Se há algo em que a filosofia pode contribuir para a melhor compreensão do Espiritismo e sua inserção na pauta de debates especializados é o enfoque histórico-crítico que ela viabiliza. Isto porque a filosofia é uma disciplina de crítica, a única, aliás. Enquanto a ciência é obrigada a pressupor o seu objeto de estudo antes de investigá-lo e enquanto a religião pressupõe um relacionamento possível com o Sagrado, preocupando-se estritamente em estabelecer as regras deste relacionamento, a filosofia é a única atividade humana que se esgota a si mesma. Ela coloca sob o crivo da razão sua própria condição de existência, e uma mera definição do que seja filosofia não é o ponto de partida, mas o fim de todos os esforços filosóficos.
Cada um destes temas possui naturalmente seus desdobramentos, e nenhum deles deixou de ser explorado por autores espíritas. Não obstante, como em todos os demais temas estes estudos devem prosseguir e jamais se pode considerá-los concluídos. Se a história de Roma ou do Egito antigo ainda vêem novidades e descobertas intrigantes aflorarem nos dias atuais, após milhares de anos de estudos, como cogitar-se esgotar em poucas décadas a investigação sobre um movimento complexo numa época infinitamente mais rica de detalhes, contradições e inovações?
Por mais que isto choque o senso comum, as ciências partem de dogmas fundamentais e não de um método crítico. Claro que o método científico é racional, eficiente e muito elaborado, mas ele só apresenta os seus rigorosos critérios em confronto com os seus objetos de investigação: os fenômenos e as teorias sobre eles. A ciência jamais volta as suas armas contra si mesma, como a filosofia o faz, e todos são capazes de reconhecer os seguintes dogmas científicos básicos:
1- Existe uma realidade objetiva garantindo a existência de fato de tudo o que vivenciamos e experimentamos. Por outras palavras, nossa existência não é apenas um sonho, mas está radicada numa realidade independente de nós.
2- Somos capazes de investigar esta realidade com o poder de nossa observação judiciosa.
3- Para que o item 2 seja verdadeiro, devemos ser capazes de estabelecer exatamente o que é uma observação judiciosa. Temos, portanto, uma idéia bem definida do que é lógica, verdade, e outros elementos mentais necessários a este juízo.
Um cientista que duvide seriamente destas condições acaba desistindo do seu trabalho e torna-se um filósofo.
Aquilo que separa, portanto, a tarefa e a utilidade dos trabalhos científicos e dos trabalhos filosóficos é uma questão de princípios que, por sua vez, regulam interesses distintos. Se queremos discutir o que é possível conhecer, e como o conhecimento deve se organizar, devemos filosofar. Se, por outro lado, desejamos sair desta enrascada inicial, e partir corajosamente por uma trilha menos fundamentada, mas que traz muito mais resultados, devemos fazer ciência ou matemática.
Aquilo que separa, portanto, a tarefa e a utilidade dos trabalhos científicos e dos trabalhos filosóficos é uma questão de princípios que, por sua vez, regulam interesses distintos. Se queremos discutir o que é possível conhecer, e como o conhecimento deve se organizar, devemos filosofar. Se, por outro lado, desejamos sair desta enrascada inicial, e partir corajosamente por uma trilha menos fundamentada, mas que traz muito mais resultados, devemos fazer ciência ou matemática.
Não haveria crise entre estas duas grandes disciplinas racionais, filosofia e ciência, se ambas estivessem totalmente conscientes deste papel. Mas o fato é que o impacto popular e emocional da ciência é incomparável devido aos resultados práticos que somente ela proporcionou a humanidade. Duvidar e fundamentar o conhecimento garante segurança contra todo o tipo de preconceito e posturas ingênuas, mas não nos traz conforto, segurança, saúde e diversão na mesma proporção em que a tecnologia o faz. Isto produziu um problema de julgamento inteiramente compreensível, de que a ciência seria um critério de verdade de maior validade do que a sua companheira mais velha, a filosofia, que em inúmeros séculos não pode apresentar os mesmos resultados.
Justiça seja feita, a filosofia produziu menos idéias frutíferas, do ponto de vista prático, do que a ciência. Ela monopolizou, por falta de alternativa melhor ao seu método, o conhecimento acerca da natureza, conduzindo muitas vezes a labirintos estéreis de teorias sem suficiente base de comprovação empírica. Por outro lado, ela fez muito com os métodos que possuía, e se a ciência é de algum modo um dos frutos da filosofia, esta última é também responsável pelos méritos que a nova disciplina colher. Ademais, agora que temos o método científico para tratar de questões naturais, a filosofia volta suas forças sobre os temas que realmente pode tratar de modo privilegiado, uma vez que não depende em nenhuma medida de investigação empírica, senão exclusivamente de análise de princípios e julgamentos de valor.
Estes métodos são atualmente a teoria do conhecimento, que investiga exatamente as condições em que o conhecimento é possível, se é que o é; a ética, que investiga a possibilidade de fundamentação de regras para a conduta, segundo valores como a felicidade, liberdade e a justiça; a estética, que se pergunta acerca da possibilidade de estabelecer valores universais de julgamento da qualidade e natureza da obra de arte; a lógica, que se pergunta se é possível e como procede uma análise inteiramente imparcial; a metafísica, vértice e guia das demais disciplinas, definindo que tipo de relacionamento é possível entre as demais esferas e em que sentido cada uma delas pode aspirar a uma realidade objetiva. Eles não englobam, contudo, todas as disciplinas filosóficas encontradas nos manuais e nas universidades, mas as matérias restantes podem ser derivadas destas principais. Assim temos a filosofia da religião e a cosmologia derivando principalmente da metafísica e da teoria do conhecimento, a filosofia política como uma expansão da ética do indivíduo para a sociedade, e assim por diante.
Todas estas disciplinas contribuem em muito para o estudo criterioso de um conjunto teórico vasto e abrangente, como é o Espiritismo. Os seus muitos aspectos como religião, ciência e filosofia, suas implicações éticas, suas teorias sobre a realidade e o papel do homem dentro dela, são só a ponta de um iceberg capaz de consumir gerações de estudos e pesquisas. Mas, não obstante a filosofia esteja na raiz do Espiritismo como em nenhuma outra religião na história humana, a perspectiva filosófica nem sempre é aplicada entre os seus divulgadores, e eu diria até mesmo entre os seus teóricos. Para delimitar bem e exemplificar o que digo, escolho dentre as possibilidades que a filosofia permite, a de uma análise histórico-crítica do Espiritismo.
Quando falamos neste tipo de análise, queremos explicitar o papel do desenvolvimento histórico de um grupo de idéias dentro do sistema orgânico da cultura, traçando suas origens e linhas de influencia, seus desdobramentos e impacto, e situando geográfica e culturalmente o fenômeno observado. Neste tocante o Espiritismo vulgar mostra-se demasiadamente carente, em contradição com a qualidade e a lucidez de algumas de suas obras basilares. Desta maneira, surge um abismo entre a consciência esclarecida de autores como Kardec, Denis, Bezerra de Menezes, Herculano Pires e autores espirituais diversos, e a idéia geral da inserção histórica do Espiritismo. Do lado dos primeiros temos uma genuína filosofia da história, por parte dos últimos temos uma crença ingênua quanto a exclusividade do Espiritismo dentro do processo histórico, como se ele estivesse destacado dos acontecimentos gerais. Prova conclusiva em favor desta afirmação é o fato de que há décadas não há interesse em pesquisa histórica do Espiritismo, ou ela se limita a temas evangélicos ou diretamente ligados aos primórdios do Espiritismo por começos do século XIX. Conquanto todos estes trabalhos sejam de suma importância, estamos convencidos de que este cenário precisa mudar.
Em parte, o problema de consciência histórica do Espiritismo pode estar relacionado com as obras históricas de autores espirituais como Emmanuel e Humberto de Campos. Isto porque, apesar das insistentes afirmativas destes espíritos de que suas obras A caminho da luz e Brasil: Coração do mundo, pátria do evangelho, respectivamente, tratam da história de um ponto de vista exclusivamente espiritual e insuficiente do ponto de vista propriamente histórico, o público geral tende a ignorar estas ressalvas e adotá-las como referencia histórica, sem maiores considerações.
Este erro de compreensão e recepção de obras como estas, criou uma consciência histórica sem contato com a realidade do mundo, em franca contradição com as ressalvas feitas pelos autores citados, que não queriam uma substituição do trabalho historiográfico humano, documentado, geograficamente situado, etc.
Dentre os inúmeros problemas causados por esta falha de compreensão, cabe citar a autocompreensao histórica de muitos espíritas como pertencentes a um movimento sem bases na cultura de onde este é proveniente, ou seja, a cultura francesa, católica, racionalista e positivista do século XIX, em sua maior parte, e seus contemporâneos protestantes na Inglaterra e Estados Unidos.
Para detalhar ainda mais a importância desta perspectiva histórica, basta ressaltar que apesar dos pesquisadores espíritas renomados de diversas procedências, como Aksakof, Zöllner, Du Prel, Lombroso e Bozzano, o Espiritismo não vingou minimamente em seus países de origens, apesar do entusiasmo de milhares de adeptos na Rússia, Alemanha e Itália. Com isto se pode concluir, no mínimo, que o desenvolvimento do Espiritismo dependeu, ao menos em parte, das condições privilegiadas das nações mais liberais e laicizadas, tais quais as três primeiras citadas, e com isto já podemos tirar inúmeras conclusões técnicas frutíferas.
Esta e outras questões de alta importância para um estudo sistemático do Espiritismo são anuladas em seus pontos de partida se abdicamos ou olvidamos do estudo filosófico constante desta tradição. Com isto, corremos o risco de perder o vínculo de identidade e verdade do desenvolvimento da doutrina espírita, substituindo-o pela mitologia.
Bem entendido, mitologia não é necessariamente a descrição das idades recuadas sobre a formação do mundo e acontecimentos mágicos, senão a descrição de qualquer acontecimento histórico do ponto de vista exclusivamente dogmático. Se dizemos, portanto, que o Espiritismo é um movimento de revelação dos espíritos, cuja época e forma foram assinalados por Deus, estamos abdicando de uma explicação histórica e crítica para adotar exclusivamente uma explicação mítica, ou seja, narrando um evento histórico de uma forma que não pode ser confirmada ou racionalmente analisada. Uma tal explicação das origens de um acontecimento não nos permite nenhum tipo de estudo racional sobre as idéias espíritas, obrigando-nos, ao contrário, a depositar fé incondicional e cega no dogma da revelação.
Esta perspectiva está em claro confronto com as bases da proposta espírita, que é a de uma fé racional, implicando com isto a dúvida sistemática e o julgamento criterioso de elementos revelados ou outras hipóteses explicativas. É, portanto, inaceitável a idéia de que o Espiritismo se resume numa revelação. Sua natureza exige um duplo ponto de partida, coisa extraordinária na história das religiões, que seria o de uma revelação dependente de condições históricas. Seus inúmeros formuladores compartilhavam desta percepção, afirmando sempre que a revelação generalizada do Espiritismo dependia inteiramente de certos progressos sociais e científicos que permitissem uma compreensão mínima dos fenômenos naturais e morais implicados. Ao menos quanto a isto guardou-se no Espiritismo um senso histórico profundo, a ponto de tornar-se senso comum a concepção de que ele não poderia ter surgido em épocas anteriores, ou em outro lugar que não fossem os países mais civilizados da Europa Ocidental. O conhecimento mínimo de história torna este preceito plenamente compreensível.
Como dito anteriormente, em nenhuma religião a revelação divina depende de condições culturais prévias, e isto quase descaracteriza o Espiritismo como religião segundo os critérios de classificação existentes. Ele mesmo se reconhece corretamente como terreno de fronteira entre religião, ciência e filosofia. Sem limitar-se a nenhum dos três, compartilha elementos de todos, e isto lhe dá a sua exclusividade. Retirar dele o seu senso histórico seria matar-lhe uma parte vital de seu aspecto filosófico, condenando-o a reproduzir os modelos dogmáticos de religião. E é por isso que cabe insistir num projeto vigoroso e constante de crítica histórica do Espiritismo.
Conforme entendo, este projeto deveria conter ao menos as seguintes linhas de pesquisa:
1- Análise histórica do Cristianismo e do paganismo helênico e druídico;
2- Análise de religião comparada em torno dos conceitos principais do Espiritismo, como reencarnação, comunicabilidade com os mortos, justiça divina, progresso e pluralidade dos mundos habitados;
3- Análise teológica e histórica da Reforma, do Renascimento e da Idade Moderna;
4- História da cultura, enfatizando a história da filosofia, da ciência e da religião referentes à formação da mentalidade dos séculos XVIII e XIX.
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