quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A filosofia de Jesus

O Espiritismo tem na pessoa de Jesus o ideal e exemplo de desenvolvimento máximo do espírito; as demais denominações cristãs o tem como Deus-Filho, pessoa da Trindade Divina; os estudiosos dedicados a uma análise histórico-crítica do Novo Testamento, nem sempre movidos por compromissos de fé, tomam-no por seu papel social, não ignorando, porém os seus dotes e capacidades singulares; islâmicos consideram-no um dos mais importantes profetas; budistas e hinduístas diversos já se pronunciaram sobre ele como sendo um grande iluminado, guru e mesmo um ser divino. 
De qualquer que seja a perspectiva adotada, seria preciso desconsiderar completamente o relato dos Evangelhos para desprezar ou mesmo reduzir ao plano de pensador comum a figura de Jesus. Faz sentido, portanto, supor que um indivíduo tão universalmente admirado e respeitado pelo seu ensino, a ponto de influenciar sobremaneira a cultura ocidental, com reflexos sobre outras, tenha uma filosofia própria.
Tratar da filosofia de Jesus, no entanto, continua a ser um trabalho extremamente ingrato, porque paradoxalmente esse complexo e inesgotável pensador é tido pela maior parte da tradição filosófica como revelador religioso apenas, ao qual não se aplicariam as categorias do discurso filosófico. Ainda que essa conclusão absurda tenha sido contestada por inúmeros nomes ilustres, a concepção vulgar, incluindo a cultura acadêmica, repete os papéis estereotipados atribuídos pelos teólogos mais ortodoxos, sejam os católicos ou protestantes, de Cristo e dos apóstolos em seus papéis dogmáticos.
Estranhamente o pensador que orienta toda a ética, metafísica e psicologia do Ocidente, especialmente querido pelos racionalistas de todos os tempos, teve a sua profundidade filosófica pervertida pelas disputas clericais iniciadas pouco após a sua morte. E com isso não quero nem me referir aos pontos em que evidentemente Jesus possui ascendência absoluta sobre o pensamento humano, tais como a questão da imortalidade, a ética, a dignidade humana, a teologia, o autoconhecimento, etc. Prefiro levantar um problema mais grave da metafísica e da ontologia, onde suas ideias tão frutíferas continuam a oferecer ilimitados contributos, sem que sejam ainda reconhecidas.
Um daqueles pontos nos quais a razão parece estar em conflito consigo mesma, para reproduzir a feliz expressão de Kant, é o conflito entre livre-arbítrio e determinismo. Questão que deve a sua formatação moderna, senão a sua essência, aos problemas e soluções levantados pelo pensamento de Jesus. Em nenhum outro pensador os dois elementos estão tão presentes, tão harmoniosamente unificados, de modo que se qualquer outra influencia tivesse sido determinante nesta questão, a filosofia deveria ter pendido para um dos dois. Se estoicos ou epicuristas tivessem prevalecido na orientação da tradição europeia, tenderíamos para o determinismo. Se o platonismo ou o aristotelismo tivessem prevalecido, seríamos excessivamente confiantes no nosso poder. 
A síntese de Jesus equilibrou de tal modo essa questão que o conflito passou a ser, ou insolúvel ou marcado pela igualdade complementar das duas forças, correspondendo esta última variante ao que se produziu de mais elevado na filosofia e teologia humanas.
A defesa que Jesus faz do livre-arbítrio transcende todas as categorias segundo as quais se havia julgado o poder do homem, elevando-o às alturas da Divindade, fazendo do homem até então visto como animal, ou na melhor das hipóteses cidadão, o herdeiro do Deus único e absoluto. É tão grande a liberdade, na concepção de Jesus, que a fé do homem pode transportar montanhas, e todas as forças de sua alma estão sob o seu controle.
A fé, aliás, é exaltada sem qualquer restrição, sendo que “tudo o que for pedido com fé, será obtido”[1], e o rabi galileu atribuía as curas e milagres à fé dos requerentes, lembrando-lhes que “fora feito segundo a sua fé”[2]. Em nenhum momento Jesus diz aos discípulos que eles são incapazes de repetir os seus feitos por ausência de talento ou habilidade, mas garante-lhes, ao contrário, que nada lhes é impossível, e os repreende sempre por não terem a fé suficiente para tal ensejo.[3]
Quanto ao patrimônio íntimo Jesus inovava colocando todos os sentimentos e pensamentos sob a tutela da consciência. Enquanto a ética lidava até então com atos, Jesus ressalta a liberdade de consciência, estendendo a nossa responsabilidade aos “pecados cometidos em pensamento”[4]. Recomendando a vigilância, estava ele afirmando a necessidade de regrar as emoções e ideias. Transformando o amor em mandamento, ele contrariou completamente a ideia de um amor passional ou fruto de inclinação, gosto, tendência e lançou as bases ainda incompreendidas da reforma emocional. Ao impor o amor a Deus e ao próximo como mandamentos maiores, assegura-nos de que qualquer pessoa tem o governo de seus sentimentos, sendo responsável pela amargura, aridez ou floração interior. Pregou a verdade que liberta, e afirmou que os homens andavam até então como escravos de seus pecados[5], estando libertos a partir de então pela revelação de que o espírito é senhor de seu destino, a par de todos os hábitos, costumes, instintos, atavismos e compromissos sociais.
Ao mesmo tempo e sem diminuir em nada esta prerrogativa de liberdade, Jesus apresentou uma visão da Providencia tão absoluta, onipotente e imanente a todos os fenômenos da criação que mesmo os Judeus se espantavam com a sua convicção de que todas as coisas são determinadas por Deus. Recomendou a resignação incondicional às agruras da vida e às provações enviadas pela divindade. Apontou Deus como o Pai e Senhor da vida, em cujas mãos devemos nos depositar com desassombro, sem preocuparmo-nos com o dia de amanhã.[6] Reuniu no sublime Sermão da Montanha as condições da iluminação com destaque para a entrega, abnegação e confiança na direção que Deus dá ao mundo, dando a entender que o futuro está em Suas mãos. Orou sempre a Deus que tudo transcorresse conforme a Sua vontade[7]. Baseou a própria grandeza na destruição da vontade pessoal e na submissão a vontade do Pai, apresentando-se assim como revelação máxima de Deus, na exata medida em que não reconhecia ser nada fora Dele.[8]
Essa doutrina de implicações oceânicas gera há dois mil anos um estarrecimento da razão. Os que a aceitaram de modo humilde encontraram nela a serenidade e a consolação do determinismo divino e a responsabilidade e grandeza da liberdade individual. Os muitos que tentaram equacionar as suas intrincadas estruturas reduziram-nas às próprias limitações e enfatizaram os polos correspondentes as suas preferências.
Santo Agostinho concentrou-se na ideia de Deus, depositando Nele, causa de tudo, a decisão sobre a salvação humana, e deixando ao livre-arbítrio apenas a decisão entre aceitar ou não a eleição. Pelágio, enfocando a divindade e responsabilidade do indivíduo, colocou nas mãos do homem a salvação ou queda, confrontando a ideia de Agostinho sobre a eleição pela Graça de Deus, e estabelecendo a necessidade de obras para a elevação do espírito. Graças ao poder político do bispo de Hipona, Pelágio foi fortemente perseguido e finalmente julgado como herege, pesando fortemente sobre os ombros do santo africano a responsabilidade pelo desequilíbrio filosófico e doutrinário do Cristianismo.
Lutero e Erasmo, os reformistas protestante e católico, respectivamente, repetiram a mesma disputa mais de mil anos depois, dando sinais de que a humanidade pouco evoluiu na interpretação da filosofia de Jesus. Enquanto Lutero condenou o livre-arbítrio em seu livro De servo arbitrio (Sobre o arbítrio escravo), Erasmo o exaltou em seu livro-resposta De libero arbitrio (Sobre o livre-arbítrio). Lutero acreditava que a única coisa em poder do homem é a sua entrega a fé. Se o fizesse, o homem converter-se-ia por força do poder de Cristo, e a fé revelada o transformaria. As boas obras seriam uma mera consequência desta conversão. Erasmo, racionalista e liberal, rebatia que haviam muitas interpretações conflitantes sobre as escrituras, e que era impossível distinguir com certeza a fé correta da equivocada, a aparente da sincera, e que por isso a razão deveria fiscalizar a fé, e o homem deveria manter o seu livre-arbítrio e juízo crítico, embora aceitando a orientação das escrituras. Erasmo também enxergava passagens em que Jesus sugere o livre-arbítrio, e por isso concluía que, na dúvida, o homem deveria agir como se a salvação dependesse de suas obras, esforçando-se por si mesmo como se não estivesse salvo, ao invés de entregar-se a ideia dogmática de estar garantido pela fé.
           Ainda outras vezes a história da teologia e da filosofia polarizou-se numa dicotomia do pensamento de Jesus, em detrimento da completude magnífica que a sua síntese harmônica oferecia. Mas, conquanto essas diástoles do pensamento tenham provocado contendas, foi também importante para o exercício do raciocínio que tais divisões didáticas e simplificadoras da dialética cristã ocorressem. Se ao menos pudermos aprender com esse processo de evolução histórica, podemos evitar a continuidade da cisão, e reconstituir a metafísica de Jesus em sua potencia integradora original, onde livre-arbítrio e Providencia implicam-se mutuamente, ao invés de se contradizerem.


[1] MATEUS 21:22; MARCOS 11:24.
[2] MARCOS 5:34; LUCAS 7:50 & 8:48; MATEUS 9:22.
[3] Como no episódio em que Pedro caminha sobre as águas, bem como na exortação de JOAO  10:34.:“vós sois deuses, e tudo o que eu faço também podeis fazer, e ainda mais”   E em Marcos 9:23.:“Tudo é possível para aquele que crê”.
[4] MATEUS 5:27.
[5] JOAO 8:33-34.
[6] MATEUS 6:28
[7] Não só na oração do pai nosso como também em MATEUS 7:21 & 12:46-50; JOAO 4:34, e muitas outras passagens mais indiretamente.
[8] JOAO 5:19-38 & 14:8-10. 

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A absolutidade do Cristianismo

É indiscutível que o pensamento ocidental tenha surgido na Grécia. O helenismo é o traço marcante de todas as culturas mediterrâneas após o reinado universal de Alexandre da Macedônia, e essa predominância do espírito grego só fez crescer com a expansão do Império Romano.
Os críticos religiosos e exegetas querem acusar Paulo de “platonizar” o cristianismo. Há inúmeros tratados, cada qual com sua cota de verdade, sobre como o pequeno movimento judaico transformou-se sob a influência de inúmeros intelectuais gregos numa filosofia abrangente. Todos ignoram, entretanto, que o ambiente cultural e intelectual da Palestina à época de Augusto já era marcadamente helenizado.     
Historiadores mais cuidadosos como Eduard Zeller nos lembram de que o popular movimento místico e moralizador dos essênios nada mais era do que uma síntese do judaísmo com as filosofias gregas, particularmente o estoicismo e o platonismo. Foi em um desses ambientes que nasceu a Septuaginta: uma comunidade de judeus helenizados do Egito, os quais acrescentaram à Bíblia o nada ortodoxo Eclesiastes. Paulo, como a maioria dos doutores da lei, dominava o grego e o latim. A Síria, a Capadócia, a Lídia e as ilhas gregas eram morada de grandes comunidades judaicas já muito helenizadas, a ponto de permitirem o nascimento de seitas distintas, algumas ecléticas o bastante para abraçar elementos do esoterismo persa, dos mistérios caldeus ou da mitologia egípcia. 
A imagem que Paulo nos passa pelas suas epístolas é a de um enorme cosmopolitismo onde a convivência com todos esses elementos era natural e inevitável. Seria muito ingênuo imaginar que essas influencias não existissem à época de Jesus, mas fossem onipresentes quinze, vinte anos após a crucificação.
A evidência da presença grega na Palestina e na vida intelectual israelita é importante indício de que Jesus, se não amplamente versado em filosofia grega, era ao menos familiarizado com o intercâmbio entre esta e a sua cultura. Os relatos de suas discussões com os sacerdotes do templo de Jerusalém ainda na infância, o domínio das escrituras e a erudição apresentados nos debates com os fariseus, com Pilatos e com Nicodemos atestam a educação invulgar de Jesus. 
Por fim, mas não menos importante, a boa convivência com samaritanos, romanos, gregos, sírios e toda a espécie de interlocutor, sem restrições ou distinções, frequentemente valorizando estrangeiros não judeus em detrimento dos sacerdotes (como na parábola do bom samaritano), ou mulheres em detrimento dos homens, demonstram o universalismo da mensagem de Jesus, em franca contradição com a ortodoxia hebraica e suas tradições. Não foi com esforço ou alterações que Paulo estendeu a Boa Nova aos gentios; foi graças à sua própria essência universalizante.
Não fosse a doutrina de Jesus universal, jamais poderia pretender-se absoluta, e esta é uma exigência das mais essenciais para a religião cristã. A absolutidade do cristianismo, com seus matizes, prós e contras, depende integralmente de sua mensagem não estar restrita a comunidade judaica. Nenhuma das chamadas religiões mundiais, aliás, merece esse posto enquanto restringe a atuação de seu deus ou salvação a um grupo étnico ou cultural. Esta é uma premissa metafísica básica das religiões mundiais: o seu deus precisa ser universal, onipresente. E o cristianismo não quer apenas afirmar a universalidade de seu deus, mas o caráter absoluto da sua revelação.
A questão torna-se extremamente problemática com o advento da modernidade e o confronto com outras religiões mundiais. Ainda mais dramático é o confronto entre a exigência de absolutidade do Cristianismo e o fundo cético e relativista da Modernidade. A crítica histórica e científica das sagradas escrituras gerou o célebre conflito entre ciência e religião, típico e exclusivo da cultura ocidental, embora agora já absorvido por todos os demais povos civilizados. A resistência do clero (não do Cristianismo enquanto tal) contra o avanço do esclarecimento e a reação deste, consistindo numa equivalente exclusão do diálogo com a religião, provocou a cisão do espírito ocidental responsável ainda hoje pela fragmentação do pensamento, perda dos valores e referenciais coletivos, deterioração das noções básicas de identidade histórica dos povos ocidentais, entre outras dificuldades.
Uma delimitação precisa da natureza absoluta do Cristianismo faz-se, portanto, urgente. Sem esta seria melindroso lidar com qualquer aspecto da religião crista, sob risco de desintegrá-la e reduzi-la a uma proposta moral relativa, compatível com as expectativas e exigências filosóficas atuais, ou retrogradar ao estado dogmático e autoritário do absolutismo cristão conforme pregado pela ortodoxia predominante em todas as denominações (romana, grega e protestante) até meados do século XVIII.
De forma sintética a parte “podre” da absolutidade do Cristianismo está na sua exclusividade dogmática, que não dista em nada da exclusividade e absolutismo de qualquer outra religião dogmática, resumindo-se na ideia de que tal é a revelação final e exclusiva para a salvação. No cristianismo ortodoxo isto é tão presente quanto nas mitologias primitivas, já que o conceito mais fundamentalista de trindade afirma uma supremacia da pessoa de Jesus sobre todas as demais revelações. Neste aspecto não há distinções significativas em relação ao Judaísmo, o Islamismo ou o Hinduísmo, também notadamente absolutistas. Esse aspecto negativo e dogmático foi duramente combatido durante toda a Era Moderna, e mesmo antes dela.
Os que melhores resultados apresentaram contra a absolutidade dogmática do Cristianismo foram os neo-protestantes, também conhecidos como protestantes liberais. Esse grupo, conforme definido pelo historiador das religiões Ernst Troeltsch, é composto por inúmeros membros de um movimento tardio de “reforma da Reforma”, que inclui críticas históricas, racionalismo filosófico e científico, e uma teologia cristã mais pluralista. Seus expositores mais reconhecidos são Espinosa (embora não fosse cristão), Lessing, Herder e o Idealismo alemão, mas, no sentido de Troeltsch, esse neo-protestantismo engloba movimentos contra-reformistas católicos (Fénelon, Lammenais, Rousseau, etc), espiritualismo de vários tipos (incluindo o Espiritismo, os Rosacruz, a Teosofia, etc), orientalismos amalgamados ao cristianismo e outras manifestações contemporâneas de crença, viabilizadas pelo espírito individualista e libertário da reforma protestante. 
Enquanto o protestantismo ortodoxo, por assim dizer, elaborou uma nova base dogmática para o Cristianismo, o neo-protestantismo ou protestantismo liberal é a proliferação de interpretações livres do Cristianismo, baseada na nova concepção moderna de que o espírito crítico de interpretação individual da religião é tão melhor quanto mais independente da ortodoxia das igrejas. Nesse movimento está também implícito um retorno ao Cristianismo primitivo da época “pré-clerical”. Os seus adeptos defendem ferrenhamente a necessidade de independência para a interpretação do “espírito” das escrituras, e que toda a forma de ortodoxia corresponde a um condicionamento à “letra”, seja a original, seja a estabelecida pela teologia dogmática.
Arejado pelo confronto com a crítica racional, histórica e cultural, o Cristianismo reestrutura-se ainda, apesar de bolsões conservadores como os do fundamentalismo neo-pentecostal (nossas famosas igrejas “evangélicas”) e católico. Dentro do protestantismo de alto nível, representado pelo Luteranismo, Anglicanismo, Presbiterianismo e outras facções sectárias como os Quaker, e nos centros de estudo mais sérios de outras denominações, predomina o espírito liberal, pluralista e tolerante. 
Uma supremacia arrogante não é mais tolerável entre os cidadãos razoáveis da era do conhecimento e da liberdade, não obstante, a natureza do Cristianismo não se permite privar de uma força absolutizante intrínseca à especificidade de sua revelação. Para compreender o aspecto positivo da absolutidade do cristianismo é preciso identificar as suas características elementares, ou melhor dizendo, aquelas que prescindem de uma apologia dogmática e podem encarar as exigências e critérios modernos sem se desgastar.
Importantíssimo, entretanto, é que este discurso não se prive do viés crítico e pluralista que engrandeceu o Cristianismo moderno e o purificou de todo o seu aspecto dogmático que, ao contrário, nivelou-o com as crenças mais mundanas e o sectarismo típico das ideologias de supremacia étnica e cultural. Um sintoma inconfundível dessa patologia é o menosprezo pelas demais tradições religiosas, e, por isso, é tão importante a estima e o zelo respeitoso por todas as crenças, vistas como revelações da verdade e dignificadas por esta perspectiva. 
A revelação cristã distingue-se das demais sem confrontá-las. É absoluta por incluí-las, não por negar a sua validade. Poder-se-ia mesmo dizer que é absoluta na exata medida em que reconhece todas as demais e a elas se integra. O Cristianismo é absoluto enquanto afirma a divindade de todas as criaturas, a salvação universal, o amor a Deus e ao próximo como mandamento central, a paternidade de Deus em relação aos homens, o perdão incondicional das ofensas, a caridade estendida até aos inimigos, a eficácia da intenção e do sentimento sobre os dogmas e técnicas. Ele traz a revelação da imortalidade geral, da misericórdia irrestrita de Deus, e da ascensão do sentimento sobre a crença, da fé como atitude existencial sobre a fé como adesão a um dogma, da reforma do comportamento pela intenção, não pela exigência social ou ritual.
Mas todas estas características, conquanto sublimes atestados da divindade de sua origem, não o distinguem tanto da parte superior e eminentemente espiritual de outras grandes religiões. A humanidade produziu a contento exemplos de santidade, concepções abrangentes de Deus, explicações complexas e consoladoras sobre o destino humano e o significado da vida. Aquilo que diferencia radicalmente o Cristianismo em sua absolutidade são basicamente dois eventos: a ressurreição e a revelação do Pai na figura do Cristo.
A ressurreição é o acontecimento ímpar na história mundial que comprova a vitória sobre a morte. Nenhuma outra revelação lhe é equivalente, pois os profetas e fundadores de religião sempre gozaram de visões ou audições especiais, privilegiadas, comunicadas aos seus discípulos sob exigência de confiança nestes relatos. A ressurreição é a exposição pública e notória da imortalidade do espírito e da sua independência do corpo, compartilhada irrestritamente diante de uma multidão de discípulos de Jesus no evento da ascensão aos céus.
A conversibilidade de identidades entre Deus e Jesus, e a autorrevelação deste segundo como o exemplo e semelhança do Pai, conforme repetidamente afirmado no Evangelho de João, é a revelação completa e final de Deus, sem superação possível no passado, presente ou futuro. Nisso a teologia cristã desdobrou de forma filosoficamente competente a mensagem básica do Novo Testamento.
Toda a revelação de Deus foi e é feita a um profeta, que a transmite em palavras humanas para a comunidade. Somente com Jesus a revelação foi integralmente exposta em espírito e verdade, já que ao responder à exigência de Filipe, “mostra-nos o Pai”, Jesus deu-se a si mesmo como referência da concretude de Deus diante dos olhos e ouvidos de todos, em exemplo de conduta, pensamento e sentimento perfeitamente divinos. Enquanto todos os profetas e iluminados falaram de sua experiência com o sagrado, Jesus atualizou em si essa experiência, personificando e encarnando os atributos divinos em sua máxima expressão possível neste mundo. Ao trazer o Deus extraterreno e misterioso das alturas para a forma familiar do Pai, converteu-se no Filho modelar imediatamente presente e passível de imitação por parte de seus discípulos, estreitando assim a relação entre o homem e Deus e criando uma ponte permanente entre a Terra e os Reino dos Céus.
Foi assim que respondeu a Filipe: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai. Como dizes tu: Mostra-nos o Pai?”.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A essência do Judaísmo

O filósofo alemão Georg Friedrich Hegel definiu a essência do Judaísmo como a consciência da separação entre o homem e a sua origem. Na figuração personalista do deus de Israel, o homem encontra-se “face a face” com um antagonista, ou “outro” com quem tem uma relação de temor e louvor. A consciência do judaísmo seria, para este filósofo, uma etapa muito avançada da descoberta espiritual humana, pois, em comparação com outros povos, os hebreus teriam a vantagem de reconhecer o drama da diferença. Mesmo as civilizações mais avançadas, a exemplo dos gregos, não teriam no entender de Hegel uma consciência clara da diferença. Os distantes deuses olimpianos ou as deidades indianas, ligadas também a distintos elementos da natureza, falhariam em criar este sentimento concreto de distancia e separação tão claro no Velho Testamento.
Ao contrário dos panteões politeístas, onde os deuses não conseguem ocultar seu mistério, já que estão diretamente ligados a coisas ou atividades distintas, o Deus Supremo de Israel é o inteiramente “outro”, grande e incompreensível demais para a mente humana. Seus atributos são efetivamente espirituais, e não se resumem a patrocinar esta ou aquela profissão, fenômeno natural ou emoção; eles transcendem o mundo, e o homem está no mundo; os deuses do panteão também.
         A essência do Cristianismo, ainda segundo Hegel, só poderia ter nascido das entranhas do Judaísmo. Isto porque o Cristianismo tem como missão reunificar o que estava distinto, unir o separado, e nas religiões onde não havia drama e conflito entre Deus e os homens não havia também sentido em uma reunião. Não diminuindo os méritos das outras religiões, o judaico-cristianismo tem uma poderosa vantagem filosófica, aclarando a diferença intrínseca da subjetividade em relação ao divino, e reconciliando-os.
         Até onde está certo o filósofo? Difícil dizer. Mas devemos nos inteirar da essência do Judaísmo, seja ela qual for, se quisermos compreender o Cristianismo.
         O Judaísmo é definitivamente a religião do deus que se revela ao mundo; não conheceu em suas origens a especulação. E um deus que se revela o faz sempre por um motivo ético, ou seja, mostra-se para influenciar de alguma forma o comportamento daqueles a quem se revelou. Cientes de que o seu deus não se havia revelado apenas para ser conhecido, os hebreus guardaram firmemente as noções de promessa e destino. O Senhor falou aos homens, não para dizer eis-me aqui, mas para enviar-lhes mandamentos, promessas e consolação. Em resumo, Ele mostrou-se para mudar o mundo, não para notificá-lo de Sua presença.
      Todas estas idéias estão entre os fundamentos pétreos do judaísmo. Os mandamentos: aquilo que o deus espera de nós; as promessas: aquilo com que o deus garante recompensar os que cumprem seus mandamentos e se mantêm fiéis a ele; e a consolação: a aliança que deus faz com o seu povo, de estar sempre presente com ele.
         Mas o Velho Testamento inclui muito mais do que a revelação de Deus. Poder-se-ia dizer até que ele é minimamente dedicado à narrar a revelação, e majoritariamente voltado para outros assuntos. Cada um destes assuntos segue seus próprios critérios, lógica e interesses, e os críticos ou defensores da Bíblia cometem verdadeiras barbaridades ao tentarem fazer dela um texto uniforme e coerente.   
Entre as funções dos distintos livros que compõem o Velho Testamento estão: 1- O resumo de toda a cultura de todo um povo. 2- História, não apenas dos judeus, mas de povos vizinhos; 3- Leis; 4- Sabedoria (o mais próximo de uma filosofia judaica); 5-Poesia (Salmos e cânticos); 6- Profecias.
Pois bem, profecias seriam as revelações do deus de Israel aos seus eleitos, versando sobre assuntos propriamente religiosos, como mandamentos, promessas e consolações, ou assuntos de utilidade pessoal e comunitária. Todos os outros cinco elementos são de origem humana, e não é preciso muita argumentação para provar isso. Que os registros históricos estejam apenas secundariamente ligados a revelação divina é uma evidência de princípios. Não obstante, tanto judeus quanto cristãos de diversas denominações incluem elementos da história, leis sociais e costumes descritos pelas escrituras sob a égide da teologia, prestando com isto um terrível desserviço a esta.  
A maior parte dos ataques à Bíblia, todos sabem, objetiva suas narrativas mitológicas, registros históricos imprecisos e leis sociais correspondentes a uma vida pastoril muito primitiva. Embora estes aspectos não tenham nenhuma relação direta com a revelação profética, o fato de a religião oficial estabelecer um vínculo entre as diferentes funções das escrituras gera uma dificuldade tremenda no julgamento por parte de pessoas não especializadas quanto à validade e os critérios de verdade do Velho Testamento. Ainda pior, a forma irresponsável de homogeneizar o Velho e o Novo Testamento como um texto único acaba por denegrir o último, também desmerecido em função dos problemas do primeiro.
         É, portanto, obrigatória uma leitura teológica, histórica e filosoficamente crítica da Bíblia, sem o que a compreensão dos detalhes se torna impossível, e o conjunto, erroneamente indiscernível, se torna obscuro e irracional.
         Para começar, a história concreta do povo de Israel só começa a ser cientificamente comprovável a partir de Moisés (+ou – 1300 a.C.). É difícil saber qualquer coisa sobre o período anterior ao do cativeiro no Egito. Só podemos acreditar que o relato é mais ou menos próximo da realidade, e as histórias de Abraão, Isaac e Jacó foram bem preservadas oralmente. Até Moisés, as mensagens transmitidas aos patriarcas não eram muito distintas das que os religiosos caldeus, gregos e egípcios recebiam. Os anjos eram bem conhecidos dos babilônicos antes dos judeus, e os egípcios eram os únicos a acreditar num Deus único.
Os judeus não eram monoteístas, o que é muito óbvio na leitura do Velho Testamento, inclusive até a época de Elias. Eles tinham na melhor das hipóteses um deus único para o povo hebreu, que se destacava em poder e qualidade em relação aos demais deuses, constantemente demonizados, e cada povo possuía como seu protetor um desses outros deuses. Foi, provavelmente, no Egito que Moisés, ou um grupo de patriarcas judeus, aprendeu a idéia do Deus único (agora sim com “D” maiúsculo), criador do mundo, lição que levou alguns séculos para formar raízes na cultura. Assim, Moisés pôde desenvolver uma história coerente que inclui a gênese do mundo por Deus e as origens do povo judeu.
Naturalmente, a mitologia desenvolvida no Gênese tem o seu grande valor simbólico, como também as mitologias de outros povos, e nos permite não apenas olhar para uma visão de mundo primitiva da criação e funcionamento do cosmos, como também e principalmente extrair informações valiosas sobre a filosofia, as revelações e as intuições dos primeiros profetas judeus.  
Também é Moisés que recebe de Deus para criar leis e regras para o seu povo. Ele estabelece algumas sob inspiração divina (mandamentos) e se esforça para criar outras conforme seu juízo e capacidade. Depois de Moisés, os heróis e profetas de Israel passaram a transmitir informações orais, novamente, com exceção dos Salmos, que eram escritos como poemas de louvor.
Quando Davi se torna rei de Israel, Deus revela-se a ele com a disposição para uma nova aliança com os hebreus. A mensagem diz que chegou o tempo de os judeus viverem em cidades, não mais vagando pelo deserto. Assim exige-se a construção de grandes templos para as atividades religiosas, em torno dos quais devem fixar-se para sempre as tribos.
Repetimos, até aqui poucos desses relatos eram escritos. Havia algumas leis, partes do Pentateuco e salmos em papiro, mas a tradição e histórias mais importantes continuaram a ser transmitidas oralmente, até que a primeira versão da escrituras foram compiladas durante o exílio na Babilônia, em torno de 515 a.C.  Desde então acrescentaram-se ainda livros diversos, como Jeremias e Isaías.
Voltando à essência da religião judaica, sua linha mestra é a manifestação de Deus aos seus escolhidos, os mais fiéis entre os fiéis. Ele garante a descendência de Abraão; salva Noé e sua família; conduz Moisés pelo deserto; alça Davi do pasto ao trono, é a segurança dos profetas; mas a nenhum deles Deus garante a sua bênção gratuitamente, de modo que a necessidade do mérito é cristalina em todas as passagens. 
Escolhidos pela virtude, os missionários permanecem sob o amparo divino enquanto se mantêm na virtude. Não encontram facilidades mundanas, mas amargam vidas ásperas onde fome, miséria, doença e perdas de entes queridos são uma constante (chegando ao extremo com o exemplo do livro de Jó). Não há enganos e falsas promessas ao eleitos do Senhor; seus méritos são espirituais, e assim também sua recompensa; ouvem a voz dos céus, recebem visitas dos anjos, têm sonhos premonitórios, manifestam sinais diante da multidão, mas tudo isto é pela obra, e os judeus mais antigos estavam plenamente cientes disso, na medida em que não glorificam os profetas e patriarcas pelos seus milagres, mas Deus que os elevou e glorificou.
De todas as figuras simbólicas da Bíblia a mais primitiva e uma das mais diretas é a de Sansão. O herói não era apenas forte; era invencível. Podia enfrentar um exército. E a sua incomparável força lhe era garantida pela fidelidade ao contrato que tinha com Deus: um acordo simples de uma única regra.
 O intérprete das escrituras não se deve deixar enganar pelo aspecto infantil da narrativa. O essencial na questão não é o comprimento dos cabelos, e sim o próprio contrato, a promessa. Sua lição moral é a de honrar a palavra empenhada e dignificar a expectativa de Deus em relação aos poderes que lhe foram concedidos. Todo o fiel deve enxergar-se como um Sansão; deve espelhar-se nos patriarcas e profetas, e seguir à risca os mandamentos, que são a forma pública do contrato com os céus.
Nosso esclarecimento científico e a crítica filosófica da modernidade nos fizeram desprezar os simbolismos bíblicos, mas semelhantes ataques só ferem o sentido literal do Velho Testamento. É claro que no sentido fundamentalista dos criacionistas e das massas ingênuas que ainda acreditam nas fábulas do Gênese, da arca, de Jonas na barriga da Baleia, a Bíblia contradiz frontalmente a razão e tudo o que descobrimos sobre o mundo. No seu simbolismo moral, que encerra o seu real propósito, ela continuará sempre atual e rica de significado.
Na simplicidade das imagens bíblicas está o homem colocado diante de seu Criador, com a opção de cumprir as regras que Este transmite ao mundo, de acordo com a compreensão da época e de cada indivíduo. A fidelidade humilde e o zelo sincero são as palmas da vitória quanto a tudo o que se refere ao elemento religioso da vida. E aqueles que souberem manifestar essas virtudes nas pequenas coisas estarão preparados para as grandes missões e provações.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Os mistérios de Elêusis

Elêusis é uma vila antiquíssima, mesmo para os padrões gregos, nas proximidades de Atenas, famosa por seu santuário dedicado a Deméter e pelo culto de iniciados que ali se formou. Esses iniciados dos mistérios eleusianos eram frequentemente pessoas de grande renome e faculdades destacadas, de modo que a inferência geral de que o culto selecionava as almas mais nobres da nação era inevitável. Só esse precedente já seria suficiente para garantir a fama do culto de Elêusis, em analogia com as sociedades secretas modernas, que ao reunirem líderes, artistas e cientistas sob o seu brasão acabam por adquirir uma aura especial.
Cavernas de Elêusis, onde os rituais eram realizados.
O culto torna-se ainda mais interessante quando nos certificamos de suas especiais características e simbolismos, e de que a sua influência foi incomparavelmente maior sobre as personalidades da elite intelectual grega do que sobre a elite política e econômica. Enquanto o oráculo de Delfos era o ponto de peregrinação dos reis e celebridades na busca de orientação, com suas profecias geralmente divulgadas sem maiores precauções, o santuário de Elêusis prescrevia um voto de segredo absoluto sobre todos os seus preceitos. 
Do público geral somente o mito de Perséfone era conhecido, e sem a sua chave de leitura ele não passa de uma história parcamente interessante. O motivo principal desse olvido está no rigor com que eram punidos os levianos que divulgavam os mistérios para o público geral. Em caso de evidente má fé o traidor poderia ser punido com a morte, mas raramente se chegava a tanto, bastando na maioria das vezes o banimento da Ática, confisco dos bens e propriedades e o desprezo e repudio públicos.
 É notório o exemplo de Alcibíades, que bebeu em excesso e imitou para uma plateia também embriagada as cerimônias iniciáticas, tendo recebido todas as punições sociais e materiais cabíveis.
Com isso, perderam-se os princípios essenciais e as ideias mais complexas do culto, especialmente aqueles que se denominavam altos mistérios e eram restritas aos veteranos.  A falta de registro e a fidelidade ao voto de segredo, não impedia, contudo, que os seus membros se declarassem publicamente.
 Grandes nomes da vida espiritual grega, como Ésquilo, Sócrates, Platão e Xenofonte, sabidamente membros do culto, garantiam-lhe a fama, apesar de serem desconhecidos os seus postulados. 
 Posteriormente, com a ascensão de Roma, os mistérios tornaram-se vulgares e empobrecidos, sendo palco de cerimônias pomposas das quais tomavam parte os imperadores e senadores. Dessa época provêm quase todos os detalhes conhecidos sobre as cerimônias, mas elas já não correspondem senão palidamente ao que o culto de Elêusis pregava em sua época áurea, entre 800 e 200 a.C. Cícero, o maior e mais completo intelectual romano, conheceu Elêusis já tardiamente, em sua fase de declínio, e ainda assim afirmou que os seus mistérios constituem a maior contribuição de Atenas para a humanidade.
Com todas as restrições à divulgação dos mistérios, restam apenas duas fontes de acesso ao seu ensino original, a saber, o mito de Perséfone e a comparação das doutrinas de seus membros conhecidos. O primeiro é público, e faz parte do acervo mitológico e religioso da Grécia, enquanto a doutrina dos membros famosos apresenta interessantes similaridades em pontos peculiares, dando indícios razoavelmente confiáveis do que os seus membros compartilhavam.
De uma forma muito resumida faremos uma exposição da filosofia e religião de Elêusis, como chave de leitura para o mito de Perséfone apresentado em seguida. 
       Basicamente tudo nos mistérios é derivado do processo de reencarnação, comparado às estações do ano e às fases da vida. Esse processo é entendido como o intercâmbio entre dois mundos, sendo o mundo das almas a pátria verdadeira e original, enquanto o mundo material seria uma extensão ou subproduto do mundo espiritual.
          A vida no mundo material seria uma espécie de punição, comparada ao outono e inverno, quando a natureza morre e enfrenta a dureza do frio e da desfolha. A vida no mundo espiritual seria a primavera e verão da alma, e o indivíduo só seria feliz neste outro mundo. O objetivo da vida material seria o de enfrentar agruras e batalhas para o fortalecimento do espírito, assim como o inverno serve prepara a natureza para um renascimento na primavera, selecionando neste processo as plantas e animais mais fortes e hábeis. 
     O problema do mundo material não está, portanto, nos seus desafios, que proporcionam o crescimento, mas sim no esquecimento que as almas fracas experimentam em contato com a matéria. Os iniciados de Elêusis não são ensinados a crer nesde processo, mas se “lembram” sozinhos de sua realidade por força de sua grandeza espiritual. Acreditavam também que eram atraídos uns aos outros por  similitude, como estrangeiros no mundo material que se reconhecem facilmente pelas suas diferenças em relação aos nativos. Era esperado naturalmente que não se espantassem jamais com os ensinos, mas que os encarassem como óbvios ou até já os conhecessem antes de serem admitidos no culto. 
       Outro sinal característico dos mistérios era a ênfase na pluralidade dos mundos habitados, na possibilidade de se transmigrarem as almas para esses outros mundos, o que os conduzia a teoria da panspermia, ou seja, a disseminação universal da vida ao redor de todas as estrelas do universo.
        Quando Emmanuel nos apresenta as personagens Lívia e Basílio em seu magnífico romance Ave Cristo, ele nos dá a entender que o ancião teria tido contato com os mistérios de Elêusis e de Alexandria, e a canção das Estrelas revela não apenas um conhecimento exato de Emmanuel acerca dos mistérios como nos traz contribuições ímpares para o seu resgate. Eis a primeira estrofe da canção:

Estrelas – ninhos de vida,
Entre os espaços profundos,
Novos lares, novos mundos,
Velados por tênue véu.
Aladas rosas de Ceres,
Nascidas ao sol de Elêusis,
Sois a morada dos deuses,
Que vos engastam nos céus.

         A canção segue com ricas revelações sobre a harmonia universal, o propósito das lutas terrenas e exaltações às virtudes estóicas da paciência, abnegação e retidão. Todos são cristãos em essência, mas há boas razões para crer que eram elementos retirados do culto de Elêusis, motivo pelo qual Emmanuel deu especial ênfase a ele no primeiro parágrafo. 
        Vejamos, as moradas celestiais estariam “veladas por tênue véu”, exatamente como os eleusianos pregavam. As almas mais antigas e experimentadas não fariam esforço para remontar pela razão, memória ou sugestão os pontos essenciais do conhecimento que tinham no mundo espiritual. “Aladas rosas de Ceres” é talvez o verso mais revelador, já que Ceres é o nome romano para a deusa Deméter, adorada no culto de Elêusis. Por que Basílio teve especial interesse em dedicar sua canção aos mundos espirituais à deusa Ceres, a princípio responsável pela agricultura?
Os únicos que viam um papel diferenciado em Ceres ou Deméter eram os iniciados de Elêusis.
O próximo verso confessa diretamente a proveniência da informação, já que as estrelas não poderiam nascer literalmente em Elêusis. Só podemos supor que o autor está se referindo à revelação feita naquele local sobre essas coisas. “Sois a morada dos deuses, que vos engastam nos céus” coincide também com o ensino dos espíritos quanto à formação das galáxias e sistemas estelares sob a direção dos espíritos superiores, aqui entendidos como os deuses.
Lembramos que muitos iniciados, incluindo Sócrates e Platão, alegavam manter contato com os deuses e daímones, estes últimos correspondendo a intermediários entre os deuses e os encarnados. Platão também afirma que os deuses são almas de homens como nós, desenvolvidas até a perfeição, e que por nossa vez seremos também deuses, conforme se observa nos trechos que destacamos no artigo anterior sobre a “mediunidade e a literatura clássica”.
         Com todo este aparato de leitura histórico, sutilmente confirmado por Emmanuel, podemos abordar com segurança o mito fundador dos mistério.
         Deméter, deusa da agricultura e da fertilidade, vivia feliz com sua filha Perséfone, um verdadeiro encanto do Olimpo. A jovem era perfeita, e despertou o desejo de Hades, senhor do mundo dos mortos. Este, com a permissão de Zeus e consentimento dos demais deuses, raptou Perséfone e a levou para o mundo das sombras subterrâneas. Deméter ficou revoltada com o rapto da filha e com o consentimento dos demais deuses, e afastou-se do Olimpo, indo parar em Elêusis. De lá a deusa puniu todo o mundo com uma seca tremenda que ameaçou com a fome todos os seres e matou o gado que era sacrificado aos demais deuses. Arrependido, Zeus pediu a Deméter para extirpar a maldição, e em troca devolver-lhe-ia a filha. Dessa vez foi Hades quem se sentiu traído, mas não podendo contrariar a ordem de Zeus entregou Perséfone. Antes de despachá-la do mundo inferior, contudo, deu-lhe de comer sementes plantadas lá, o que criou em Perséfone um vínculo com o mundo da escuridão. Assim que Perséfone retornou ao Olimpo, Deméter perguntou-lhe se havia comido algo de lá, e ao ouvir a confirmação foi tomada de profunda tristeza, embora nada mais pudesse ser feito para remediar o feitiço. Perséfone ficou assim condenada a passar metade do ano nas sombras de Hades, e a outra metade estaria liberta para viver com os demais deuses no Olimpo. 
         Analogamente, o mundo passaria a apresentar uma época de declínio e infertilidade (outono e inverno), quando Deméter entristecida pela partida da filha amargaria a solidão, e uma época de frutificação e claridade (primavera e verão), correspondente ao retorno de Perséfone e a alegria de Deméter, que distribuiria então pelo mundo suas bênçãos.
         O mito é rico de significado, mas não chega a ser difícil de interpretar. Perséfone está vinculada a dois mundos totalmente distintos, a morada de felicidade do Olimpo e o exílio sacrificial no mundo inferior da escuridão e da dor. Esse movimento não era realizado uma vez, mas inúmeras, indicando que a alma estaria repetidamente alternando uma existência nas alturas e outra nas trevas inferiores.  O estágio no mundo de sofrimento tinha, contudo, o seu lado positivo, pois mesmo com um período de infertilidade no ano, a alegria de Deméter ao rever a filha criava anualmente uma época de grande abundancia para todo o mundo. 
         A alma, similarmente, aprenderia nas agruras do mundo material a amar e valorizar as belezas da pátria espiritual. A saudade com que Perséfone aguarda o fim de seu período nas sombras também é muito representativa. Ela indica a saudade do espírito exilado na carne, que se lembra de suas origens sublimes e não se entrega à existência vulgar dos habitantes do mundo inferior. Perséfone é eternamente uma estranha no abismo do Hades, e assim também as almas nobres jamais se rebaixam ao nível do mundo das ilusões materiais, mas suspiram por seu retorno à pátria verdadeira, tudo suportando com desinteresse e indiferença. Perséfone jamais se deixa confundir com os habitantes do Hades, sendo em todos os aspectos a imagem da perfeição, candura e generosidade a contrastar com o vale dos dementados e agonizantes. Esse seu papel no mundo inferior é o de atenuante dos seus horrores, pois a partir de sua estadia lá existe sempre a esperança de encontrá-la em meio ao país da amargura e do esquecimento.
         Muito mais poderia ser dito sobre o mito de Perséfone e as sutilezas dos mistérios de Elêusis, mas a nossa ignorância ultrapassa em muito o que sabemos, de modo que é arriscado tentar especulações mais elaboradas, correndo-se sempre o risco de afastarmo-nos dos fatos perdendo-nos no devaneio de hipóteses inautênticas. Fica, portanto, o convite à releitura destes poucos elementos divulgados, enquanto novas e mais completas revelações de historiadores e dos próprios espíritos seguem o seu passo lenta, mas seguramente.

Referencia:

MYLONAS, George. Eleusis and the eleusian mysteries. Princeton: Princeton University Press, 1961.