quinta-feira, 24 de maio de 2012

Reencarnação: História mundial de uma ideia


Desde a criação deste blog, buscamos expor uma espécie de filosofia perene, cujos referenciais básicos reconhecíveis em todas as culturas são: Deus, imortalidade da alma, liberdade (e responsabilidade), comunicabilidade com as almas dos mortos e reencarnação. Alguns de nossos textos tratam de autores específicos e de sua contribuição ou ligação com estas ideias, mas um  projeto mais ousado seria o de tratar exclusivamente de toda a história de uma delas.
Foi precisamente o que fez Helmut Obst, num livro cuja tradução para o português se faz impreterível. Seu título grandiloquente já nos informa de forma segura o tratar-se de uma história da cultura, ou história das ideias, no sentido mais elevado. É com admiração e alegria que reconhecemos neste autor um parceiro gabaritado de todos os estudiosos espiritualistas. Sem ser espírita, Obst reconhece Kardec como o grande divulgador da ancestral ideia da reencarnação na Era Moderna, e sua monumental erudição nos lembra as obras de Léon Denis, Bezerra de Menezes ou do próprio Kardec, catalogando infindáveis referências sobre a história da reencarnação.
Enquanto o livro – sucesso de vendas na Europa – continua a ser ignorado pelas editoras brasileiras, esboçamos uma tradução reduzidíssima, mas que pode servir ao estudante interessado no tema.
            Sem mais delongas, apresentamos a primeira parte da obra, na verdade uma tradução parcial com poucos comentários sobre este grande livro de Helmut Obst, Reencarnação: história mundial de uma ideia.
     ***

Introdução

“Mas por que não poderia cada homem ter estado presente mais de uma vez sobre este mundo?”
Esta frase, que Gotthold Ephraim Lessing apresenta em seu Educação do gênero humano, é recolocada por cada vez mais pessoas e com cada vez maior urgência em toda a Europa. (pg. 7)
O ponto de partida do conceito de reencarnação é o Espiritismo francês do século XIX. Allan Kardec (Hyppolite L. D. Rivail 1804-1869) apresentou em seu amplamente divulgado Livro dos Espíritos a doutrina da multiplicidade das vidas, sob o signo da reencarnação. (pg. 8)

Obs: Após a introdução, segue-se o capítulo primeiro, sobre as formas indianas de reencarnação, com ênfase para o budismo e o hinduísmo. Pulamos este capítulo por apresentar somente informações bastante conhecidas.

Capítulo II – Povos indígenas

Concepções sobre o renascimento se encontram em praticamente todos os povos indígenas da África, das Américas, da Austrália e da Ásia. Isto é notadamente desconhecido, ainda que etnólogos e missionários tenham dado relatos completos sobre o assunto. Tratam-se principalmente de comunidades pequenas, desprovidas de linguagem escrita.
Em geral a crença da reencarnação entre os povos africanos se concentra ao sul do Saara. Entre muitos destes povos a reencarnação dos numes tutelares é ume elemento essencial da visão de mundo, com influências concretas sobre a vida cotidiana.
Os numes retornam após a morte ao círculo familiar ou à tribo a que pertenceram. Quem são os numes? Nem todo membro da tribo será um nume após a morte. Somente se considera um nume aquele que atingiu idade avançada, realizou feitos relevantes para tribo, morreu morte natural e foi enterrado segundo os rituais corretos. Os numes pertencem sempre à geração dos avós ou bisavós. Segundo a crença de alguns povos, a mudança de sexo é possível. (pg. 33)
Conforme a crença dos Isambo, na África Central, o espírito pode aderir a uma mulher e esperar pela fecundação. (pg. 34)
A identificação do espírito reencarnado exerce importante papel nas crenças africanas sobre reencarnação. A forma mais comum é através do nome. Dá-se à criança o nome de um parente falecido, e se a criança adoecer ou chorar, sabe-se que o nome da pessoa errada foi apresentado. Objetos do falecido também podem ser apresentados. Se a criança os agarra, será identificada como a pessoa morta. Há também a possibilidade de se o identificar por sonhos. (pg. 35)
A crença na reencarnação encontra-se num grande número de povos americanos. Missionários jesuítas já relatavam no século XVII crenças reencarnacionistas entre os hurons. Também há relatos semelhantes entre os delawere, os iroqueses e uma série de outros.
Na América do Sul, os Tehuelche acreditam que a morte dos idosos não deve ser lamentada, pois eles renascerão rapidamente. Em caso de morte de um jovem, presume-se que ele terá de passar mais tempo no submundo.
Entre os povos australianos a crença na reencarnação é comum o bastante para que alguns párias se apresentem como parentes reencarnados, buscando aceitação junto a alguma tribo.
Na Sibéria, onde a crença na reencarnação é bastante difundida, os Ob-ugrianos possuem técnicas especiais para reconhecer quem as crianças forma em vidas passadas. (pg. 36)
Os Korjakes empregam, sobretudo, a técnica dos nomes. Se o nome de um parente errado for pronunciado, a criança chora, mas quando o nome do parente correto é pronunciado, a criança para o choro ou até mesmo sorri. Após identificar o nome, o pai sai do quarto com os filhos nos braços e exclama para os seus: um parente retornou.
Uma particularidade entre os siberianos é a crença na reencarnação xamânica. Um Xamã reencarnado, e esta é uma crença muito difundida, tem a capacidade de relembrar suas vidas passadas. (pg. 37)
Comum a muitos povos indígenas é a crença na reencarnação de bebês, ou seja, o pronto renascimento de crianças mortas. Na Nigéria, acredita-se que uma mulher com muitos bebês natimortos pode estar recebendo o mesmo espírito que não consegue reencarnar.
Entre o povo raposa, nos Estados Unidos, é costume das mulheres demorarem-se sobre os túmulos de seus filhos, esperando que suas almas se “agarrem” à barriga. (pg. 38)

Capítulo III: Os antigos

 Gregos e romanos: do animal ao homem.

São três as teorias sobre como a reencarnação chegou aos povos helênicos: por uma tradição ancestral indo-europeia, por influência do xamanismo trácio, ou por influência direta da Índia. Certo é que a crença na reencarnação tem uma ligação direta com os círculos órficos.
Para estes a alma é vista como divina e imortal. Ela está no corpo como que aprisionada em um túmulo. A alma almeja, portanto, a cortar os laços com os elementos malignos, titânicos,[1] realizar a plenitude de sua divindade e, com isto, transportar-se para o outro mundo. Entretanto, por culpa e impedimento das forças titânicas, ela continua sempre a recair no ciclo dos renascimentos. Entre as técnicas para libertar a alma dos renascimentos terrenos destaca-se a abstinência de alimentos que foram habitados por uma alma (animais). (pg. 41)

Obs: Os egípcios certamente criam na reencarnação, e o próprio Heródoto atribui a crença grega à recepção de ideias egípcias. Esta teoria, contudo, é muito improvável, pois os egípcios eram muito reservados quanto aos seus mistérios, só revelando-os aos iniciados, e ainda assim com muito pudor e elevadas exigências. Foi só com a invasão alexandrina que os segredos egípcios começaram a ser devassados pelos gregos, mas, como vimos a ideia de reencarnação já existia na Grécia quase trezentos anos antes disso, o que nos força a buscar outras fontes de influência.

Provavelmente foi Pitágoras quem levou a crença na reencarnação ao discurso filosófico. A ideia da reencarnação foi então associada à de um ciclo natural, o “retorno” comparado ao movimento regular dos astros.
Os discípulos de Pitágoras modificaram e desenvolveram muito a crença na reencarnação. Digno de nota neste sentido é o fato de pregarem que a alma só poderia reencarnar como humana, não mais como animal. (pg. 43)
A crença na reencarnação produzia o efeito incomum de fazer com que os pitagóricos respeitassem as mulheres e os escravos.
Píndaro foi o responsável por associar a qualidade da vida futura ao padrão moral do indivíduo. (pg. 44)
            Quando o reencarnacionistas mais famoso da Grécia, Platão, desenvolveu suas ideias, a crença já estava, portanto, bem consolidada. (pg. 46)
            Porfírio e seu discípulo Jâmblico definiram que a alma não poderia reencarnar como animal, simplesmente porque para ela as noções de punição e recompensa não são cabíveis, já que são inconscientes. (pg. 51)

Gnose e maniqueísmo.

            Muitos cristãos, e notadamente Hipólito de Roma, interpretavam como reencarnacionista a passagem em que Jesus identifica João Batista a Elias. (pg 55)
            Mani, criador do maniqueísmo, acreditava ser o unificador das três grandes religiões da Pérsia: o zoroastrismo, o budismo e o cristianismo.
            Em geral, para ele, a transmigração das almas é uma imposta a todos os seres. E esta lei é uma chance e punição ao mesmo tempo. (pg. 56)
            Os eleitos, aqueles que se livraram de todos os elementos sombrios da alma, não são mais obrigados a renascer.
            A crença maniqueísta, que se estendeu de Portugal à China, desapareceu em poucos séculos, mas teve ecos entres os cátaros e os bogumileus.[2] (pg. 57)

Celtas e germanos.
           
            Os diários de César na Gália já relatam ser a reencarnação uma crença vulgarizada entre os celtas. Diodoro da Sicília afirma que o desprezo dos gauleses pela morte é fruto direto desta crença. (pg. 58)
            E assim Lucano descreve os germanos: “são de todo modo este povo, o qual se curva ao grande urso, felizes em sua loucura, pois estão imunizados contra o pior dos pavores, o medo da morte. Com isto se lançam empolgadamente contra uma espada, pois a morte não tem lugar em seu coração, e para eles é covardia apegar-se a uma vida que logo devem recuperar.”
Também a Edda e as sagas nórdicas deixam claro que esta crença não se confunde com uma “participação no todo”.
Na saga de Siegfried, quando Hagen abençoa Brunhilde, ele pede aos céus que ela possa renascer muitas vezes. Aqui não apenas fica clara a crença na reencarnação, mas, em oposição à crença indiana, ela é vista como uma dádiva.
A canção de Helgi diz assim: “Havia um rei Hogni, cuja filha era Sigrun. Ela era Swawa renascida. É uma crença muito antiga a de que os homens podem renascer, mas hoje isto é tido como a velha loucura das mulheres. De Helgi e Sigrun se narra que eram renascidos. Ele se chamava então Helgi, e ela Kara, filha de Halfdan.” (pg. 59)
O próprio Carlos o grande foi assim nomeado por acreditar-se ser Carlos Martelo renascido. (pg. 60)

Obs: Não apresentaremos o capítulo sobre reencarnação entre os judeus e muçulmanos, visto que o segundo grupo já foi tratado em nosso artigo Espiritismo e Islamismo, ao passo que a reencarnação no Judaísmo é hoje bem pesquisada, como prova o livro de Severino Celestino da Silva, Analisando as traduções bíblicas. O capítulo sobre o Cristianismo também começa com passagens bem conhecidas dos espíritas. Retornamos, portanto, a tradução a partir da Renascença.
           
            Após a presença inconfundível de Giordano Bruno no resgate das ideias gregas sobre a reencarnação, Francisco Mercúrio van Helmont é a presença mais marcante deste grupo.
            O importante aqui é notar que Leibniz, amigo de van Helmont, domou desgosto pela ideia de reencarnação, ao que parece, pelo excesso de esoterismo com que este a expunha. (pg. 107-108)

Capítulo VI: A caminho do centro da vida espiritual europeia.

O pietismo radical.

            Os temas da origem e destino da alma, e suas relações com as criaturas visíveis e invisíveis, eram centrais neste período. A ideia de uma pena eterna no inferno era rejeitada não apenas por muitos iluministas, como por teólogos pietistas. (pg. 111)
            Digno de nota são os debates pitagóricos realizados em Hale, centro do pietismo e do iluminismo nascentes. Em torno destes debates se reuniram os grandes nomes do jurista Christian Thomasius, do médico George Stahl e do teólogo Johann Buddeus. Ao passo que eles mesmos não acolhiam a ideia favoravelmente, trouxeram o debate para o centro dos interesses acadêmicos. (pg. 112)
            Enquanto as ideias de van Helmont e da Cabala judaica se propagavam, a reencarnação tornava-se mais e mais popular.
            Entre os pensadores que considera a transmigração de almas ao menos como teoricamente interessante está o escocês David Hume. Ao analisar as teorias sobre a imortalidade, ele conclui: “A metempsicose é o único sistema deste tipo que merece ser ouvido pela filosofia.” (pg. 120)
            O filósofo holandês Hemsterhuis, por outro lado, abraça a teoria da reencarnação de forma incondicional. Ao final de sua ascensão, a alma está na esfera divina, apesar de não se igualar jamais a Deus.

Obs: Segue-se uma longa exposição do papel decisivo de Lessing na divulgação da reencarnação entre os alemães. Mas este papel já está parcialmente exposto em nosso artigo Espiritismo e filosofia alemã, e, além disso, foi bem explorado em minha tese de doutorado, da qual futuramente pretendo apresentar fragmentos aqui.

Christoph Wieland estabeleceu pela primeira vez a ideia de que pessoas simpáticas são almas que se reencontram de uma para outra vida, enquanto as grandes antipatias espontâneas seriam motivadas por inimizades passadas.
Estimulado pelo próprio Wieland e por seu cunhado, Schlosser, Goethe também confessou sua atração pela ideia de reencarnação. Em carta ao primeiro ele confessa não saber explicar o poder da senhora Stein sobre sua alma, a não ser pela noção de múltiplos renascimentos. (pg. 134)
Em uma visita a Boisserée, Goethe afirma já ter vivido sob o império de Adriano. “Tudo o que é romano exerce sobre mim uma atração nada casual”. Boisserée respondeu a Goethe: “também estou certo de já ter vivido no século XV”.
Não menos importante é o símbolo do Homúnculo no Fausto de Goethe. A criatura percorre todo o caminho do reino mineral ao vegetal, deste ao animal, do animal ao humano, e, finalmente, deste ao divino. (pg. 136-137)
Kant em seu História geral da natureza e teoria do céu, demonstra não apenas crer na reencarnação, como também na transmigração de planetas. (pg. 139)
Por esta época inicia a repercussão mundial dos escritos e dos fenômenos ligados à Emanuel Swedenborg. (pg. 143)
            Com ele não apenas se tratava da reencarnação, como da comunicação com os mortos. Estes, inclusive, testemunhavam em favor da pluralidade das vidas sobre a terra.
            Christoph Oetinger, que traduziu várias obras de Swedenborg para o alemão, afirmava que os planetas são “jardins de espíritos”. (pg. 144)
            O século XIX já principia, portanto, com amplo debate sobre a reencarnação. A chegada de relatos, pessoas e textos do Oriente apenas intensifica o processo que já estava plenamente difundido. Estas noções mais orientais ou panteístas aparecem, por exemplo, em Schopenhauer e Nietzsche. (pg. 155-156)
            O compositor Richard Wagner, talvez sob inspiração de Schopenhauer, talvez pelas leituras das velhas sagas nórdicas, expõe teorias reencarnacionistas em seu Anel dos Niebelungos. Numa curta passagem de Parsifal, o cavaleiro Gurnemanz diz: “Aqui vives hoje, talvez de novo. Com forte culpa de pretérita vida, que os de lá ainda não te perdoaram. Esforça-te, então, arduamente nestes feitos, pois a cavalaria é a nossa cura, ela promove o bem e, seguramente, em nos servindo, estarás também ajudando a ti mesmo.” (pg. 170)


[1] Os titãs se opõem aos deuses e representam tudo o que é caótico, forças naturais cegas, violentas e irracionais.
[2] Grupo medieval radicado nos Bálcãs e que, à semelhança dos cátaros, criam na reencarnação e na vida como uma guerra entre o bem e o mal, a luz e as trevas.