segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O espiritualismo de Aristóteles


 
Após o nosso texto sobre Platão, permaneceu no ar uma exigência de fazer justiça a Aristóteles. Afinal, aquele outro texto inspirado em Popper e em renomados platonistas contemporâneos coloca o discípulo principal da Academia sob pesadas acusações, que podem ofuscar a importância ímpar de Aristóteles no desenvolvimento do pensamento humano, da religião Cristã, do realismo ético, da lógica, da estética, de diversas ciências... Aristóteles é também combatido devido à incompreensão que se tem sobre seu conceito de ciência, especialmente no tocante a física e a astronomia. Seus avanços e contribuições preciosas são sistematicamente ignorados em favor da paródia infantilizada de uma ascensão apoteótica das ciências durante a Renascença, como se as contribuições de Hiparco, Euclides, Arquimedes, Hipácia, Anaxágoras, Aristóteles, Galeno e outros pesquisadores antigos fossem maculadas por falhas capitais que apagassem todos os seus méritos.
   É bem verdade que Aristóteles seja mais dogmático do que Platão, mas ele não o é num sentido do dogmatismo religioso, por exemplo, nem pode ser considerado mais dogmático do que a maioria dos demais filósofos. O seu é um dogmatismo racional, o que quer dizer que ele acreditava no poder da razão para resolver todas as questões, e isso não significa a adoção de máximas e crenças transmitidas por autoridade, como no dogmatismo que as igrejas costumam propagar. Além disso, é possível que Aristóteles seja um dos indivíduos que mais contribuiu em favor das ciências em todos os tempos, ao lado de Galileu, Newton, Pasteur, Darwin ou Einstein, e em relação a maioria destes tampouco ele poderia ser considerado um dogmático.
 Se cientistas acreditam firmemente no poder da matemática e da lógica, na invariabilidade e objetividade da observação, eles são, ao menos nisso, herdeiros de Aristóteles. Claro, Aristóteles não possuía um método científico tão rigoroso, ou estava aberto a competição com outras teorias, mas as suas observações criteriosas e a sua lógica impecável propiciaram tanto avanços no conhecimento quanto na doutrina do método.
   Muito do que nos soa anti-científico não passa de propaganda da ideologia materialista, aquela que o vulgo associa à ciência, e que condena impiedosamente hipóteses espiritualistas como a necessidade de um arquiteto inteligente para o cosmo e a existência de uma força vivente dirigindo a vida para o desenvolvimento de suas formas. São hipóteses explicativas para problemas legítimos que Aristóteles encontrou na natureza, e que desde o século XIX passaram a ser descartadas “por questão de princípio”. 
    Aristóteles é incompreensível sem um amplo e minucioso estudo da filosofia e da história da Academia de Platão. Disso depende o acerto de contas com as discrepâncias e injustiças cometidas contra Aristóteles, dentre as quais a maior delas é a suposta “separação” ou “briga” entre ele e o mestre, o que jamais ocorreu ou se justifica. Os mitos quanto ao confronto derivam quase todos dos comentários do Aristóteles maduro sobre o mestre, décadas depois da morte deste, e que se baseiam nas distinções naturais que o caminho próprio de Aristóteles necessitava enfatizar. Esse desenvolvimento pessoal e independente da filosofia, coisa que Platão sempre incentivou e esperou de seus discípulos, corresponde integralmente ao distanciamento que o próprio fundador da Academia teve para com seu ídolo e mestre da juventude. O quadro do distanciamento entre Aristóteles e Platão, portanto, se assemelha ao que separa Platão de Sócrates, com uma semelhança impressionante de características.
    Em primeiro lugar, o Platão poético da juventude, com seus diálogos realmente combativos, metáforas, simbolismos e estreita vinculação entre a estética e a epistemologia, quase correspondendo nele o arrebatamento estético ao acesso intelectual à verdade, já era tido como fase terminada e superada na época em que Aristóteles ingressava na Academia. 
  O ambiente liberal do mestre, seu amadurecimento e o próprio contato com outros alunos e professores haviam transformado o ensino platônico. O cavaleiro solitário do Fédon, da Apologia, do Banquete e do Górgias, que vingava intelectualmente a morte de Sócrates e buscava preservar o seu legado, era agora o filósofo mais bem estabelecido e sucedido do mundo, sem necessidade nem do caráter combativo nem da nostalgia de uma época áurea de suas conversações com o mestre. Ele próprio era agora o mestre para o qual discípulos de todas as partes do mundo viajavam na esperança de obter sabedoria e virtude. Ele era então a figura de quem se esperava as respostas, e não um jovem modesto cantando as proezas de seu mentor. 
  A essas diferenças de postura somam-se as profundas experiências da Academia e de suas viagens. Dotado de inigualável lucidez, Platão não demorou a absorver as críticas que lhe eram dirigidas e adaptar seu método a elas. Alunos brilhantes de todas as partes, entre eles muitos matemáticos, ajudaram a expandir o seu saber sempre aberto à inovação e mudança. Ao mesmo tempo, as exigências que ele mesmo e o seu papel de referencial universal da filosofia lhe impunham tornaram-no muito mais cuidadoso, técnico e afirmativo nos seus pronunciamentos.
    Por essa época chegava a Academia o jovem Aristóteles, enquanto ela iniciava uma nova fase com a escrita do Teeteto, um diálogo já mais voltado para investigação analítica do que para a busca de consensos gerais. O caráter cético e jovial do jovem Platão era abertamente ironizado e criticado na Academia, talvez por ele mesmo, de modo que o estilo lógico e a minúcia da análise de categorias que tanto influenciou Aristóteles não está em contradição com o que ele então via na Academia. O mestre, inclusive, desaprovava os trabalhos dos alunos que copiavam pedantemente o seu estilo e doutrina, fomentando justamente as inovações, as particularidades e a originalidade de cada aluno. 
 ristóteles foi desde cedo um dos que mais correspondeu a essa expectativa do mestre, confrontando-o com competência e forçando sempre os limites de sua filosofia. Essa postura não foi o que os separou, mas pode-se até imaginar, foi a causa da admiração do mestre desde o princípio.
 Platão chegava de suas viagens com novos problemas sobre física, medicina e antropologia para os quais ele mesmo não tinha tempo ou interesse em trabalhar, mas que transmitia aos seus alunos, muitos dos quais se ocupavam dessas disciplinas já antes de ingressarem no colégio. Não foi de modo algum Aristóteles quem criou as novas disciplinas, ou que combateu o diálogo platônico, ele apenas continuou uma ruptura e desenvolvimento que correspondiam à prática da comunidade da Academia, e que era diretamente patrocinado pelo mestre.
 O sistema de Platão permaneceu coerente e harmônico, mas havia crescido tanto para além dos diálogos da juventude, eram tão distantes as suas fronteiras daquelas mais estreitas e monótonas do passado, que a suposta revolução de Aristóteles não foi mais do que um passo para além dessas fronteiras já muito largas. Distante do jovem Platão, estava ele ainda bem próximo do velho.
O primeiro dos escritos aristotélicos é um diálogo que lembra muito o Fédon, o Eudemo. Nesse livro expõe o estagirita com proeza uma crítica aos materialistas e a doutrina de que a alma seria apenas uma harmonia de funcionamento do corpo físico. Aristóteles defende tão convictamente a imortalidade da alma quanto o mestre em seu escrito original. (JAEGER 1923, p.38) Aristóteles começa lembrando que a harmonia é um conceito dependente de um oposto, a desarmonia, e que alma não possui um conceito oposto como uma não-alma. Enquanto a desarmonia é claramente identificada num conjunto, um oposto para a alma não existe nem na experiência nem no pensamento. Não havendo para ela um pólo oposto, não pode ser submetido ao conceito de harmonia, ou outro predicado qualquer que possuam um estado contrário, só podendo então ser uma substância. Se a alma é uma substância, não pode ser dependente do corpo, que é uma outra substância, desta vez material, provando-se assim a imortalidade da alma.
O argumento tem ainda validade, e mesmo restringindo a alma ao conceito de mente, não se escapa das implicações de que ela deve ser uma substância, pois o oposto de uma substância é sempre o nada. Uma não mente, ou não espírito, só são pensáveis como ausência de suas funções e qualidades, e tudo aquilo de cujo oposto só podemos pensar a ausência é por princípio uma substância.
O materialismo, geralmente, tenta passar por cima dessa conclusão lógica reafirmando que a alma é sim uma harmonia entre propriedades fisiológicas, o que, no entanto, só poderia ser assumido como verdade se para isso houvesse uma prova conclusiva. Na dúvida, a hipótese mais lógica é a de que a alma seja uma substância, pois a hipótese contrária apresenta o conflito de terminologia descoberto por Aristóteles.
Também se encontra no Eudemo uma defesa da personalidade da alma após a morte, baseada na memória, que é um atributo intelectivo da alma. A permanência da memória seria, então, o critério para que a personalidade sobrevivesse, em contradição com um princípio intelectual apenas, conforme defendido por muitos filósofos.  Não apenas nesse texto, mas ainda em outros defendeu Aristóteles a preexistência da alma antes da sua conexão com o corpo e a conseqüente possibilidade de reminiscência de conhecimentos anteriores ao nascimento. Em outro fragmento o filósofo afirma: “A alma penetra visionariamente o futuro ao libertar-se do corpo, durante o sono ou na proximidade da morte, e então percebe sua verdadeira natureza e é arrebatada pelo firmamento estrelado.” (Frag. 10 R)
O protréptikos é o outro texto destacado da fase platônica de Aristóteles, guardando enorme número de conceitos de sua filosofia posterior, como as noções de potencias e ato, desenvolvimento das formas, a função ética do conhecimento e a impossibilidade de se combater a filosofia. 
O primeiro argumento significativo é em favor da filosofia como única forma de legitimar a vida humana. Uma vida precisa de filosofia para afirmar qualquer escolha ou projeto existencial, e igualmente é preciso filosofar para combater a filosofia. Não se pode legitimar qualquer conclusão sem um desenvolvimento lógico e dialético, de modo que para qualquer posicionamento consciente e justificado é preciso filosofar. Aristóteles também especifica sua noção de substancia em relação ao platonismo. Enquanto este último tem a substância como a essência já dada das coisas, a sua origem ideal, Aristóteles acrescenta a ideia de evolução e desenvolvimento, télos, de modo que a essência das coisas só se revela na sua ação, não numa análise sobre elas.
 Um animal não se permite definir somente pela sua forma e atributos, como pensou Platão, mas principalmente pelo seu papel, pelo que ele faz. Um Leão é, desta forma, além de um animal quadrúpede, forte e feroz, um predador. Esta última característica é a única relacionada à sua ação, e a mais importante. Um homem não tem a sua essência medida pelos seus talentos, origem, aparência e disposições, mas pelo que ele realmente faz e realiza. Enquanto Platão definiria um homem como bom pela sua natureza, ideias e inclinações, Aristóteles diria que essa definição só pode ser dada ao final da vida, como observação dos atos desse homem. A essência não pode ser apreendida inteiramente no estado inicial, ela se revela no desdobramento da existência dos seres. A substância não é assim apenas a estrutura a partir da qual é feita uma coisa ou ser, mas a sua destinação, a essência não é o quê, mas para quê.
Pouco depois da morte de Platão, Aristóteles deixa a Academia e inicia um ciclo de viagens que vai culminar na Macedônia, onde ele inicia a educação do então não tão grande Alexandre. Nessa fase marca-se ainda mais a sua cisão com a escola platônica num ponto que é em quase todos os aspectos um avanço, a abjeção das Ideias. E o equívoco aqui é imaginar que esta esteja ligada ou acarrete numa negação da imortalidade da alma e de um mundo espiritual que lhes correspondesse. Os dois primeiros escritos confirmam que Aristóteles não cogitava em associar o “além” ao mundo das ideas. Este último seria somente uma abstração epistemológica e metafísica do platonismo, nada mais. Uma metáfora a qual Aristóteles continuou a recorrer para exemplificar a independência da teoria das coisas mundanas, mas sem atribuir qualquer existência às ideias como formas reais, existindo por si próprias num mundo ideal.
As essências das coisas, sua parte intelectiva, princípios organizadores, deveria estar estreitamente vinculada à própria coisa. Não haveria, portanto, ideia e leis num “lugar”, esperando para se unirem a matéria e formar coisas. As coisas já teriam em si leis e matéria como partes inseparáveis e constituintes. A matemática, por exemplo, não teria nenhuma realidade em si, existindo num mundo independente de figuras, fórmulas e grandezas, mas seria uma proporção das coisas, ou entre as coisas. Real e verdadeira, mas dependente deste mundo e desta realidade.
Novamente a difundida conclusão de que isso eliminaria a possibilidade de vida após a morte é errônea, pois o mundo dos mortos e as próprias almas não compõem uma “outra” realidade em contradição ou diferenciação com a nossa, mas seria parte da mesma realidade, apenas invisível para nós. As almas não seriam ideais, mas reais, daí a famosa conclusão de Aristóteles de que elas não teriam existência imaterial, já que tudo o que existe tem substância, matéria. A confusão com a terminologia de Aristóteles é produzida por uma interpretação platônica fraca, que associa o material ao mundano, e o ideal ao espiritual. 
Para Aristóteles toda a realidade é matéria intelectualizada, força organizada. Não há separação de mundos e realidades em oposição. O corpo é matéria e energia organizadas segundos certas leis, a alma é outra forma de matéria e energia organizada segundo outras leis.
A teologia platônica consistia em afirmar a supremacia absoluta do espiritual sobre o material. O mundo das ideias existiria, dessa forma, por antecipação e em completa independência. Seria imóvel e inalterável a estrutura das ideias. O mundo material seria uma cópia imperfeita e decadente, e a matéria um princípio grosseiro, sombrio e desprovido de qualquer qualidade positiva. Se a matéria possui organização e vida é porque uma força espiritual a habita, porque o reflexo das ideias lhe dá ser e qualidades positivas, como beleza, utilidade, equilíbrio ou justiça. Aristóteles, por outro lado, não apenas não vê as ideias separadas da matéria, como não admite um princípio vil e pernicioso no universo. Tudo tem sua razão de ser, e, portanto, o seu bem. O universo não é dividido em mundo das ideias e das coisas, com as primeiras sendo eternas e as segundas criadas, mas é inteiramente criado por Deus. Somente Deus estaria fora da cadeia de causa e efeito que tudo regula.
Assim desenvolveu Aristóteles a primeira e talvez ainda hoje a mais consistente teoria da criação. Ele percebeu que a definição de movimento é mecânica, transmissão de forca de um para outro objeto, uma cadeia de causalidade sem ator, apenas com elementos passivos. Essa definição revela-se insustentável quando buscamos a origem do movimento, e nos deparamos com uma série infinita de corpos movidos por outros, sem que nenhum seja o responsável final pelo início do movimento. Embora muitas pessoas ainda acreditem na hipótese do movimento eterno, ela conduz a um paradoxo, logicamente inaceitável como hipótese científica ou filosófica. 
Afirmar que o movimento é eterno ou negar o problema da sua origem nada resolve, pois a sua conceituação não permite qualquer outra definição além da de que é preciso um ator no início da cadeia. Explicar o movimento a partir da passividade é uma falácia assombrosamente popular, mas insistir nisso não a torna racional. A energia inicial precisa ser criada, não pode “estar sempre aí”, pois a transmissão mecânica é passiva, não tem uma existência fundamentada em si mesma, senão por definição uma existência derivada. Então. conclui Aristóteles, o movimento exige uma causa ativa, uma forca autônoma que não seja influenciada por outra, o que só prolongaria o problema da cadeia mecânica. Esse primeiro motor universal, que deu origem a todas as coisas, é a causa intencional de todos os movimentos do universo.
         Foi Aristóteles quem deu a Deus o papel de criador em termos filosóficos. Até então este papel só era atribuído de maneira mitológica a Deus, como no Gênese, e Platão não conseguiu justificar bem o papel de Deus no processo da natureza. É por isso que o filósofo peripatético afirma: “Deus é espírito, se não for algo ainda mais elevado que o espírito.” (Frag. 49 R) Fora da cadeia mecânica, passiva, ele é o intelecto que por sua vontade traz o mundo à existência.

Referências:

GILL, Mary Louise & LENNOX, James G. Self-Motion from Aristotle to Newton. New Jersey: Princeton University Press, 1994.
JAEGER, Werner. Aristoteles: Grundlegung einer Geschichte seiner Entwicklung. Berlin: Weidman, 1923.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Oráculo de Delfos: mil anos de experiência com a mediunidade

 Sobre a história antiga do oráculo pouco se sabe, e todas as informações se misturam a lendas. É quase certo que o monte Parnaso era originalmente um santuário de Gea, a deusa terra, e é impossível saber quando o templo de Apolo que deu fama ao lugar foi construído. Mesmo depois dessa reformulação, a história do oráculo é muito controversa, sendo que somente com Homero iniciam-se os relatos diretos e mais elaborados. Ainda assim, embora Homero e Ésquilo fossem certamente iniciados nos mistérios gregos, suas informações são muito pouco confiáveis, já que não podem ser distinguidas de elementos poéticos e fantasiosos típicos da composição de cenário das tragédias e dramas. Como critério geral convém considerar verdadeiro somente aquilo que é unânime ou muito frequente nos relatos de diferentes autores, mas com isto sobram pouquíssimas informações.
O que se pode afirmar com certeza é que o oráculo era dirigido por um sacerdote homem, responsável final pela intermediação com os devotos. Era esse sacerdote que interpretava a pítia, acertava os preços das adivinhações, quando eram cobradas, e decidia se a Pítia deveria ou não ser consultada conforme a gravidade e pertinência do assunto. Não por acaso, muitos, inclusive no mundo antigo, atribuíam as profecias e adivinhações ao sacerdote, apresentando a profetisa como sua marionete ou uma hábil atriz sob cuja fachada a direção do templo buscava manipular a elite grega.  A esta tese chamaremos “tese conspiratória” do oráculo.
Um segundo fato amplamente comentado é a existência de cavernas nos arredores do monte Parnaso que supostamente expeliriam um gás com propriedades alucinógenas. Embora muitos materialistas trombeteiem esta como a tão aguardada “explicação científica” para as profecias, ela foi na verdade levantada por Plutarco, que conhecia profetisas romanas que se valiam do mesmo recurso próximo a fontes termais e vulcânicas na Itália. A hipótese em geral é bastante sólida, pois desde a antiguidade remota fontes de gás vulcânico eram usados em diferentes países como santuários proféticos, e o entorpecimento provocado por ele pode sim ter um papel relevante nos ritos dos antigos gregos. Isso, inclusive, reforça os indícios de que o oráculo de Delfos teria sido anteriormente um santuário em honra a deusa terra, pois os locais escolhidos para esse mister eram preferencialmente os dotados de fissuras e cavernas profundas, ou fontes vulcânicas. Esta a que chamaremos “tese materialista” de explicação do oráculo.
Apesar de que as teses conspiratória e materialista possam contribuir para a compreensão de muito do que se sabe sobre o oráculo, sendo razoavelmente verdadeiras em certo sentido, elas não fazem jus às principais e mais famosas passagens da história que nos são relatadas pelas fontes mais sérias e criteriosas, como os filósofos e historiadores. Nenhuma das duas nos permite compreender como certas adivinhações improváveis eram feitas com sucesso e relativa freqüência. A ideia de um grupo supersticioso e mal-intencionado dirigindo a comunidade crédula é também ridícula quando se observa a infinidade de relatos dos maiores intelectuais gregos atribuindo ao oráculo as sentenças mais sábias e as ideias mais complexas. No mínimo, há que se convir que o grupo envolvido nas atividades proféticas compunha uma elite intelectual competente o bastante para ser reconhecida pelos maiores nomes da cultura grega.
Se por um lado há razões para suspeita quanto à natureza mediúnica das profecias, pois elas eram eventualmente pagas, envoltas em enigmas e simbolismos,  e inclusive se conheciam muitos casos de charlatanismo e encomendas de falsas adivinhações, é também verdade que em certas épocas Pítias e sacerdotes de Delfos foram admirados como sumidades intelectuais e referencias de honradez, e suas mais famosas profecias não poderiam ser plausivelmente creditadas ao charlatanismo ou ao delírio.
O papel da Pítia também está coberto de mistificações grosseiras, associado ao posterior culto das vestais romanas, que eram jovens geralmente virgens envolvidas em atividades estritamente ritualísticas. 
A Pítia grega era sempre eleita por volta dos 50 anos ou mais para um mandato vitalício. Quase sempre era esposa e mãe, não correspondendo às idealizações que a retratam como uma jovem virginal. Trajava, entretanto, um manto alvo como símbolo de sua pureza, pois era proibida de manter relações sexuais após assumir o ministério. Também era forçada a abandonar a família que tivesse, não podendo sequer revê-los. Habitava o templo e era a partir de então considerada noiva de Apolo, em forte consonância com a vida monástica das freiras católicas. As Pítias eram rigorosamente selecionadas pela conduta impecável, vida devocional e por “ligações conhecidas com os deuses”. Em geral, a figura da Pítia é a da mulher de meia-idade respeitada na comunidade por seus ascendentes morais e piedade, comumente uma conselheira da aldeia, de quem se sabia já ter tido visões ou ouvido vozes dos deuses.
Sobre o estado profético há inúmeras descrições, sendo a melhor deles a de Plutarco, que observa que nas Pítias mudanças expressivas de voz durante as mensagens. Outras fontes ainda certificam que a Pítia não falava por enigmas, e que os sacerdotes seriam responsáveis por converter a mensagem em uma charada. Essa informação é provavelmente verídica, pois fontes históricas seguras relatam a fúria vingativa dos reis e tiranos ao receberem profecias contrárias à sua vontade. Convertendo as profecias em charadas os sacerdotes produziam uma ambigüidade que garantia a sua imunidade contra os requerentes, transferindo para eles a responsabilidade de interpretar a profecia conforme a sua própria capacidade e/ou preferência.
 De uma certa forma poderíamos dizer que o oráculo falava por parábolas, ocultando assim o seu ensinamento para os mais sensatos.
Por suas prerrogativas de excelência na seleção das Pítias e sacerdotes, e por seu histórico de adivinhações corretas e recomendações prudentes, o oráculo tornou-se um elemento político e social irrefutável. Os reis ouviam atentamente os seus pronunciamentos, e a maioria das pessoas religiosas não cogitava de lidar com um assunto grave sem uma consulta, se ela fosse possível. 
Licurgo, rei de Esparta e organizador da constituição dessa cidade teria recebido inspiração do oráculo nas linhas principais da sua carta de direitos. Pausânias, também rei de Esparta, teria recebido mensagens semelhantes sobre as leis apropriadas para a cidade. Essa intimidade entre o oráculo e os reis é amplamente documentada por Aristóteles, Heródoto e Diodorus Siculos.  Parte da mensagem que o rei Licurgo teria recebido diz: “Tão longo honrardes as vossas promessas e oferendas ao oráculo, renderdes perfeita justiça uns aos outros e aos estrangeiros, dignificando pura e santamente os anciãos de vossa terra... Zeus senhor dos céus vos poupará e salvará... Somente o amor ao dinheiro, e nenhuma outra causa, há de destruir Esparta.”    
Também Atenas foi agraciada com uma profecia sobre sua época áurea, marcada pelo século de Péricles. Pouco antes deste período conclusivo para a cultura humana e no início dos embates entre Atenas e Esparta, o oráculo profetizou: “Ó Atenas, bastião guerreiro, após muito sofrimento, sacrifício e dor, se perseverares contra todos os infortúnios o teu nome será alçado à altura do voo das águias, onde permanecerá para sempre.”
O oráculo também fez fama por suas parábolas morais, das quais uma foi habilmente registrada por Sólon. Segundo esse sábio, o oráculo difundia ocasionalmente mensagens de teor instrutivo acerca das coisas divinas e das leis naturais, em caráter extraordinário em relação as suas atividades normais de adivinhação. Numa dessas histórias os irmãos Biton e Cleobis preparavam um carro para conduzir a mãe, sacerdotisa, de Argos para o templo de Hera. Por que as bestas de carga não chegavam, os irmãos tomaram sobre si os arreios e arrastaram a carruagem pelas cinco milhas e meia até o templo. A mãe maravilhada abençoou-os assim: Recebem a maior bênção que os deuses possam conceder aos homens.  Os irmãos voltaram alegremente para casa, e amanheceram mortos no dia seguinte (presumivelmente não pelo esforço). A lição que Sólon retira do episódio é a de que a libertação da vida terrena é a maior benção possível.
Heródoto conta outra passagem de cunho moral, quando Estrabo perguntou à Pítia se deveria mudar-se para Corinto, e ela teria respondido: “Corinto é abençoada com imensa fortuna, mas eu por mim ficaria em Tenea.” Referindo-se a humilde cidade em que Estrabo já vivia, e que era conhecida pela conduta digna de seus habitantes.
É conhecido que o oráculo possuía em seu pórtico a inscrição “conhece-te a ti mesmo”. Essa é, contudo, apenas a inscrição mais famosa. As três frases apareceram por volta de fins do século VI a.C. e são atribuídas aos sete sábios, mas o mais provável é que sejam dos próprios sacerdotes de Apolo com possíveis influências dos sete sábios do século VI. Além da sentença mais famosa havia também “Nada em excesso” e “Se vais confiante encontrarás rápido a tua destruição”.
Quanto ao poder divinatório do oráculo nenhuma passagem o atesta mais do que a do matuto que tentou ridicularizar o oráculo colocando um pássaro vivo em um saco, e propondo-se a perguntar ao oráculo se a ave estava ou não viva. Caso o oráculo afirmasse que sim, ele sufocaria a ave, e se o oráculo dissesse que ele estava morto, ele liberaria a ave viva. A Pítia foi capaz de captar-lhe o pensamento e proferiu: “Amigo, tu podes mostrá-lo vivo ou morto, pois a resposta está em seu poder.”
Pelos fragmentos destacados percebe-se o quão ricos são esses registros. A papirologia atual conta com mais de 600 registros diretos de perguntas feitas ao oráculo em quase oitocentos anos de atividade, contendo as respectivas respostas. Os assuntos são os mais diversos, desde perguntas pessoais sobre doenças e casamentos até projetos de fundação de novas cidades (notadamente Siracusa) foram apresentados ao oráculo. Também por inúmeras fontes históricas e poemas temos retratos mais ou menos fiéis deste que foi o centro da religiosidade grega em seu auge.
Seria desejável, e aqui deixo o convite, que uma pesquisa extensa fosse feita, incluindo todo esse material e organizando-o conforme as categorias desenvolvidas na Codificação. Daí surgiria um retrato muito claro dos procedimentos da prática mediúnica, do conteúdo do ensino transmitido através das Pítias e das implicações sociais, culturais e históricas dessa que afinal foi uma instituição pública, amplamente conhecida, de “endereço fixo” e duradouro a operar o intercambio entre o nosso mundo e dos deuses.



Referência:


PARKE, H. W.; WORMELL, D. E. W. The delphic Oracle. Oxford: Basil Blackwell, 1956.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A filosofia chinesa


A China é um continente à parte, com população, tamanho e complexidade cultural mais que suficientes para se igualar à Europa, ao Oriente Médio e à Índia no que se refere ao seu papel no desenvolvimento da civilização. Englobando a Coréia e o Japão, seus filhos espirituais, e estendendo sua influencia sobre o Vietnã, o Camboja e o Laos, com menor presença sobre os demais países do Sudeste Asiático, compõe o grupo cultural majoritário ao lado do conjunto que denominamos “Ocidente”.

A recente ascensão econômica e tecnológica da China e de todo o Extremo Oriente forçaram a mentalidade ocidental para fora de sua área de conforto, que alcança até o pensamento indiano, a partir de onde perdem-se os últimos vínculos gramaticais e filosóficos que permitem um diálogo mais próximo.
As dificuldades de tradução e compreensão dos idiomas orientais permanecem imensas e quase insuperáveis. Enquanto a filosofia indiana foi escrita em sânscrito, a mãe de todas as línguas européias, e está baseada nos adjetivos e verbos, como a filosofia européia, o pensamento chinês está radicado na sua língua simbólica.
 As filosofias indo-européias possuem dois questionamentos básicos. O primeiro deles é se os adjetivos pertencem intrinsecamente ao sujeito, como sua essência ou se são acidentes. O segundo deles está relacionado principalmente com o verbo “ser” e suas variantes (tornar-se, poder ser, permanecer, etc). Esses elementos estão na base da lógica e da metafísica ocidental e indiana. Ambas se preocupam em analisar afirmações com a finalidade de confirmar se algo é aquilo que se afirma sobre ele, se a essência ou o ser de alguma coisa permanece com as suas mudanças e transformações.
 A língua chinesa não possui nem os mecanismos complexos de predicação nem o verbo “ser”, impedindo completamente o desenvolvimento de uma lógica e de uma metafísica semelhantes. A gramática praticamente não existe, e faltam-lhe elementos que qualquer linguista ocidental consideraria vital para a expressão dos pensamentos mais básicos. Ainda assim, a China desenvolveu uma filosofia toda própria que assombra e fascina os que dela se aproximam.
Para começar a tratar da filosofia chinesa é preciso ter em mente essa diferença radical da língua escrita e falada, especialmente da primeira. Os chineses não têm como desenvolver alguns tipos de argumentos lógicos a partir de sua língua, e por isso refinaram a expressão de ideias inteiras por meio de imagens. Seus argumentos são representativos, ao invés de demonstrativos. Imagine-se, por exemplo, expressando a ideia de que a casa de seus pais era bonita, e que sua mãe foi também muito bonita na juventude. Você seria obrigado a dizer: “casa de meus pais bonita”, deixando o interlocutor na dúvida se ela ainda é ou se foi apenas no passado. Provavelmente você deveria acrescentar alguma informação para deixar claro que a casa não existe mais, ou está feia agora. O mesmo valeria para sua mãe, você teria que dizer: “Minha mãe jovem bonita”. O pensamento chinês não é poético e singelo por opção. Ele não tem outra alternativa.
Com isso a filosofia chinesa adaptou-se desde muito cedo às máximas e axiomas, buscando sempre a definição perfeita de ideias e coisas. A vantagem desse processo é permitir uma grande precisão e sobriedade no trato das questões. Não existe pensamento abstrato, ideias em si ou princípios metafísicos. Tudo é o que é e mesmo as coisas mais esotéricas são apresentadas como concretas. A desvantagem é a perda de dimensão crítica, pois as línguas indo-européias permitem com a sua especulação sobre o “ser” das coisas um questionamento quanto à sua realidade. 
Os chineses apresentam dificuldade em separar o que é real do que é possível ou hipotético, de modo que ou aceitam ideias mágicas e místicas como absolutamente concretas, ou como absolutamente falsas. Os inúmeros episódios da história da China mostram a guerra entre facções religiosas e céticas, num extremismo raro entre as classes intelectuais da Europa e da Índia. Enquanto os sábios ocidentais e indianos têm como certo o relativismo, um certo grau de dúvida e a convivência entre múltiplas hipóteses razoáveis, os sábios chineses estão em perpétua discordância quanto aos elementos mais básicos da civilização. 
Outro reflexo desta menor capacidade crítica das línguas orientais é o conservadorismo. Se Confúcio estava certo não há porque rever o seu ensino. A doutrina é aprendida, não desenvolvida. Assim pensavam os próprios fundadores das escolas religiosas e filosóficas. Todos acreditavam estar reproduzindo o pensamento anterior, uma verdade, jamais inovando.
Os ideogramas possuem ainda uma particularidade digna de nota. Quase todos são montados a partir de outros mais simples. Os famosos termos Ying e Yang, por exemplo, podem ser formados por diversos ideogramas, mas um deles é particularmente sugestivo. O ideograma para Ying, que sozinho representa gelado e escuro, junto com o ideograma do sol formam o Yang. Esta simbologia é muito interessante, pois o Yang (princípio da luz e da ação) é formado a partir do seu oposto mais o sol. Dessa forma, o Yang representa também o “reflexo” do sol no elemento passivo que é o Ying. Os chineses adoram desdobrar os ideogramas ou comparar as suas formas entre si, e consideram os resultados dessas combinações uma verdadeira investigação filosófica. Achar uma semelhança entre os símbolos para “Brasil” e “quente” não seria considerado uma coincidência para a maioria deles, mas uma revelação de que a natureza da língua esconde mistérios simbólicos.
Por essas linhas gerais percebe-se que o pensamento chinês convive em paz com o dogmatismo. Isso não apenas propiciou o surgimento das superstições, ritualismo e mitos, como também abriu espaço para o comunismo, um dogmatismo ideológico travestido de ciência social. Mas seria uma inconsequência bárbara supor que essa antiga e requintada civilização não possui compensações e contrapesos que a tornam em vários aspectos superior à nossa. 
O país do meio, como se autodefiniu por quase três mil anos, teve o seu primeiro grande código legal com Fo Hi, por volta de 3.500 antes de Cristo. Essa assombrosa data era considerada pelos chineses do século VI a.C como a Idade Antiga, enquanto o período iniciado por volta de 1200 a.C. seria a Idade Moderna, coincidindo com a fixação dos judeus na Palestina após a fuga do Egito e a guerra de Tróia.
  A época que marcou definitivamente o pensamento chinês foi a decorrida entre os séculos VII e IV a.C, também em paralelo com idades de ouro da Índia e da Grécia - juntas, essas reformas de todos os povos civilizados compuseram o que Karl Jaspers chamou de era axial. É impressionante imaginar que Buda e Patanjali na Índia, Tales, Pitágoras, Heráclito e Sócrates na Grécia, Confúcio e Lao-tsé na China, dividiram o mesmo período. Até então a China era composta por uma grande diversidade de crenças e políticas mais ou menos uniformes. A religião era baseada em três princípios: a mitologia, responsável pela educação básica dos elementos da natureza e do caráter humano, geralmente com deuses ligados aos fenômenos celestes, aos ventos, ao sol e a lua; a ética, que era tanto um princípio político de respeito às leis quanto uma recomendação religiosa; e o culto aos antepassados.
Os sábios da era clássica trabalharam com todos esses conceitos, dividindo-se quase naturalmente por áreas de interesse. Lao-tsé, que conta como o maior mestre religioso da história chinesa, desenvolveu uma ética naturalista, racionalizou a natureza e organizou a religião segundo os princípios de uma união mística genérica com a natureza e os demais seres humanos. O taoísmo desenvolvido a partir dele conservou a doutrina da serenidade, da paciência e tolerância acima de todas as motivações terrenas.
Lao-Tsé.
          Lao-tsé pregava a necessidade de afastamento da vida social e uma vida ascética e extremamente frugal, onde apenas as alegrias da paisagem bucólica e do autocultivo deveriam ocupar o espírito. Identificou o silencio como a técnica mais perfeita de meditação e instrução. Via a energia divina em todas as coisas, a harmonia completa, a beleza e a perfeição em todas as pessoas, objetos e fenômenos.
Confúcio opôs-se ao mestre por desejar uma filosofia mais terrena e mais de acordo com as necessidades do mundo político e social. Para isso deu absoluta importância ao conceito de justiça, baseado nas máximas de “não fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem”, e “não aplicar aos subordinados regras que nós mesmos não gostaríamos de seguir”. Desinteressado das questões transcendentais, concentrou-se exclusivamente no comportamento humano. Não tinha pretensão de formar santos, como Lao-tsé. Almejava apenas a educação do cidadão comum de modo que cada indivíduo optasse livremente por converter-se em célula obediente e produtiva da sociedade. 
Confúcio foi sumamente realista, prudente e reto, exigindo metas simples e possíveis de serem atingidas pelas massas. Sua filosofia, segundo ele mesmo, só possuía a autoridade de seu próprio exemplo. Não reconhecia-se erudito dos textos antigos ou portador de uma mensagem revolucionária. Acreditava e pregava, ao contrário, ser apenas um seguidor fiel das tradições e leis, cujo único mérito era esforçar-se para honrar a educação recebida de seus pais e avós. Pragmático, dizia que a reforma do cidadão em homem honesto era a máxima felicidade que a civilização poderia oferecer, e o único recurso garantidor da paz, da prosperidade e da segurança.
Confúcio também foi, juntamente com os legalistas, o pai dos concursos públicos. Seus discípulos conseguiram aplicar a ideia em algumas províncias, o que se tornou para sempre uma das maiores conquistas da China.
Confúcio.
Os funcionários do governo de todas as nações eram até então escolhidos pelos soberanos e pela aristocracia. Com a ideia de concursos públicos baseados no mérito os chineses conseguiram estabelecer uma casta burocrática cuja competência era medida pelo conhecimento dos textos ao invés do agrado aos soberanos. Essa casta burocrática não apenas garantiu uma educação contínua e permanente na maior parte da China, pois os pais desejavam educar os seus filhos para ascensão social através dos concursos, como garantiu a estabilidade e a qualidade das leis contra o arbítrio e até a insanidade dos soberanos. Enquanto Roma via seus loucos imperadores perverterem as noções básicas de direito, sendo sucedida pelos selvagens regentes bárbaros, a China, embora submetida à autoridade absoluta de seus monarcas, preservou sempre uma culta elite administrativa a ditar altas e polidas normas de conduta.
A terceira força do pensamento chinês clássico é o legalismo, que sequer possui uma figura de destaque. Pode-se dizer até que o legalismo existiu desde sempre, como forma básica da cultura oriental, mas ele também experimentou grande desenvolvimento por volta dos séculos V e IV a.C. 
O legalismo prega basicamente a incapacidade do homem de promover a própria educação moral, de modo que as leis e o governo possuem um papel essencial na garantia da moralidade dos indivíduos. Por mais anti-liberal e alienígena que nos pareça esta ideia ela teve um papel muito importante na cultura chinesa, e não difere tanto do pragmatismo ocidental quanto às leis. Longe de ser um dogmatismo ou uma prescrição de passividade apenas, o legalismo tenta conscientizar os indivíduos de que a vida coletiva não pode ser organizada sem a abdicação de parte da liberdade dos cidadãos. Estes precisam se apagar em nome do Estado, ou a ordem não passará jamais de uma utopia. Por isso, o legalismo prega que as leis devem ser seguidas não importa o quão erradas elas pareçam. A moral da consciência individual deve ser reprimida, pois os indivíduos discordam uns dos outros produzindo o caos. Somente a moral do governante é relevante, já que ela distingue na prática quais punições e recompensas estão em vigor.
Como uma reação natural ao tradicionalismo dos legalistas e de Confúcio, o sábio Mozi desenvolveu uma linha de pensamento que prioriza a moral individual. Mozi considerou hipócritas os conservadores e pragmáticos que almejavam a ordem social, e os acusou de perverterem a moral natural em favor do interesse político. Sua doutrina pregava então o amor universal a todas as criaturas, a busca da justiça e do bem a qualquer custo, mesmo que fosse necessário lutar contra o governo, os sacerdotes e a própria família. Apesar disso, não tinha menos interesse pelas questões sociais do que seus contemporâneos. Ele acreditava que a bondade individual seria o melhor método de garantir a ordem e a paz, pois estas últimas seriam produzidas automaticamente. Ao invés disso, as escolas éticas concentradas nas leis e no respeito a tradição não seriam capazes de reformar o indivíduo, produzindo uma paz ilusória e temporária.
Mozi.
O enfoque prático das filosofias chinesas facilitou a proliferação do budismo que chegou ao país em princípios do século IV. Mais tarde a China acomodou também o Islamismo e o Cristianismo, ambos com expressivo número de seguidores, embora conservando as suas formas mais ortodoxas e rígidas. Se por um lado o diálogo não é o forte da filosofia chinesa, originando esta multiplicidade de variações estanques e cristalizadas de tradicionalismo, é também verdade que o pensamento chinês vai fundo aos conceitos e produziu algumas das imagens mais poéticas da religião, alguns dos mandamentos mais veneráveis da moral e alguns dos princípios mais sóbrios da política de todos os tempos.
Quando Lao-tsé se deparou com a ideia de unidade da natureza, não foi através de um argumento lógico que ele no-la apresentou. Sua sabedoria foi formulada em duas linhas desprovidas sequer de um elemento de ligação, mas que compõem apesar disto um quadro completo:
Folhas caindo tocam-se umas as outras;
A chuva toca a chuva.

Deve interessar-nos uma profundidade poética e filosófica que independe de toda a estrutura que tomamos por imprescindível, a exemplo de como pode a mesma mente humana elaborar distintos caminhos que se completem rumo à verdade. Além disso são dignas de nota as semelhanças entre o pensamento padrão do Extremo Oriente e o Espiritismo. Desde o budismo(talvez antes) são gerais os conceitos de reencarnação e carma. A noção de energia vital é incontestável em todas as nações sob a área de influencia chinesa, com destaque para o Japão onde a força vital é diretamente associada ao poder da vontade. É a partir dessa energia bioplástica, o Chi ou Ki, que se originam os fenômenos paranormais.  Acredita-se que os parentes interessam-se pelas suas famílias e continuam a protegê-las do além, crença esta que originou o culto aos mortos e entidades protetoras do lar. Os místicos orientais mais do que acreditam na possibilidade de comunicação com os mortos, eles a tem como amplamente comprovada pela experiência.
A par das diferenças de concepção, a experiência iguala de maneira impressionante as crenças de todas as civilizações. 

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

É o Espiritismo um Panenteísmo?


Artigo publicado na revista Reformador, de Junho de 2006. De lá para cá o termo "panenteísmo" popularizou-se muitíssimo, sendo empregado em diversos artigos espíritas, embora nem sempre corretamente. 
Em geral, o panenteísmo firmou-se como a concepção superior e mais avançada da teologia deste início de século, em todas as denominações cristãs. 
Temos hoje essencialmente as seguintes variantes teológico-metafísicas:
- Dualismo, que defende a existência de duas realidades distintas e independentes, algumas vezes ressaltando a incapacidade de Deus de interferir na esfera material, com suas leis próprias.
 - Panteísmo, que iguala completamente Deus e a Criação, afirmando ser o primeiro um termo que descreve o conjunto e a totalidade do segundo, ou que o segundo seria uma mera ilusão, resultado de uma visão parcial e falha do todo, que é Deus. Assim, o panteísmo “mata” necessariamente a realidade de Deus ou do mundo, pois somente um dos dois pode ser efetivamente real, enquanto o outro seria subordinado. Os panteístas gostam de metáforas que diluem as individualidades e particularidades como: cada pessoa ou criatura é uma onda do oceano universal, ela pertence e nada mais é do que um pedaço do oceano visto separadamente. 
- Panenteísmo, por fim, seria um esforço de unificar as duas concepções anteriores, ou seja, a de que Deus e o mundo são uma unidade orgânica e a de que ambos são, em certa medida, independentes e individuais. A dificuldade que os panenteístas enfrentam atualmente é a de superar as diversas conotações e ambigüidades lógicas deste em certa medida.


                                                        ***

            Tanto para a filosofia quanto para a teologia e mesmo para o misticismo a relação entre Deus e a Substância do Universo é um dos pontos mais relevantes para uma teoria da religião.
Antes mesmo de considerar as implicações morais da existência de Deus enquanto supremo legislador é preciso investigar teoricamente as “condições de Sua existência”, tarefa que ocupou filósofos e teólogos desde o início dos tempos, uma vez que dessas concepções derivam os conceitos e o entendimento mesmo da relação homem/Deus, Deus/Mundo, Deus/destino, e outras implicações que constituem o cerne da religião. 
            Para se ter ideia da importância deste assunto lembramos que o ateísmo é quase sempre fruto da revolta contra uma péssima imagem de Deus, o Deus humano e exterior, escondido em algum recanto dos céus. Uma compreensão filosófica simplista ou deturpada da natureza de Deus pode, portanto, resultar nos maiores absurdos quanto a interpretação de Sua influência no Mundo, gerando doutrinas baseadas no medo, na expectativa, na dicotomia da vida, que resultam invariavelmente em angústia, descrença e rebeldia.
            Ainda na raiz das tradições religiosas mais avançadas da Antigüidade, tais quais as da Índia, do Egito, da Mesopotâmia, da Judéia e da Grécia, vê-se uma multiplicidade de perspectivas que variam entre o dualismo radical, doutrina que se manifesta ainda nas igrejas cristãs arcaicas e no Islamismo institucional, até as manifestações monistas mais complexas.1
            Na tradição ocidental o dualismo, doutrina que opera irreconciliável cisão entre espírito e matéria, Deus e Mundo, normalmente opondo-os, ocasionando inclusive desprezo e demonização do aspecto terreno da existência, foi sempre associado ao antropomorfismo e a aspectos mais populares da religião. E a ideia de dois mundos, o dos deuses e o dos homens, com distintas naturezas, casou-se perfeitamente com as elaborações primitivas de deuses humanóides, com traços físicos e psicológicos similares aos humanos.
            Por sua simplicidade, essas idéias ganharam terreno em todas as culturas, enquanto os princípios mais espiritualizados da religião permaneceram nos cultos iniciáticos. De espírito simples, os homens daquele tempo, como muitos de hoje, precisavam representar por imagens fortes e distintas as duas esferas da realidade humana, usando a imaginação para preencher as lacunas de conhecimento sobre a vida espiritual, e opondo de maneira simplista os “dois mundos”, como se fossem antagônicos, e como se dividissem também os deuses em forças do mal e do bem, do céu e da terra, estando esta última invariavelmente entregue ao mal.
            Mesmo nos textos de Platão, malgrado sua compreensão da matéria como cópia de modelos arquetípicos preexistentes, o que denota um monismo de princípio, nota-se uma certa depreciação do elemento material como impuro e oposto ao Bem.
            Tal concepção colabora com a imagem de um Deus separado, alheio ao mundo material, como se a este não houvesse também criado e nele não se revelasse.
Foi decerto no Egito e na Índia que surgiu a idéia do Pan-en-teísmo2, expressão cunhada no século XIX por Karl C. F. Krause para designar a compreensão filosófica de Deus sempre presente e atuante na Natureza, como mantenedor e vivificador eficaz e perene de tudo o que existe. Não confundir com a doutrina do Panteísmo, que afirma que “Tudo-é-Deus”, e que foi rejeitada pelos Espíritos nas perguntas 14, 15 e 16 de “O Livro dos Espíritos”, pois a afirmação de que tudo seja Deus gera decréscimo ou de Deus ou do homem à algo sem individualidade definida, visto que, sendo a mesma coisa, um dos dois torna-se atributo do outro.
            De um ponto perdido no tempo a Índia e o Egito parecem ser os nascedouros da religião filosófica, e por nosso registro cultural ocidental somos obrigados a nos concentrar no segundo de onde parte a ciência e a sabedoria de nossa tradição. As marcas que o faraó Ramsés II, o Akhenaton, e Hermes Trimegisto deixaram para a posteridade nos indicam a sombra da sabedoria egípcia em seu esplendor original.
Fundamentado na consciência clara da ligação entre todas as coisas da Natureza, sua dependência direta de Deus, o Sol dos mundos, o Vivificador de Tudo,  Trimegisto proclama que todas as coisas são uma substância desprendida de Deus, e que as diferenças existentes entre as manifestações desta emanação se devem ao teor vibratório que elas atingiram, ou seja, o grau em que se agitam impulsionados pela crescente Vontade que todos os seres possuem, a força da vida que cresce neles até torná-los plenos de vida, pensamento, ação.
Após o contato com o Egito os judeus transformaram a sua crença patriótica do deus guerreiro numa religião avançada e espiritualizada. Embora a imagem antropomórfica apareça em alguns livros da Bíblia, a Cabala hebraica conserva no conceito de Ensof a idéia de que Deus vive e atua em todos os lugares, todos os seres, todos os povos.
Na Gália, na Península Ibérica, na Britânia, na Germânia e nos Balcãs adoravam-se os carvalhos, as flores, os porcos, os cervos e os trovões como divinos que são, obras das forças harmônicas e presentes em tudo que eles não conceituavam, mas pressentiam como sendo a própria Natureza e o próprio Universo.
Orfeu, poeta grego da era pré-clássica, bebeu dessa fonte e trouxe à Grécia tanto a teoria da metempsicose quanto a visão de um Universo animado e sustentado pela Vontade Absoluta.
Pitágoras aprendeu de Orfeu e dos próprios sacerdotes egípcios, com os quais viveu cerca de trinta anos, chegando a um extrato bastante puro da antiga sabedoria. Entendeu que as diversas substâncias do mundo se diferenciam pelo grau de complexidade que atingiram, que uma harmonia perfeita se manifesta na natureza como Leis, e na mente como Razão.
Sócrates e Platão coroam o ensinamento antigo pré-cristão com a moralização da doutrina panenteísta, vendo Deus como Sol das almas, a Verdade alcançável pelo intelecto virtuoso e conhecedor de si mesmo, que lança luz sobre as sombras dos vícios e ilusões, extinguindo-os. Pregam a reforma da personalidade como via de regeneração da natureza real da alma e divulgam a essência da filosofia antiga para toda a coletividade.
Faltava ainda ao mundo o exemplo da vitória completa da personalidade e da possibilidade de se chegar a uma virtude e pureza divinas. Quando Jesus veio ao mundo a humanidade viu que a luz divina pode brilhar através de um de nós. Vislumbrou-se o destino das criaturas terrenas e a meta do longo progresso. Seus apóstolos dão testemunho registrado de sua doutrina e vida. Resguardadas as diferenças intrínsecas entre as duas esferas de existência, os apóstolos nos dizem e transmitem a mensagem de que “vivemos e nos movemos em Deus”, que “nós somos deuses”, que “os mansos herdarão a Terra”, tudo isso referindo-se a este mundo. Uma visão bem diferente do pessimismo dualista que o enxerga como maldito e impuro.
Os heróis da era cristã tentaram resgatar a pureza e a sublimidade da ideia filosófica de Deus que se apagou sob o julgo da Igreja de Roma, malgrado os esforços de Plotino e da escola de Alexandria no início da Era Cristã. Francisco de Assis viu pedras, animais e plantas como seres divinos, e mestre Eckhart fez renascer uma visão platônica e monista em forte oposição à escolástica medieval. Na Renascença uma série de intelectuais, sendo Bruno o maior deles, reavivam as doutrinas da sabedoria antiga, do infinito, dos muitos mundos habitados, do Deus que se mostra em todas as coisas.  A Reforma nas mãos de Huss e Lutero proclamam uma vida cheia de Deus, a simplicidade dos evangelhos e a liberdade da consciência, dom divino que dignifica o homem e faz dele verdadeira imagem de Deus.
Na modernidade Paracelso, Böhme, Espinosa e Leibniz defenderam a ideia da unidade fundamental do Mundo como substância emanada de Deus, em distintos graus de perfeição, mas em harmonia entre si no Todo da natureza. A revolução silenciosa da religião na Europa, ao contrário de suas lutas intestinas em espaço público, levou quatro séculos para atingir seu apogeu na poesia de Goethe e na filosofia de Hegel, na Alemanha, e culminarem na sistematização da Doutrina Espírita na França.
A doutrina Espírita nos diz que o Espírito também é composto de matéria, embora quintessenciada, que o vida dorme no mineral, para atravessar progressivamente as carreiras vegetal e animal até despertar plenamente na inteligência do Espírito. André Luiz nos diz, em “Evolução em dois Mundos”, que o Universo é a condensação do hausto do Criador. León Denis nos fala claramente em “Depois da Morte”:
  “O que a ciência derruiu para sempre foi a noção de um Deus antropomorfo, feito à imagem do homem, e exterior ao mundo físico. Porém, a essa noção veio substituir uma outra mais elevada, a de Deus, imanente, sempre presente no seio das coisas.”
           Sim, o Espiritismo é também um Panenteísmo, pois afirma que tudo promana de Deus, e portanto tudo é bom e divino. O desprezo pela matéria é despropositado em nossa doutrina. Ela também nos diz, como a antiga sabedoria, que vivemos e nos movemos em Deus.

Bibliografia:

DENIS, León – Depois da Morte / FEB, Rio de Janeiro. 1974

DURANT, Will. _  A História da Filosofia. in: Os pensadores / Nova Cultural, São Paulo. 1996
_______, Will. _  O livro de Ouro dos Heróis da História / Ediouro, São Paulo. 2001

KARDEC, Allan _ A Gênese / FEB, Rio de Janeiro. 1999
______, Allan _ O Livro dos Espíritos / FEB, Rio de Janeiro. 2003

REALE, Giovanni e Dario ANTISERI – História da Filosofia . Vol. II / Paulos, São Paulo. 1990

XAVIER, Francisco Cândido & André Luiz – Evolução em dois mundos / FEB, Rio de Janeiro. 1977



1 Doutrinas que professam a unidade e conexão de todas as coisas a partir de sua origem em Deus.
2 Pan=tudo; Teo= Deus.  Pan-en-teísmo literalmente significa Tudo em Deus.  

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O Espiritismo na literatura clássica - Roma.

Outro artigo publicado na revista Reformador, de Dezembro de 2008.

                                            ***

Como bem se sabe, toda a cultura latina é uma expressão ampliada e adaptada da grega. De modo que somente pelas características mais cotidianas e técnicas da vida se diferencia a alta cultura da Grécia Clássica e da Roma Antiga. No mais, a educação do patrício romano consiste no estudo dos clássicos, preferencialmente nos originais em grego.
            Não assusta que a sua literatura seja quase que uma cópia daquela, onde o panteão de deuses, a mitologia, a filosofia implícita e os temas tendem a se repetir.
            Assim que Cícero expressa crenças gregas, assumidamente adquiridas em contato com esta tradição.  
“Pois que estou longe de concordar com aqueles que tardiamente promulgam a opinião de que a alma perece com o corpo, e que a morte aniquila todo o ser, por outro lado, há que se valorizar a autoridade dos antigos, aqueles que estabeleceram ritos para os mortos, os quais certamente não seriam feitos com o pensamento de que os mortos estão totalmente desinteressados destas observâncias... ou ainda segunda aquela doutrina; que segundo alguns foi pronunciada pelo oráculo de Apolo ao mais sábio dos homens, e que dizia não uma coisa hoje e outra amanhã, como fazem muitos, mas repetia sempre a mesma coisa, sustentando que as almas dos homens são divinas, e que saem do corpo, que o retorno aos céus é acessível a elas, e que este retorno é direto e fácil na proporção de sua integridade e excelência.”[1] 

            É interessante o caráter prático que distingue o povo latino da maneira de pensar grega, estritamente teórica, pois nenhum filósofo grego diria serem as tradições comprovantes do interesse dos espíritos em nossas vidas. À mentalidade grega agrada a teoria, a abstração, e o grego argumentará sempre que a alma aprecia o rito fúnebre porque há para isso uma razão, e a explicará segundo a natureza da alma, a qual apraz a amizade, a lembrança.
            Cícero, sendo pragmático, argumenta conforme os fatos. 1- Faz-se ritos aos antepassados; logo, alguém que instituiu esses ritos sabia serem capazes de agradar aos espíritos. 2- Há doutrinas que falam da divindade humana e da relação entre pureza moral e libertação da alma. O filósofo latino procede por observação de fatos e relatos.
Em termos semelhantes se expressa Vergílio, embora não faça, como o filósofo, um elenco de argumentos. Como era comum às tradições do passado, incluindo, naturalmente, a Bíblia, a literatura clássica confunde criatividade e tradição, lenda e memória histórica da fundação dos povos e destino das nações.
A Eneida, que sem dúvida é a obra maior da cultura romana ao lado das Metamorfoses de Ovídio, é um relato fictício que guarda profundas intuições históricas e espirituais sob suas metáforas. Tratando somente das segundas, encontramos uma descrição impressionante do suicídio de Dido, rainha de Cartago, ao ser abandonada por Enéas. Ainda no templo da pátria, durante a decisão de matar-se, “crê ouvir a voz e os gritos de chamamento do seu marido...”.[2]
Instantes antes do suicídio, Enéas vê em sonho a imagem de um deus “desconhecido”, que lhe diz:
“... não vês os perigos que te cercam no porvir? Ela, decidida a morrer, revolve em seu coração enganos e crime cruel, e flutua numa varia agitação de furores. Porque não foges depressa, enquanto ainda podes...”[3] 

 Atento a uma mensagem tão clara e direta, Enéas não receia em lançar-se ao mar com seus marujos rumo à Itália, enquanto Dido, recebendo os informes do ocorrido, perfura-se com a espada da família. Entretanto não consegue morrer, porque literalmente está presa ao corpo, e agoniza terrivelmente.
“Então, a onipotente Juno, compadecida da sua prolongada dor e da penosa morte, envia-lhe Íris, do alto do Olimpo, para libertar aquela alma em luta com os laços do corpo. Pois, como sucumbia a uma morte não prescrita pelo destino nem merecida, mas perecia, infeliz, antes do tempo e presa a um súbito furor...”[4]
           
            Temos aí uma página verdadeiramente espírita, relatando a aventura primitiva daquilo que se observa nas páginas de André Luiz ou Manoel Philomeno de Miranda. A boa Íris tem o papel de verdadeira mensageira da luz, atuando em favor de uma transição menos terrível de Dido, que por sua vez não consegue libertar-se do corpo.
            Mais tarde Enéas tem de descer ao Tártaro, nas mesmas condições em que Ulisses havia feito na Odisséia de Homero. Enquanto o herói de Ítaca encontrava aí a sua mãe, Enéas vê o pai, Anquises, no mundo das sombras. Anquises fala a Enéas:
        “Logo que o dia supremo da vida deixou o corpo, os infelizes não estão de todo desembaraçados do mal... e o mal que longo tempo se acumula no fundo deles mesmos, necessariamente cresce... Por isso são castigados com penas e sofrem... a seguir somos enviados para o amplo Elísio... Finalmente, depois que um longo dia, volvido o círculo dos tempos, apagou a mancha profunda e purificou a origem celeste, faísca do sopro primitivo... o deus os chama para as bordas do rio Letes, a fim de que esqueçam o passado... e comecem a querer voltar para corpos.”[5]

            Esta página riquíssima aponta discretamente para várias grandes verdades. Os espíritos que não se desembaraçaram do mal são aqueles que o acumulam por longo tempo em si mesmos, revelando a lei do mérito e indicando que há justiça e conhecimento de causa no processo de separação das almas condenadas. E o mais impressionante, após os sofrimentos expiatórios de suas faltas a alma se vê purificada, e é reconduzida ao corpo.
            Esses dois exemplos, de Cícero e Vergílio, são suficientes para ilustrar o quão vivos estavam ainda os conhecimentos de Orfeu, Pitágoras, Platão e outros sábios gregos, que a cultura romana então absorvia avidamente.
            Nos anos que se sucederam os homens mais sábios do mundo romano já estavam envolvidos com o Cristianismo nascente, tanto que escasseiam obras expressivas da literatura pagã após o século primeiro d.C., aproximadamente. 
            Os melhores elementos daquela cultura, entretanto, foram absorvidos e transmitidos à rica tradição cultural dos dois séculos posteriores, cumprindo assim a sua missão de educar as populações latinas para o cultivo da virtude e da sabedoria.

 Bibliografia:

CICERO, Marcus Tullius. Ethical writings of Cícero: De Amicitia. Traduzido por Andrew Peaboy. Boston: Little Brown, 1887. 

VERGÍLIO. Eneida. São Paulo: Cultrix, 2001.


[1] Marcus Tullius CICERO. De Amicitia (Da Amizade).
[2] VERGILIO. Eneida. Pg. 81.
[3] VERGILIO. Eneida. Pg. 83
[4] VERGILIO. Eneida. Pg. 86.
[5] VERGILIO. Eneida. Pg. 127.