segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Confúcio, o organizador do leste

Chow Yun Fat como Confúcio



O sábio deseja ser lento ao falar e rápido ao agir[1]

Há cerca de 2600 anos atrás a China vivia tempos turbulentos e decadentes que em muito lembravam a sociedade atual. Assim como os gregos do mesmo período, os chineses viviam em uma sociedade fragmentada onde barões e pequenos lordes possuíam quase todo o poder econômico, e os governos nacionais eram distantes e indiferentes às dificuldades do interior e do campo. A confluência de riqueza, produzida pelo alto grau de urbanização e pela divisão dos campos em unidades controláveis pelos barões, e corrupção gerada pela falta de fiscalização sobre estes mesmos barões, ocasionou todo o tipo de excesso dos magnatas oligarcas, que, então, dispunham impiedosamente da vida dos camponeses e citadinos, além de se entregarem a vícios inumeráveis.
Lao Tzu, abismado com a perversão dos mandatários, estabelecera já em 700 a.C. a mais liberal de todas as doutrinas políticas, postulando que o maior bem da parte dos governantes seria não agir. Ele certamente não teria se escandalizado mais se visse hoje um país com numerosos políticos cuja única função é a de alterar nomes de ruas e votar aumentos para si próprios, mas talvez não deixasse de nos olhar com justa repugnância por elegermos jogadores de futebol, comediantes e cantores como nossos representantes.
Enojado ou resignado o mestre Lao proporia indubitavelmente um maior afastamento da vida mundana e dos interesses rasteiros do comércio e da política como soluções para o descalabro. Como Vergílio e Rousseau, desesperara-se com a vida urbana e imaginava uma bucólica restauração da vida campesina, se possível selvagem.
Confúcio, entretanto, era de lavra inteiramente diferente do mestre. Ele entendia ser o papel do sábio a reforma da sociedade, não o isolamento dela. Sem fazer julgamentos de valor quanto a estas duas atitudes, até porque o estilo monástico de Lao Tzu não deixa de despertar em nós infinita reverência, é preciso reconhecer a coragem de Confúcio em abraçar uma tarefa insólita tal qual a de reformar a ordem moral de uma cultura que sucumbia.
Antes mesmo de saber que estava grávida, a mãe de Confúcio havia recebido a visita de um espírito avisando-lhe que haveria de dar a luz a um grande sábio.[1]  E durante a sua adolescência, diz-se, já recebia discípulos de várias partes que nele buscavam orientação para uma vida perfeita.
Confúcio se considerava um ministro de Deus na terra, embora quase nunca falasse de Deus. Sua doutrina lembra algo entre o estoicismo e o espírito clássico grego, conforme o manifestam Pitágoras ou Parmênides. Seu Deus não é um pai amoroso como o do Cristo ou um Uno de pura beleza como o de Platão, mas um Soberano bem ao estilo do Velho Testamento, e ainda mais distante. Confúcio via nos céus uma majestade da qual não se deveria falar em excesso, e para quem a piedade é a virtude impoluta do servo.
Não estranha que sua divindade seja tão enigmática aos olhos ocidentais, ainda hoje. Enquanto os europeus se assemelhavam aos selvagens mais primitivos e os próprios gregos andavam nus e organizavam bacanais, a China era um lugar repleto de burocratas, funcionários públicos com camisas de mangas longas e colarinho apertado; a nudez, mesmo parcial, parece ter desaparecido há vários milhares de anos. A imoralidade e a violência eram comuns, mas reservadas a ambientes próprios como os haréns dos imperadores, os campos de batalha e os bordéis. O pudor dentro ou fora de casa, a compostura e a etiqueta eram a regra de uma substancial parte da população. Daí ser o seu Deus uma expressão da decência, da honra e da nobreza de espírito, uma mistura de Jeová, Zeus e algo mais reservado, mais civilizado.
Quanto aos sacrifícios os chineses sempre se ativeram à busca por boa sorte, mais do que por barganhas. Suas oferendas e rituais são propiciatórios, não expiatórios.[2] Nós ainda hoje fazemos nossos sacrifícios na forma de promessas aos santos e deuses – Se eu obtiver isso, te pagarei com uma vela! – , etc. é uma relação de desconfiança para com os deuses, e demonstra uma índole comercial, talvez herdada do sensualismo da religião judaica. Parece-nos tolo investir em rituais que podem não dar em nada... Com os chineses é e sempre foi diferente. Os principais sacrifícios e oferendas são oferecidos antes dos empreendimentos. Não há desconfiança no caráter dos deuses e espíritos, e se o pedido não for respondido adequadamente a responsabilidade é apenas do fiel. A relação é a da mais absoluta confiança nos seres divinos. – Se quero algo, pedirei a proteção dos deuses para a empresa, se eu a merecer e/ou pedir corretamente eles me concederão alguma graça.
Isso não significa que os chineses dessem menos valor aos seus rituais. De fato eles parecem lhes dar muito mais valor, e antes da revolução comunista praticamente ninguém fazia nada sem antes se certificar de estar devidamente munido de amuletos, augúrios e rituais apropriados para garantir a sorte e o sucesso.
A ética chinesa não nos soa menos estranha. Escassa de romantismo, ela não nos instiga a admiração ou o amor, mas o respeito. Esta diferença provém de um senso prático profundo. Admiração e amor podem ser impossíveis, mas o respeito está ao alcance de qualquer um. Podemos respeitar nossos semelhantes por apreço à nossa própria educação, como muitos ocidentais sempre fizeram. Podemos ver em alguém um cretino, um torpe, e seria preciso uma grande elevação espiritual para o apreciar em algum sentido, mas podemos nos educar o bastante para não o desprezar, humilhar ou punir pelo incômodo que nos causa. Ao passo que Lao-Tzu recomendava fazer o bem aos inimigos, Confúcio se abstinha de lhes fazer mal, e dizia: “Se retribuirmos o mal com o bem, com que haveremos de retribuir o bem?”[3].
Esta dureza moral tem, como sempre, bases metafísicas na concepção de Deus que acabamos de expor. O Deus de Jesus, Lao Tzu ou Platão é um Deus da compreensão e da misericórdia, pois é o jardineiro de todos os seres. O Deus de Confúcio e de Moisés é o juiz ou rei que impõe a lei social e espera o seu cumprimento. Os maus não são nossos irmãos em aprendizado, senão os súditos ingratos de um soberano a quem tudo devem.
Uma moral mais dura e legalista acarreta em maior interesse sobre a vida prática. Na verdade ela quer ser o braço da lei divina no mundo, corrigindo as mazelas e endireitando os pecadores para que tudo volte à ordem original. Esta perspectiva poderia ter ocasionado inúmeros problemas e revoltas como os que a expectativa do Messias insuflou na Palestina, mas Confúcio lhes deu uma fórmula tão brilhante que o instinto de indignação se converteu, não em revolta, mas em esmero: ao contrário do Deus guerreiro de David, a majestade confuciana é servida exclusivamente pela ordem. Não há como produzir ordem através da desordem, e para combater o mal é preciso nada menos do que a perfeição da conduta. Nem a caridade que converte o mau por amor, nem a guerra santa que o expurga sob a espada dos justos. A religião de Confúcio inaugurou no mundo uma forma inteiramente distinta de lidar com o mal, e que consiste em anulá-lo. Desta forma, o enfoque moral não está em perseguir ou transformar a maldade em bem, mas em impedir que ela seja possível.
Desde o começo esta ideia deve ter soado utópica, e Confúcio estava tão ciente da desconfiança que sua proposta causaria que a embasou na mais cristalina razão prática, social e política, impedindo-a de cair no plano teórico onde soaria bela, sem produzir qualquer fruto. Ao contrário do Estado utópico de Platão, a ordem social de Confúcio não exige um rei filósofo ou qualquer outro expediente que possa ser frustrado. Ela deita, bem ao contrário, sobre a cultura, a educação pública, a religião institucional e todos os mecanismos mais objetivos de regulação do comportamento, ignorando aqueles aspectos espirituais da ética (o sentimento), da política (a justiça) e da religião (a mística).
Esta filosofia inteiramente “mundana” podia ser facilmente compreendida e praticada por qualquer um, e aí a sua força. A religião, sobretudo, foi organizada, sintetizada e reformulada de tal maneira a expressar o ethos confuciano de respeito, moderação e disciplina. A teoria política aproximou-se do legalismo, diminuindo os desmandos e arbitrariedades dos governantes e instaurando, não um Estado de Direito, mas uma cultura do direito. Suas reformas sociais ampliaram tanto a classe letrada que, na prática, formou-se o que os teóricos da democracia concluiriam vinte e quatro séculos depois sobre os benefícios da ampliação da classe média como mecanismo de controle sobre a nobreza.
Ao invés de uma igreja nacional, o estado inspirado por Confúcio construiu escolas públicas. O templo confuciano é a escola de administração pública.

Ao realizar estas reformas Confúcio criou um sistema quase infalível de preservação da cultura. Ele tem a vantagem, sobre todos os outros sistemas políticos, de ser realista e meritocrático. É realista porque reconhece que muitos não desejarão ou poderão participar da vida política, por isso não exige a sua participação. O povo comum não se interessa por política, e arrastá-lo para ela traz sempre consequências desastrosas. Os poderosos, por sua vez, sempre existirão, e é imatura criar um sistema que tente impedir os ricos ou militares de, eventualmente, tomarem o poder.
É, certamente, uma filosofia pessimista, que objetiva mais anular o mal do que promover o bem. Afinal, para Confúcio, a natureza humana é essencialmente fraca e corrupta: “Jamais conheci um homem que amasse mais a virtude do que as mulheres.”[4]
A melhor solução, portanto, é criar um sistema tal em que o poder seja distribuído pela classe dos burocratas. Assim, o tirano detêm uma parcela grande de riqueza e poder, mas depende do sistema legal e burocrático para que as coisas funcionem. Os generais se sentavam no trono após um golpe de estado para descobrir de maneira frustrante que suas ordens não eram mais expedidas imediatamente por seus emissários e subordinados, mas submetidas a conselhos, atreladas a rituais e acareações que podiam, ao gosto dos funcionários, impossibilitar o governo. Tiranos benquistos e com mais habilidade política conquistavam conselheiros e funcionários rendendo-lhes o devido respeito, bem aos moldes de hoje, e assim conseguiam governar. O camponês, o soldado, o comerciante e o artesão nada precisavam saber de política, e também não podiam se revoltar sem antes aturar uma boa dose de meses de leitura. Com isto a política estava virtualmente livre da insensatez das massas.
É bem esta tônica que se encontra nas passagens principais como: “Se governas o povo pela lei, e os mantêm em ordem pelas penas, ele evitará a pena, mas perderá o senso de vergonha. Mas se os governares pela tua excelência moral e os mantiveres em ordem pelo decoro da tua conduta, o povo reterá seu senso de vergonha, e se esforçará por viver conforme os padrões.”[5]
 Este é bem o tipo de moral que não nos arrebata o sentimento ou atiça nossa esperança romântica, mas o seu realismo racionalista e o seu zelo refinado não nos deixam apáticos. De fato, esta e outras manifestações de um “puritanismo maquiavélico" nos constrangem e fascinam.
Também as afamadas paciência e resiliência chinesas encontram nos Anacletos suas melhores expressões: “O mestre disse: Aos quinze assentei minha mente na sabedoria; aos trinta eu perseverava; aos quarenta fui libertado das dúvidas; aos cinquenta entendia as leis celestiais; aos sessenta tinha um ouvido dócil; aos setenta podia seguir os desejos do coração sem transgredir a lei.”[6] Quem chamaria isto de otimismo? Que ocidental colocaria o conhecimento celestial e décadas de labor intelectual e moral como pressupostos a simples capacidade de adequar o coração ao direito? De fato, há poucos cristãos imbuídos desta índole pascalina, pois a juventude de nossa raça faz de nós ou indiferentes ou excessivamente empolgados com a vida moral. Ou supomos orgulhosamente estarmos assentados na perfeição moral, como os fanáticos cristãos e islâmicos que imaginam agradar a Deus imediatamente após a conversão, passando a zelar pedantemente por regras que não vivenciam; ou executamos nossas cerimônias com a indiferença de quem não tem outra opção.
Como verdadeiro filósofo, Confúcio entende que não há concessões e exceções em se tratando de moralidade. O certo e o errado não são relativos, nem podem ser suspendidos conforme nossas conveniências. “O homem honrado jamais se esquece da virtude, mesmo no momento das refeições. Em tempos de pressa, ele se apega a ela; na época de grande perigo, ele se apega a ela.”[7]
Inúmeras passagens demonstram que este conceito de virtude se resume na cordialidade. O recente filme sobre a vida de Confúcio, uma obra prima extremamente recomendável, nos dá esta imagem peculiar da santidade chinesa. Não sentimos em momentos algum o espírito heroico europeu ou a aura mística dos judeus. Não é uma história de milagres ou de grandes sacrifícios. Confúcio vive bem, embora com frugalidade, não desafia as instituições, como Cristo, mas procura atrair para si os que estão dispostos a se corrigir. A imagem do sábio, na profunda interpretação do genial Chow Yun Fat, é a da gentileza, paciência e mais extrema polidez. Sua energia nos dá a mesma impressão dos textos, a de uma constância inabalável. Em Jesus a santidade é serena, mas expansiva. Há rompantes de tristeza, indignação e admoestações severas e imediatas aos erros dos discípulos. Em toda a personalidade do Cristo vemos o caráter mediterrâneo de um herói e de um líder nato, de alguém que sem o menor receio assume a postura de profeta; a santidade coincide com bravura de um chefe ou patriarca. Em Confúcio, como em outros mestres chineses, vemos a santidade quase tímida, temerosa de se afirmar. As emoções estão internalizadas naquela forma tipicamente oriental que nos soa indiferente ou ensaiada. O santo ouve os maiores disparates e observa as piores injustiças com expressão imperturbável, para só depois pedir licença para falar com muitas reverências com as mãos e a cabeça. O ensinamento principal não é o discurso que se segue, mas este comedimento, esta etiqueta que a tudo resiste; a santidade coincide com a civilidade.
O desenvolvimento deste tipo asiático de santidade não se dá através de experiência e provação, mas de paciente estudo. “Quando vires um homem de valor, pensa em subir ao seu nível. Quando vires um homem sem valor, olha para dentro e examina a ti mesmo.”[8] Desta forma não há desculpa para a falta de educação moral. Para se obter um aprendizado moral constante basta a companhia de duas pessoas. Olhamos para uma e vemos uma qualidade que podemos imitar; logo olhamos para a outra e vemos um defeito que podemos evitar reproduzir. [9]
         Quanto à vida prática, Confúcio era frugal, mas criterioso. Podia comer somente arroz, mas não aceitava nada que não fosse fresco e bonito, e recriminava os que qualquer coisa consumiam. Suas roupas podiam ser velhas e rotas, mas limpíssimas e cuidadosamente conservadas e dobradas. Dizia-se que seu vestuário era o de um mendigo, mas seu asseio e posturas os de um nobre. Por diversas vezes dormiu em estábulos e cavernas, mas os limpava e saneava por muitas horas antes de se instalar. A vassoura era um instrumento permanente da bagagem do santo. Estes elementos estão entre os que com mais sensibilidade foram retratados no filme.
         O que talvez tenha ficado marcado como a parte principal de seu ensino e personalidade, contudo, foi o tradicionalismo. As passagens que louvam a piedade filial, o cuidado e o respeito para com os idosos e o amor ao templo e aos rituais se repetem de forma quase entediante. Dezenas de anedotas falam da visitação a funerais, e insinuam uma compaixão especial por pessoas em luto. Viuvez, orfandade e, principalmente, pais que perdiam os filhos pareciam a Confúcio as situações mais dignas de compaixão e consideração. A morte de amigos também era considerada uma dor terrível.
         Em relação aos espíritos era econômico e pragmático: “Se ainda não comecei a entender os vivos, como esperar que eu compreenda os mortos.”[10] Deixava, portanto, os assuntos escatológicos e místicos aos discípulos de Lao Tzu, que neste campo se especializavam. Esta disciplina em manter o foco pragmático de sua investigação ressoa virtuosamente com a própria força prática do ensinamento que ele queria transmitir.
         Justiça seja feita, o pragmatismo confuciano não significa desprezo pelos assuntos espirituais ou abstratos, e sua importância se comprova pelo fato de agora, vinte e cinco séculos depois, continuar a ser o sistema mais estudado e celebrado da China. Os últimos trinte ou quarenta anos viram uma impressionante renascença confuciana que promete crescer nas próximas décadas. Com o retorno da China ao ponto culminante da civilização terrena, este pensamento deverá se tornar cada vez mais parte do nosso.

Referências:

CONFUCIUS. Analects of Confucius. By William Edward Soothill. Yokohama: Fukuin, 1910.
Obs: Este livro é o melhor de quarto edições consultadas. O organizador apresenta uma primorosa introdução contendo informações históricas e biográficas, e acompanha o texto principal com meticulosas análises linguísticas que justificam a escolha das palavras para a versão inglesa.

Confúcio, o filme. 2010. Obs: uma superprodução que se dedicou intensamente a reproduzir o quadro cultural e a personalidade de Confúcio. A biografia parece ter sido montada com base em relatos dos discípulos e comentadores posteriores, além dos textos principais.


[1] .Analects of Confucius. p. 24.
[2] Ibid. p. 30.
[3] Ibid. p. 32.
[4] Ibid. p. 445.
[5] Ibid. p. 147.
[6] Ibid. p. 149.
[7] Ibid. p. 225.
[8] Ibid. p. 237.
[9] Ibid, p. 353.
[10] Ibid. p. 521.