segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A mediunidade na literatura clássica - Grécia

Reproduzo aqui meu artigo publicado na revista Reformador, de Junho de 2008.

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Com este texto pretendemos abrir caminho para discussões e exposições de fatos incontestavelmente mediúnicos, seja na exposição de obras da literatura clássica, seja no processo de sua escrita.
É bem conhecida a importância dos poetas e literatos de todas as épocas sobre a religião e a cultura. Muitas vezes são indivíduos positivamente inspirados, além de trazerem grande bagagem de conquistas na área da sensibilidade e da memória, como frequentemente ocorre entre artistas. A vantagem da literatura está em que este campo da arte está na fronteira entre a pura arte, de um lado, e as ciências humanas e a filosofia, de outro. A argumentação tem, portanto, papel garantido nas grandes obras literárias.
Sob o termo literatura também se englobam relatos menos artísticos, ensaios e trabalhos de caráter mais teórico, de modo que os diálogos de Platão ou os livros da Bíblia estão perfeitamente inseridos sob ele.
Uma boa mostra da forte presença da mediunidade entre os gregos, e que nos ajuda a compreender como eles tinham consciência do fenômeno, é a passagem do diálogo platônico “Timeu”, onde os ministros do Deus Supremo, os deuses menores ou “demônios”, deveriam seguir a ordem de criar o corpo humano de modo que ele fosse o mais próximo possível do Deus Supremo. Neste propósito deram ao homem um órgão (supostamente o fígado) que percebe a inspiração divina, destacando-se que a inspiração não acomete aos homens mais sábios, mas aos mais tolos ou que parecem loucos:

 “Nenhum homem em sua sobriedade atinge o estado de inspiração profética, mas quando ele recebe a palavra profética, ou a sua inteligência é afastada pela dormência, ou ela se torna equívoca pelo estado de possessão, e aquele que quiser interpretar as palavras divinas, seja obtidas em sonho ou acordado, ou determinar racionalmente o significado das visões de aparições, compreendendo os resultados destes fenômenos para o bem ou mau dos homens, no passado, presente ou futuro, deve primeiramente recuperar sua sobriedade.”[1]
           
No entanto, continua Platão. Nem sempre um homem se lembra daquilo que disse em estado profético, de modo que é conveniente haver um ou mais testemunhas durante a profecia e as visões. Assim, aqueles que estão em seu estado de perfeita sobriedade, podem interpretar melhor a narrativa daqueles que estiverem inspirados.
        Observa-se claramente que Platão não está defendendo um argumento, está meramente descrevendo um fato, tal era a naturalidade com que lidava com fenômenos deste tipo.
Igualmente clara é a conclusão a que ele chega no “Íon”:
 “E assim Deus arrebata a mente dos poetas, e os utiliza como seus ministros, assim como também usa adivinhos e os santos profetas, de modo que nós que os escutamos, sabemos que a sua fala não provém deles, e eles não pronunciam palavras vazias neste estado de inconsciência, mas é o próprio Deus quem fala, e através deles Ele conversa conosco.”[2]

            Somando-se os dois relatos percebemos que o estado profético ou inspirado descrito pelo filósofo tem importantes implicações científicas. Como Kardec, ele (ou talvez seu mestre Sócrates) parece ter avaliado rigorosamente o processo a ponto de formular uma compreensão teórica bastante correta da fenomenologia mediúnica. Estão perfeitamente descritos o estado de passividade do médium e o fato de a comunicação não provir dele, o caráter transcendente da comunicação, a possibilidade de poder se processar no sonho ou no estado de transe, o fato de a mediunidade ser, muitas vezes, uma missão atribuída aos “ministros de Deus.”
            Platão também dava a entender, nessas e em outras obras, que o estado profético desses inspirados podia ser utilizado por outros para obter informações sobre a realidade maior, para além do mundo dos sentidos. Muitos dos conhecimentos platônicos parecem ter sido obtidos por essa via, conforme ele mesmo admite, embora os historiadores prefiram imaginar que ele os obteve alhures, da Ásia Menor, da Índia, do Egito.
            Lembramos também que era costume entre os gregos consultar as pítias (ou pitonisas) seja no famoso oráculo de Delfos, seja em lugares e seitas menos famosos. Os relatos de Heródoto e a literatura grega deixam a entender que as sacerdotisas do templo profetizavam tanto por “encomenda” quanto espontaneamente.
            Também não nos perderemos na imensidão dos relatos mitológicos, que entre uma fantasia e outra sugerem fenômenos de vista mediúnica, incorporação, previsões, etc; nem a evidência direta da inspiração através das “musas”. Atentamos tão somente, a título de exemplo, à obra madura de Homero, a Odisséia, onde ele dá importantes indícios de que as práticas mediúnicas lhe eram comuns.
            No canto XI, quando Odisseu (ou Ulisses) tem de descer ao Hades, ele encontra a sombra de sua mãe. Após as apresentações e explicações necessárias o herói tenta abraçar três vezes a mãe, e não a podia tocar, percebendo que ela se desvanecia como uma sombra ou como se fora “feita de sonho”. Indignado ele pergunta a mãe o que ocorre, e ela lhe responde:

“... Esta é a condição de todo homem mortal quando morre, pois os nervos já não unem mais carne e ossos:
A potente energia do fogo o consome todo quando toda a vida abandona a branca ossada e o princípio vital se nos torna o mesmo que um sonho.
Mas procura volver o quanto antes a luz, e recorda de tudo isto, de modo que possa contá-lo à tua esposa.”[3]

            Percebe-se diversas características interessantes nesse encontro. A primeira é o modo com que ambas as personagens se expressam sobre a substância da mãe, que “parece um sonho”, sugerindo claramente que a viagem de Odisseu ao Hades não foi feita em sonho, mas que ele estava desperto diante dos mortos e podia constatar serem eles formados de outra substância.
A segunda informação importante é a recomendação da mãe de que ele deveria recordar do que se passou, recomendação importante considerando-se que o próprio Platão já havia dito em sua análise da mediunidade que “...ou a sua inteligência é afastada pela dormência, ou ela se torna equívoca pelo estado de possessão...”. Homero, muito antes de Platão, apresenta a mesma idéia, sugerindo a necessidade de um esforço posterior ao contato com os mortos, no sentido de se recordar do ocorrido.        
Por fim, não é menos importante, embora sutil, a recomendação da mãe de Odisseu para que ele “conte à esposa” o que se passou. É o caráter prático da comunicação, e denota o interesse caritativo do espírito em instruir e alertar os encarnados. Em toda a literatura, seja a mais artística ou mais ensaística, os relatos mediúnicos geralmente recomendam a divulgação ou a transmissão da informação a outros. Só em raríssimos casos, quando a informação envolve riscos para alguém, há recomendações para que se mantenha o segredo.
A obra de Homero tem duas grandes vantagens a seu favor, a de ser uma obra de formação da própria cultura helênica, estabelecendo paradigmas da própria religião a partir daí, e a de expressar um virtuosismo literário até hoje admirável, dando idéia de quão impressionante ela deve ter sido para a Grécia num momento em que ela sequer havia estabelecido a sua civilização.
A viagem de Odisseu ao Tártaro também tornou-se um paradigma na literatura ocidental. Vergílio faz o seu Enéias descer ao mundo dos mortos, cerca de oito séculos depois de Homero, e depois Dante descreve na “Divina Comédia” uma viagem do Inferno, passando pelo Purgatório, ao Céu, tomando a sombra de Vergílio como guia nesta inusitada peregrinação, mais de mil anos depois de seu conterrâneo da Roma antiga.
Por esse motivo a Odisséia tem a prerrogativa de ter despertado as intuições latentes de inúmeros outros pensadores e artistas, os quais a partir de então estariam sempre mais próximos de semelhante viagem ao mundo dos mortos.

Bibliografia:

HOMERO. Odisea. Buenos Aires: Planeta, 2007.

PLATÂO. Íon. Classical Library. Disponível em:

______. Timeu. Classical Library. Disponível em:

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