O Espiritismo apresenta-se como “uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal”, segundo a definição de Kardec em O que é o Espiritismo, e isso pressupõe e exige a natureza universal desses mesmos fenômenos. Não é, portanto, o Espiritismo, comparável a qualquer conjunto de crenças religiosas, pois nenhuma delas coloca-se sob as mesmas exigências.
Apresentar-se como ciência e filosofia separa-o conclusivamente das demais religiões, mas, ao afirmar-se como ciência, ele se restringe e coloca sob risco a segurança de seus postulados, os quais as religiões têm garantidos pelo dogma.
Dentre os inúmeros riscos a que se expõe uma religião com pretensões científicas está o de provar o caráter universal de seus fenômenos, e sua completa independência da respectiva crença neles ou numa filosofia que os apoie. Por isso é tão importante para os espíritas buscar a comprovação de seus pressupostos dentro de tradições religiosas, um hábito ressaltado nas coletâneas e artigos de Kardec na Revista Espírita.
Poucas coisas podem beneficiar mais uma hipótese científica do que descobrir a presença de seus fenômenos num ambiente em que eles são considerados impossíveis. Se a ciência em questão é acusada de depender de uma disposição cultural, nenhuma outra descoberta é mais alentadora do que a de que seus fenômenos estão bem enraizados numa cultura que a condena.
É o caso de religiões que possuem uma postura declaradamente contrária a fenômenos espíritas, como o catolicismo e o islamismo. Encontrar os mesmos fenômenos ou os elementos de uma filosofia espírita num tal ambiente é depor fortemente contra a idéia de uma explicação cultural para sua existência. No presente texto, quero falar da presença inconfundível de fenômenos e de princípios filosóficos espíritas entre os muçulmanos, cujos conselhos oficiais negam a abominam os conceitos de reencarnação e comunicação com os mortos.
Muhammed Iqbal, poeta, pensador e político influente do início do século XX propôs uma renovação espiritual do Islã, colaborando para a divulgação de místicos e filósofos muçulmanos dos séculos passados numa perspectiva espiritualista arrojada. Para ele cada partícula do universo é um “eu”, um espelho do Criador buscando o seu desenvolvimento.
Entre os grandes mestres espirituais do Islã está o persa Rumi, considerado por muitos o maior homem santo do Islamismo, abaixo do profeta Mohammed. Algumas de suas passagens, escritas por volta de 1250, apresentam não apenas idéias reencarnacionistas, mas evolucionistas, numa forma tão elaborada como só foi vista novamente no século XVIII. Rumi diz:
“Toda a forma que tu conheces tem a sua origem no mundo divino. Se a forma desaparece, isso não tem conseqüências, porque o original perdura... Não temas, a água desta fonte é ilimitada.
Quando tu vieste a este mundo dos seres criados, uma escada se fez diante de ti, de modo que tens de percorrê-la. Inicialmente tu foste um inanimado, então te tornaste planta; depois disso te modificaste em animal. Por fim chegaste a humano, possuidor de conhecimento, inteligência e fé. Depois te tornarás anjo. Então este mundo estará terminado para ti, e o teu lugar será nos céus. Melhora-te também até no estado de angelitude. Passe para a profundeza gloriosa, de modo que aquela única gota, que és tu, possa tornar-se um oceano.”
O caráter de Rumi era tão impecável que seus contemporâneos o chamaram de o homem perfeito, ou homem sem pecado. E seus escritos eram tão apreciados que um ditado foi cunhado com os seguintes dizeres: “Rumi não é profeta, e seus textos vêm dele mesmo. Não obstante, tudo o que escreve é tão sagrado quanto as próprias Escrituras reveladas.”
Rumi. |
A doutrina de Rumi se baseava na idéia de que toda a criatura é a imagem e semelhança de Deus e, portanto, espiritual e santa. Tudo é divino, e tudo está permeado pelo divino. O cosmo está envolto numa força invencível, que é o amor de Deus. Essa força faz todos os seres subirem em direção a Deus, passando por muitas fases evolutivas em diferentes corpos e experiências, inclusive em outros mundos inimagináveis para o habitante da Terra. O amor de Deus arrasta tudo para o alto, para a profundidade e liberdade do espírito, e os seres se agrupam por semelhança numa marcha ascensional.
O homem santo também não se limitava a filosofar. Compôs toda uma doutrina de comportamento e purificação mística baseada no amor. Combateu a idéia de indignidade da raça humana, que não via como pecadora, mas inteiramente santa e divina. Difundiu em sua comunidade uma mística do amor ao próximo e a natureza, muito semelhante à renovação que Francisco de Assis tentou desencadear na Igreja católica exatamente no mesmo período.
Outro místico e filósofo importante é Al Farabi. Grande leitor de Platão, Aristóteles e Plotino, criou uma cosmologia filosófica muito complexa para o Islamismo, segundo a qual os seres seriam atraídos por um magnetismo espiritual constante em direção ao “centro de si mesmos”. O resultado desse processo de desenvolvimento seria o autoconhecimento, coincidindo com o conhecimento de Deus que é a fonte do espírito.
Al-Farabi foi de uma erudição lendária. Criou instrumentos e estilos musicais inovadores, provou a existência do vácuo, reformulou a matemática e a lógica, chocou muitos pensadores muçulmanos ao afirmar que o Corão deve ser submetido ao crivo da razão e que o homem possui livre-arbítrio. Sua cultura era tão ampla e tão geral que o seu nome foi preservado inclusive na Europa, especificamente no idioma português, através da palavra Alfarrábio, sinônimo de escritos antigos, extensos e difíceis.
Uma homenagem aos sábios espiritualistas muçulmanos não possui valor se deixar de fora a menção honrosa a Ibn Arabi. Esse grande intelectual e místico espanhol desenvolveu técnicas de respiração e meditação que lembram em muito as do yoga, objetivando o aumento da força de vontade e do autodomínio através do controle severo da respiração. Também recomendava e praticava diariamente meditações longas, baseadas na contemplação de Deus e repetição de suas glórias.
A vida mística de Arabi começou com uma estranha visão. Ele viu-se repentinamente atirado para o alto, como se voasse para os seus, mas sem sair do lugar onde estava. Viu aproximarem-se três figuras majestosas, que ele reconheceu como sendo Moisés, Jesus e Maomé. Os três tinham uma mensagem para ele. Jesus recomendou-lhe a vigilância, Moisés o estudo, e Maomé recomendou: “Esteja sempre comigo.”
Arabi seguiu fielmente os três conselhos, o melhor que podia, e estudou filosofia e religião. Anos depois, em fins do século VI, ele teve outra visão impressionante. Diante dele desfilaram em instantes todos os profetas e homens santos de diferentes religiões e ele os reconhecia sem que nenhuma palavra fosse dita. Ao despertar do transe uma única lição ecoava em sua mente: “Todos os profetas foram enviados por Deus”.
A partir dessa fase as visões se tornaram comuns para Arabi, mas não mais espontâneas. Ele desenvolveu uma técnica de concentração que lhe permitia entrar em transe voluntariamente, o que viabilizava visões mais longas. Algumas delas eram muito simbólicas, lembrando as visões do Apocalipse de João. Outras eram inteiramente relacionadas à sua vida terrena. Nestas últimas incluíam-se visões do futuro, seu ou de outros, intuições sobre o que outras pessoas faziam a distancia e mensagens diretas, geralmente na forma de um comando ou conselho.
Fenômenos de vidência, premonição, vozes diretas, inspiração, aparições luminosas, curas espirituais e filosofia espiritualista, incluindo freqüentemente idéias reencarnacionistas, são comuns no Islamismo, embora impopulares. Sempre houve pessoas que defendiam práticas ou a crenças espíritas, e costumeiramente elas eram tidas como santas e respeitáveis. Nomes menos famosos do que esses podem não ter sido registrados pela história, mas o estudo das tradições orais, ditados e lendas dos diversos povos islâmicos pode trazer interessantes revelações sobre o quanto de Espiritismo há nessa religião mundial.
Muito bom seu texto. Poderia me indicar a fonte de consulta? Eu tenho tido contato com muçulmanos e tenho tido a possibilidade de dialogar, sutilmente, sobre conceitos do Espiritismo. Inclusive participei, à convite, de uma visita a casa de um homem santo nas montanhas do caucaso. Justamente ele era santo devido a grande gama de fenômenos mediúnicos que ocorriam com ele.Este texto vai me ser útil em futuros diálogos.Abraços
ResponderExcluirInteressante o seu relato Rafael. Minhas fontes principais foram "FADIMAN, James & FRAGER, Robert. Essential Sufism. New York: HarperCollins, 1997" e o tomo "A idade da fé" de Will Durant, pertencente a sua famosa colecao da história da civilizacao. Mas como o texto só cita personalidades muito famosas nao é difícil achar mais referencias na net. Abraco.
ResponderExcluirAdorei essa materia, Humberto! Parabens pela pesquisa e forma tao clara de expor.
ResponderExcluirSó me esclareça, por favor, neste trecho "Arabi seguiu fielmente os três conselhos, o melhor que podia, e estudou filosofia e religião. Anos depois, em fins do século VI,"aqui diz século VI, mas o Corão foi escrito no século VII, poderia ser um erro de digitação?
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