio e o império dão a glória, e a servidão dá a vergonha.[10] Obs: O comentário entre parênteses é nosso.

Nunca antes o estoicismo fora defendido com tamanha clareza, com tão inescapáveis consequências lógicas. Às almas que ainda não haviam sido convertidas pelo perfume de nobreza do sacrifício, foi agora ofertada a prova ética da superioridade da abnegação no patrimônio da vontade. Muito também se pode aprender com Espinosa e Kant a este respeito.
Observe-se, contudo, que Pascal não demoniza o prazer, não o proíbe. O prazer possui também o seu mérito na economia da saúde psíquica. Mas de quanto prazer precisa o homem? O que ele está disposto a condenar em troca do prazer? A qual dever, qual compromisso está pronto a abdicar? Nisso está o aspecto abominável do prazer, pois na encruzilhada entre o certo e o errado, entre o dever e o escândalo, ele cede, por fraqueza, ao caminho da queda, desde que ao final deste se encontre um pequeno prazer.
A alma se inclina, por sua natureza animal, ao prazer, que lhe está ferreamente associado como condição de sobrevivência da vida biológica. A comida, o sexo, o descanso, o domínio sobre outros, e inúmeros outros elementos lhe são, enquanto animal, necessários, e, por isso, prazerosos. Mas o homem já não é integralmente animal. Ele está lapidado pela sociedade, pela religião, pela ciência, já começou a divisar pela inteligência outros fins e outros propósitos mais nobres, mas que quase invariavelmente contrariam a disposição da carne. A disciplina exigida pelo estudo contraria o instinto de conforto e divertimento, a dignidade diante da instituição moral, não a social, do casamento o compunge a respeitar o regime monogâmico, os obrigações profissionais, das quais sempre depende o bem-estar de outros, nos convidam ao sacrifício do próprio descanso, da fortuna, da fama... Mas a isto nada nos inclina. Não há necessidade biológica associada ao dever, e por isso ele não nos atrai naturalmente. Todo o seu apelo é espiritual, ou seja, intelectual, consciente. Se nos habituamos a ceder ao prazer quando nos cabia vencer a sua inclinação em favor da consciência, permanecemos nas névoas da animalidade, do instinto, da escravidão aos impulsos que não cessam e não possuem qualquer orientação.
Só assim se compreende e avalia com justiça certas proposições de Pascal, ou de outros moralistas, que de outra forma pareceriam dogmáticas. Estas mesmas sentenças parecem, ao contrário, tão suavemente justas e equilibradas à luz da doutrina como um todo, que não se pode despertar qualquer animosidade contra as suas elevadas exigências. Portanto:
Se o homem fosse feliz, ele o seria tanto mais quanto menos se divertisse, como os santos e Deus. – Sim; mas não é ser feliz ver-se confortado pelo divertimento? – Não, porque ele vem de longe e de fora, e assim é dependente e, portanto, sujeito a sofrer a perturbação de mil acidentes, que tornam as aflições inevitáveis.[11]

Se não fosse pelo divertimento nós perceberíamos um constante incômodo, e este nos levaria ao esforço árduo do crescimento. Mas como encontramos a cada instante uma nova distração, um novo prazer, conseguimos caminhar insensivelmente para a morte. As agruras da vida, enviadas por Deus para nos despertar, quase não surtem efeito. O instante de incômodo, especialmente o incômodo com nós mesmos, desaparece com a excitação que corremos para a próxima distração (nada melhor do que filmes, jogos e música...) e finalmente chegamos à morte adormecidos, como desejamos, apesar de pequenos desafios que ameaçaram nosso sono.
Por tudo isso, a razão leva o homem mais e mais para um estilo de vida religioso, o que será o objeto de nosso próximo artigo sobre Pascal.

(continua em Pascal e Kardec II)

Bibliografia:

PASCAL, Blaise. Pensamentos. Coleção Os Pensadores; São Paulo: Nova Cultural, 1999.


[1] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg. 30.
[2] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg. 32.
[3] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg. 39.
[4] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg. 42.
[5] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg. 51.
[6] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg. 58.
[7] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg. 59.
[8] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg. 66.
[9] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg. 72.
[10] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg.74.
[11] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg. 75.

Rousseau e Kardec


            Enfim chegamos a um dos pontos que era o objetivo deste espaço desde a sua criação. A partir daqui veremos ao longo de alguns meses coletâneas de biografias e ideias de alguns dos filósofos que participaram da Codificação do Espiritismo junto a Kardec. Dentre os inúmeros espíritos que se destacaram na liderança do movimento de revelação, os santos e pensadores ocupam posição privilegiada. Entenderemos um pouco do trabalho de alguns dos representantes da segunda classe, de modo que a sua atuação na falange do Consolador se torne não apenas mais clara, como justificada a sua presença.
         Começamos por um personagem controverso, Jean Jacques Rousseau, que em aspectos morais e psicológicos não parece figurar na camada superior das almas esclarecidas. Não obstante, seu impacto sobre o mundo o coloca no rol limitado dos homens que pelo pensamento mudaram os rumos da civilização. E não se pode negar que muitos dos conflitos experimentados pelo escritor estão diretamente associados à sua condição de inspirado e sensitivo, como se defere inclusive de seus escritos biográficos.
         Rousseau foi excepcional desde a infância. Tendo a felicidade de nascer na região de Genebra, um dos raros bastiões onde a liberdade e o progresso não encontravam os entraves da Igreja ou do próprio Estado no século XVIII, o menino revelou-se desde cedo amante das letras, com notável tendência para o gênero de fantasia, típica preferência nutrida pelas almas cujo pensamento certamente está habituado a outros ambientes mais amplos que os da Terra.
         De índole sensível e impetuosa, experimentou quase tudo o que era dado ao homem de seu tempo; mendicância, aventuras amorosas, patronagem por parte de autoridades, perseguição e exílio, incompreensão e loucura.
         Foi sempre um inspirado, tomado quase que obsessivamente pelas ideias de justiça, sinceridade e da felicidade possível na Terra. Todos os seus escritos inflamam o espírito, como que a exigir uma atitude imediata por parte do leitor.
         Negativamente pesa-lhe a defesa da vontade da maioria, teoria que descambou nas absurdas ideologias do comunismo e do fascismo, com prejuízos humanos para todas as minorias e indivíduos não alinhados com a vontade das massas, muitos deles simplesmente por participarem desde o berço de uma classe discriminada. Essa discriminação das aristocracias e dos ricos, enquanto não violenta por parte do próprio autor, incentivou muitas atrocidades por parte de almas sanguinárias que souberam se aproveitar da reivindicação por justiça. Acresce a isso o temperamento inconstante que tanto lhe dificultou a vida prática, a paranoia e a indiferença para com os filhos. Por fim, a ideia de que o homem é bom em seu estado primitivo, responsabilizando a civilização pela sua corrupção, é não apenas infundada como perigosa, pois serviu para alienar gerações de pessoas insatisfeitas com a sociedade, as quais passaram a buscar uma fuga dela ao invés de sua correção.
         Contam entre seus méritos a inauguração na cultura humana do amor a natureza, que alimentou o romantismo e posteriormente a ecologia; o despertamento para a necessidade de transformação e combate a injustiça, que nem sempre se realizou de forma revolucionária e obscura, e a forma inovadora de fazer filosofia, que abriu caminho para uma inédita filosofia do sentimento e da intuição em plena era de racionalismo. Finalmente, suas teorias sobre a educação, ao passo que simplórias, tiveram preciosa colaboração no desenvolvimento da pedagogia humanizada da atualidade.
         A leitura de todas as obras do pensador é uma necessidade para os que se interessam por qualquer desses temas. Como nosso espaço não permitiria analisar em detalhe o discurso sobre a desigualdade ou a biografia do gênio, limitamo-nos ao Emílio, sua obra mais completa e também mais religiosa. Isto nos permitirá vislumbrar um pouco do que foi o homem, para que possamos compará-lo ao espírito comunicante do Livro dos Médiuns e da Revista Espírita.
         No aspecto moral, identificamos facilmente a admiração pela índole socrática, com equilíbrio entre epicurismo e estoicismo, e uma relativa predominância do espiritualismo platônico. Em meio a esta mediação, o que se observa no resultado final é uma teoria sóbria, simples e que soa muito forte aos ouvidos de todas as pessoas, independente de sua orientação ideológica. Os conceitos de moderação e prudência, da Antiguidade, parecem finalmente revividos como que trazidos à tona por uma alma daquela época gloriosa:
De onde vem a fraqueza do homem? Da desigualdade que se encontra entre sua força e seus desejos. São nossas as paixões que nos tornam fracos, pois fora preciso, para contentá-las, mais forças do que nos dá a natureza. Diminuí pois os desejos; será como se aumentásseis as forças: quem pode mais do que deseja, as tem, de resto; é certamente um ser muito forte.[1]
           
Indo um pouco mais fundo, o pensador identifica no amor próprio a origem primeira da vontade. É pelo divino instinto de conservação e autoestima que o homem busca o prazer, o poder e mesmo a felicidade. Mas este mesmo instinto, virtuoso por natureza, pode corromper-se, hipertrofiar-se em egoísmo, e nisto está inteiramente certo nosso sábio genebrino. A neutralidade natural se converte em malícia. Conforme um fragmento do Emílio:
A fonte das paixões, a origem e o princípio de todas as outras, a única que nasce com o homem e não o deixa nunca durante sua vida, é o amor a si mesmo; paixão primitiva, inata, anterior a qualquer outra e da qual todas as outras não são, em certo sentido, senão modificações. Assim, se quisermos, todas são naturais. Mas essas modificações em sua maioria têm causas estranhas sem as quais não ocorreriam nunca; e essas modificações, longe de nos serem vantajosas, nos são nocivas; mudam o primeiro objeto e vão contra o seu princípio.[2]
           
A parte em que a psicologia de Rousseau desliza é quando ele tenta propor uma solução para a corrupção humana. Responsabilizando exclusivamente a civilização, ao invés do próprio homem, ele acredita que o combate aos vícios consiste apenas em reformas sociais, exteriores ao problema. Afastados os vícios, em melhor ambiente, o homem automaticamente manifestaria todas as virtudes, que lhe são naturais. O esforço e o mérito da ascensão são reduzidos ao se deslocar para fora a causa do mal, e muitas das utopias sociais que se seguiram estavam baseadas na expectativa e crença nessa simplória solução. 
         Novamente, o que perdoa nosso revoltado filósofo é o fato de que ele vivia exatamente numa sociedade em que a injustiça parecia triunfante, o poder desmedido e cruel, a sociedade dividida em privilegiados e espoliados. Esta indignação fica evidente em certas passagens muito semelhantes a algumas das que figuram no Evangelho segundo o Espiritismo:
Os homens não são naturalmente nem reis, nem grandes, nem cortesãos, nem ricos; todos nascem nus e pobres, todos sujeitos às misérias da vida, às tristezas, aos males, às necessidades, as dores de toda espécie.[3]
        
Mas logo a seguir, no mesmo capítulo, ele modera o discurso e defende a tolerância e a compaixão para com os maus, assemelhando-se muito mais ao discurso social-liberal do que ao revolucionário, mais ao Cristianismo do que ao socialismo:
São nossas paixões que nos irritam contra as dos outros; é nosso interesse que nos faz odiar os maus; se não nos fizessem nenhum mal, teríamos por eles mais piedade que ódio. O mal que nos fazem os maus leva-nos a esquecermos o que fazem a si mesmos. Perdoaríamos mais facilmente seus vícios, se pudéssemos conhecer quanto seu coração os pune. Sentimos a ofensa e não vemos o castigo; as vantagens são aparentes, o tormento interior... As paixões que partilhamos nos seduzem; as que chocam nossos interesses nos revoltam, e, por uma inconsequência que nos vem delas, censuramos nos outros o que desejaríamos imitar.[4]

         Como compreender semelhante teoria, que ao passo que nos desperta a sede de justiça, nos admoesta a não odiar o injusto? Como compreender um pensador político e moral que serve de inspiração ao liberalismo e ao socialismo, a doutrina da tolerância e a da justiça, quando todos os pensadores políticos os compreendem como realidades opostas e irreconciliáveis? A resposta, segundo nossa própria compreensão, está em ser o nosso respeitável autor uma contradição para o mundo, escândalo para os doutos e prudentes, louco de pedra para a razão terrena. Sua sabedoria é divina, sua teoria política é cristã, absurdidade para todos os ideólogos; inclusive para ele mesmo. Solidariedade para com o pobre, compreensão para com o rico; sede de justiça, e com urgência, mas não por ódio, e sim por amor ao gênero humano. Nem uma classe, nem outra, mas uma fraternidade humana em que o rico, ao invés de eliminado e perseguido, conscientize-se de seus vícios e abandone os abusos a que se permitia, em que o pobre, ao invés de violento, se movimente rumo a justiça que lhe é negada ao invés de contra o injusto.
         Se Rousseau cometeu inúmeros erros de conceito e contradições, ele deixa ao menos transparecer essa superioridade da intenção, que só não se revela ao mais cego e mais fanatizado leitor.
         Esta perspectiva diferenciada tem tudo a ver com a epistemologia exótica de Rousseau. Mais do que cética, ela é socrática, em um sentido que só foi ressuscitado graças a Descartes, Pascal, Fénelon e Voltaire, os mestres da sobriedade intelectual da Era Moderna, responsáveis por toda a luz de Paris. Assim diz Rousseau pela boca do vigário de Saboia:
Consultei os filósofos, folheei seus livros, examinei suas diversas opiniões; achei-os todos orgulhosos, afirmativos, dogmáticos, mesmo em seu pretenso ceticismo, nada ignorando, nada provando, zombando uns dos outros; e este ponto comum a todos se me afigurou o único em que todos têm razão. Triunfantes quando atacam, carecem de vigor quando se defendem... Pequena parte de um grande todo cujos limites nos escapam, e que seu autor entrega a nossas loucas disputas, somos bastante vãos para querermos decidir o que seja esse todo em si mesmo e o que somos em relação a ele.[5]  

         Esta decepção e desânimo com a razão não se refletem em irracionalismo, ou em cinismo, apesar de ambos estarem muito próximos. O que de fato acontece é que o sentimento, para Rousseau, é forte o bastante para arrancar o homem da incerteza, e conduzi-lo por onde não pode o entendimento. É assim que a continuação do argumento do vigário é mais esperançosa:
Sei somente que a verdade está nas coisas e não em meu espírito que as julga, e quanto menos ponho de mim nos julgamentos mais certo estou de aproximar-me da verdade: assim, a regra de entregar-me ao sentimento mais do que à razão é confirmada pela razão.[6]

         Ao chegar propriamente a sua filosofia da religião, Rousseau associa sua sobriedade e ceticismo filosóficos à humildade tipicamente cristã diante dos mistérios da criação. Numa linha agostiniana ele começa:
Percebo Deus por toda parte em suas obras; sinto-o em mim, vejo-o ao redor de mim; mas logo que quero contemplá-lo, logo que quero procurar onde se acha, o que é, qual sua substância, ele me escapa e meu espírito perturbado não percebe mais nada.[7]

         Não poderia ser um trecho das Confissões de Agostinho? Este tipo de meditação se tornou, afortunadamente, muito comum na França entre os séculos XVII e XIX, quando ela era para todos os efeitos a verdadeira herdeira dos apóstolos.
Nosso Grand Finale não poderia ser outro que a defesa da liberdade:
Nenhum ser material é ativo por si mesmo, e eu o sou... minha vontade é independente de meus sentidos; consinto ou resisto, sucumbo ou sou vencedor e sinto perfeitamente em mim mesmo quando faço o que quis fazer ou quando não faço senão ceder a minhas paixões. Tenho sempre o poder de querer, não a força de executar... o sentimento da minha liberdade só se apaga em mim quando me depravo e impeço enfim a voz da alma de erguer-se contra a lei do corpo... Quando me perguntam qual é a causa que determina minha vontade, eu me pergunta qual é a causa que determina meu julgamento: porque é claro que essas duas causas não são senão uma; e se se compreende bem que o homem é ativo em seus julgamentos, que seu entendimento não é senão o poder de comparar e julgar, vê-se que seu orgulho é apenas um poder semelhante ou derivado daquele; escolho o bom como julgou o verdadeiro, se julga errado, escolhe o mal. Qual é a causa que determina a vontade? Sua faculdade inteligente, seu poder de julgar; a causa determinante está em si mesmo.[8]
        
Esta apologia do juízo pode ter muito a ver com a educação protestante de Rousseau. Num curto comentário de suas confissões ele expõe com sarcasmo a sua estranheza diante da religião católica, a qual só conheceu após abandonar a pátria em busca de aventura: “Naturalmente os protestantes tendem a ser mais instruídos que os católicos. A doutrina dos primeiros exige discussão, a dos segundos submissão.“ 
         Em resumo, Rousseau parece ter englobado todas as questões e atividades de sua época. Além de pensador político destacado, literato virtuoso, poeta, cientista natural com imenso impacto sobre os estudos botânicos, era um profundo cristão, talvez não exemplar, mas envolvido com a própria transformação a ponto de experimentar as fortes angústias do conflito interior que caracteriza todas as almas em busca de regeneração.
      Como espírito, parece ter participado secundariamente da Codificação do Espiritismo. Seu papel é duplamente o de apresentar sua opinião, enquanto filósofo, e, com isso, reforçar a autoridade do Espiritismo através de seu “aval”, enquanto celebridade intelectual. A sua dissertação em O Livro dos Médiuns contém, além de referências também importantes para a interpretação de sua obra, uma pequena confissão quanto à reencarnação:
Penso que o Espiritismo é um estudo todo filosófico das causas secretas, dos movimentos interiores da alma, pouco ou nada definidos até aqui. Explica, mais ainda do que descobre, horizontes novos. A reencarnação e as provas sofridas antes de chegar ao objetivo supremo não são revelações, mas uma confirmação importante. Estou tocado pelas verdades que este meio coloca às claras. Disse meio com intenção, porque, ao meu pensar, o Espiritismo é uma alavanca que afasta as barreiras da cegueira. A preocupação pelas questões morais está inteiramente para ser criada; discute-se a política que examina os interesses gerais; discutem-se os interesses privados, apaixona-se pelo ataque ou a defesa das personalidades; os sistemas têm seus partidários e seus detratores; mas as verdades morais, as que são o pão da alma, o pão da vida, são deixadas na poeira acumulada pelos séculos. Todos os aperfeiçoamentos são úteis aos olhos da multidão, salvo o da alma; sua educação, sua elevação são quimeras aptas pelo menos para ocuparem o ócio dos padres, dos poetas, das mulheres, seja na condição de moda, seja na condição de ensino.
Se o Espiritismo ressuscita o Espiritualismo, dará à sociedade o impulso que dá a uns a dignidade interior, a outros a resignação, a todos a necessidade de se elevarem até o Ser supremo esquecido e desconhecido pelas suas ingratas criaturas.[9] (Capítulo XXXI, Dissertações espíritas.)

         Aqui está Rousseau inteiro: sua religião empolgada e empolgante, livre de dogmas e interiorizada, a indignação com o estado da humanidade, e uma evocação ao seu poder inato de renovação, e, finalmente, todos os esforços voltados para a investigação das sutilezas do mecanismo moral, em seus aspectos psicológicos e metafísicos. O comentário sobre a reencarnação dá o que pensar. Teria ele nutrido crenças e intuições sobre ela, ou apenas fazia alusão à popularidade do tema em meio aos sábios em geral?
         No ano de 1861 ele apresentou uma dissertação mediúnica sobre o estado da literatura no ano anterior, lastimando a degeneração da alta cultura na França, apesar dos avanços na pintura e nas ciências. O filósofo considera que este empobrecimento das obras filosóficas e literárias se deve, sobretudo, ao despreparo dos jovens franceses.
         É de lamentar que Rousseau não tenha se comunicado mais, especialmente no que se refere às suas teorias políticas. Isso poderia ter ajudado muito a esclarecer os espíritas quanto ao seu papel de cidadãos e atores políticos, mas, naturalmente, a proposta das comunicações feitas a Kardec tinha objetivos específicos e já extensos demais.
         Fica em nós o desejo de ver este espírito publicar, através da mediunidade ou encarnado, novos de seus brilhantes tratados.

Bibliografia:

ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio, ou da Educação. São Paulo: Difel, 1979.


[1] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 171.
[2] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 232.
[3] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 246.
[4] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 272.
[5] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 302.
[6] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 305.
[7] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 313.
[8] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 317-318.
[9] Allan KARDEC. O Livro dos Médiuns. Pg. 419.