segunda-feira, 22 de novembro de 2010

É o Espiritismo um Panenteísmo?


Artigo publicado na revista Reformador, de Junho de 2006. De lá para cá o termo "panenteísmo" popularizou-se muitíssimo, sendo empregado em diversos artigos espíritas, embora nem sempre corretamente. 
Em geral, o panenteísmo firmou-se como a concepção superior e mais avançada da teologia deste início de século, em todas as denominações cristãs. 
Temos hoje essencialmente as seguintes variantes teológico-metafísicas:
- Dualismo, que defende a existência de duas realidades distintas e independentes, algumas vezes ressaltando a incapacidade de Deus de interferir na esfera material, com suas leis próprias.
 - Panteísmo, que iguala completamente Deus e a Criação, afirmando ser o primeiro um termo que descreve o conjunto e a totalidade do segundo, ou que o segundo seria uma mera ilusão, resultado de uma visão parcial e falha do todo, que é Deus. Assim, o panteísmo “mata” necessariamente a realidade de Deus ou do mundo, pois somente um dos dois pode ser efetivamente real, enquanto o outro seria subordinado. Os panteístas gostam de metáforas que diluem as individualidades e particularidades como: cada pessoa ou criatura é uma onda do oceano universal, ela pertence e nada mais é do que um pedaço do oceano visto separadamente. 
- Panenteísmo, por fim, seria um esforço de unificar as duas concepções anteriores, ou seja, a de que Deus e o mundo são uma unidade orgânica e a de que ambos são, em certa medida, independentes e individuais. A dificuldade que os panenteístas enfrentam atualmente é a de superar as diversas conotações e ambigüidades lógicas deste em certa medida.


                                                        ***

            Tanto para a filosofia quanto para a teologia e mesmo para o misticismo a relação entre Deus e a Substância do Universo é um dos pontos mais relevantes para uma teoria da religião.
Antes mesmo de considerar as implicações morais da existência de Deus enquanto supremo legislador é preciso investigar teoricamente as “condições de Sua existência”, tarefa que ocupou filósofos e teólogos desde o início dos tempos, uma vez que dessas concepções derivam os conceitos e o entendimento mesmo da relação homem/Deus, Deus/Mundo, Deus/destino, e outras implicações que constituem o cerne da religião. 
            Para se ter ideia da importância deste assunto lembramos que o ateísmo é quase sempre fruto da revolta contra uma péssima imagem de Deus, o Deus humano e exterior, escondido em algum recanto dos céus. Uma compreensão filosófica simplista ou deturpada da natureza de Deus pode, portanto, resultar nos maiores absurdos quanto a interpretação de Sua influência no Mundo, gerando doutrinas baseadas no medo, na expectativa, na dicotomia da vida, que resultam invariavelmente em angústia, descrença e rebeldia.
            Ainda na raiz das tradições religiosas mais avançadas da Antigüidade, tais quais as da Índia, do Egito, da Mesopotâmia, da Judéia e da Grécia, vê-se uma multiplicidade de perspectivas que variam entre o dualismo radical, doutrina que se manifesta ainda nas igrejas cristãs arcaicas e no Islamismo institucional, até as manifestações monistas mais complexas.1
            Na tradição ocidental o dualismo, doutrina que opera irreconciliável cisão entre espírito e matéria, Deus e Mundo, normalmente opondo-os, ocasionando inclusive desprezo e demonização do aspecto terreno da existência, foi sempre associado ao antropomorfismo e a aspectos mais populares da religião. E a ideia de dois mundos, o dos deuses e o dos homens, com distintas naturezas, casou-se perfeitamente com as elaborações primitivas de deuses humanóides, com traços físicos e psicológicos similares aos humanos.
            Por sua simplicidade, essas idéias ganharam terreno em todas as culturas, enquanto os princípios mais espiritualizados da religião permaneceram nos cultos iniciáticos. De espírito simples, os homens daquele tempo, como muitos de hoje, precisavam representar por imagens fortes e distintas as duas esferas da realidade humana, usando a imaginação para preencher as lacunas de conhecimento sobre a vida espiritual, e opondo de maneira simplista os “dois mundos”, como se fossem antagônicos, e como se dividissem também os deuses em forças do mal e do bem, do céu e da terra, estando esta última invariavelmente entregue ao mal.
            Mesmo nos textos de Platão, malgrado sua compreensão da matéria como cópia de modelos arquetípicos preexistentes, o que denota um monismo de princípio, nota-se uma certa depreciação do elemento material como impuro e oposto ao Bem.
            Tal concepção colabora com a imagem de um Deus separado, alheio ao mundo material, como se a este não houvesse também criado e nele não se revelasse.
Foi decerto no Egito e na Índia que surgiu a idéia do Pan-en-teísmo2, expressão cunhada no século XIX por Karl C. F. Krause para designar a compreensão filosófica de Deus sempre presente e atuante na Natureza, como mantenedor e vivificador eficaz e perene de tudo o que existe. Não confundir com a doutrina do Panteísmo, que afirma que “Tudo-é-Deus”, e que foi rejeitada pelos Espíritos nas perguntas 14, 15 e 16 de “O Livro dos Espíritos”, pois a afirmação de que tudo seja Deus gera decréscimo ou de Deus ou do homem à algo sem individualidade definida, visto que, sendo a mesma coisa, um dos dois torna-se atributo do outro.
            De um ponto perdido no tempo a Índia e o Egito parecem ser os nascedouros da religião filosófica, e por nosso registro cultural ocidental somos obrigados a nos concentrar no segundo de onde parte a ciência e a sabedoria de nossa tradição. As marcas que o faraó Ramsés II, o Akhenaton, e Hermes Trimegisto deixaram para a posteridade nos indicam a sombra da sabedoria egípcia em seu esplendor original.
Fundamentado na consciência clara da ligação entre todas as coisas da Natureza, sua dependência direta de Deus, o Sol dos mundos, o Vivificador de Tudo,  Trimegisto proclama que todas as coisas são uma substância desprendida de Deus, e que as diferenças existentes entre as manifestações desta emanação se devem ao teor vibratório que elas atingiram, ou seja, o grau em que se agitam impulsionados pela crescente Vontade que todos os seres possuem, a força da vida que cresce neles até torná-los plenos de vida, pensamento, ação.
Após o contato com o Egito os judeus transformaram a sua crença patriótica do deus guerreiro numa religião avançada e espiritualizada. Embora a imagem antropomórfica apareça em alguns livros da Bíblia, a Cabala hebraica conserva no conceito de Ensof a idéia de que Deus vive e atua em todos os lugares, todos os seres, todos os povos.
Na Gália, na Península Ibérica, na Britânia, na Germânia e nos Balcãs adoravam-se os carvalhos, as flores, os porcos, os cervos e os trovões como divinos que são, obras das forças harmônicas e presentes em tudo que eles não conceituavam, mas pressentiam como sendo a própria Natureza e o próprio Universo.
Orfeu, poeta grego da era pré-clássica, bebeu dessa fonte e trouxe à Grécia tanto a teoria da metempsicose quanto a visão de um Universo animado e sustentado pela Vontade Absoluta.
Pitágoras aprendeu de Orfeu e dos próprios sacerdotes egípcios, com os quais viveu cerca de trinta anos, chegando a um extrato bastante puro da antiga sabedoria. Entendeu que as diversas substâncias do mundo se diferenciam pelo grau de complexidade que atingiram, que uma harmonia perfeita se manifesta na natureza como Leis, e na mente como Razão.
Sócrates e Platão coroam o ensinamento antigo pré-cristão com a moralização da doutrina panenteísta, vendo Deus como Sol das almas, a Verdade alcançável pelo intelecto virtuoso e conhecedor de si mesmo, que lança luz sobre as sombras dos vícios e ilusões, extinguindo-os. Pregam a reforma da personalidade como via de regeneração da natureza real da alma e divulgam a essência da filosofia antiga para toda a coletividade.
Faltava ainda ao mundo o exemplo da vitória completa da personalidade e da possibilidade de se chegar a uma virtude e pureza divinas. Quando Jesus veio ao mundo a humanidade viu que a luz divina pode brilhar através de um de nós. Vislumbrou-se o destino das criaturas terrenas e a meta do longo progresso. Seus apóstolos dão testemunho registrado de sua doutrina e vida. Resguardadas as diferenças intrínsecas entre as duas esferas de existência, os apóstolos nos dizem e transmitem a mensagem de que “vivemos e nos movemos em Deus”, que “nós somos deuses”, que “os mansos herdarão a Terra”, tudo isso referindo-se a este mundo. Uma visão bem diferente do pessimismo dualista que o enxerga como maldito e impuro.
Os heróis da era cristã tentaram resgatar a pureza e a sublimidade da ideia filosófica de Deus que se apagou sob o julgo da Igreja de Roma, malgrado os esforços de Plotino e da escola de Alexandria no início da Era Cristã. Francisco de Assis viu pedras, animais e plantas como seres divinos, e mestre Eckhart fez renascer uma visão platônica e monista em forte oposição à escolástica medieval. Na Renascença uma série de intelectuais, sendo Bruno o maior deles, reavivam as doutrinas da sabedoria antiga, do infinito, dos muitos mundos habitados, do Deus que se mostra em todas as coisas.  A Reforma nas mãos de Huss e Lutero proclamam uma vida cheia de Deus, a simplicidade dos evangelhos e a liberdade da consciência, dom divino que dignifica o homem e faz dele verdadeira imagem de Deus.
Na modernidade Paracelso, Böhme, Espinosa e Leibniz defenderam a ideia da unidade fundamental do Mundo como substância emanada de Deus, em distintos graus de perfeição, mas em harmonia entre si no Todo da natureza. A revolução silenciosa da religião na Europa, ao contrário de suas lutas intestinas em espaço público, levou quatro séculos para atingir seu apogeu na poesia de Goethe e na filosofia de Hegel, na Alemanha, e culminarem na sistematização da Doutrina Espírita na França.
A doutrina Espírita nos diz que o Espírito também é composto de matéria, embora quintessenciada, que o vida dorme no mineral, para atravessar progressivamente as carreiras vegetal e animal até despertar plenamente na inteligência do Espírito. André Luiz nos diz, em “Evolução em dois Mundos”, que o Universo é a condensação do hausto do Criador. León Denis nos fala claramente em “Depois da Morte”:
  “O que a ciência derruiu para sempre foi a noção de um Deus antropomorfo, feito à imagem do homem, e exterior ao mundo físico. Porém, a essa noção veio substituir uma outra mais elevada, a de Deus, imanente, sempre presente no seio das coisas.”
           Sim, o Espiritismo é também um Panenteísmo, pois afirma que tudo promana de Deus, e portanto tudo é bom e divino. O desprezo pela matéria é despropositado em nossa doutrina. Ela também nos diz, como a antiga sabedoria, que vivemos e nos movemos em Deus.

Bibliografia:

DENIS, León – Depois da Morte / FEB, Rio de Janeiro. 1974

DURANT, Will. _  A História da Filosofia. in: Os pensadores / Nova Cultural, São Paulo. 1996
_______, Will. _  O livro de Ouro dos Heróis da História / Ediouro, São Paulo. 2001

KARDEC, Allan _ A Gênese / FEB, Rio de Janeiro. 1999
______, Allan _ O Livro dos Espíritos / FEB, Rio de Janeiro. 2003

REALE, Giovanni e Dario ANTISERI – História da Filosofia . Vol. II / Paulos, São Paulo. 1990

XAVIER, Francisco Cândido & André Luiz – Evolução em dois mundos / FEB, Rio de Janeiro. 1977



1 Doutrinas que professam a unidade e conexão de todas as coisas a partir de sua origem em Deus.
2 Pan=tudo; Teo= Deus.  Pan-en-teísmo literalmente significa Tudo em Deus.  

Um comentário:

  1. Ola Humberto,

    Gostei do seu artigo. Mas só sugiro que vc defina termos antes de iniciar a discussão. Qual é a definição de Panenteísmo?
    Parabéns.

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