Religiões, no plural, é a forma como
designamos as construções culturais em torno da experiência religiosa. Conforme
o país, a época e a camada da sociedade que se agrupa ao redor de uma nova
interpretação dessa experiência, surgem as doutrinas e as práticas, os símbolos
e os fenômenos psíquicos correlatos que, apesar de semelhanças ocasionais,
marcam as diferenças entre uma e outra religião.
As formas finitas, pessoais ou locais em
que se baseiam as diversas religiões as tornam sem dúvida alguma ímpares, isoladas,
únicas... Ainda assim, um senso mais íntimo – um que deve ser especificamente o
senso religioso – nos causa incômodo em relação a essas mesmas definições e
limites que necessariamente caracterizam a nossa fé, como a dos outros. É este
senso religioso mais profundo que nos faz criticar e combater os limites de
nossa própria doutrina ou comunidade, sempre que eles ponham em risco a
infinitude experimentada no contato direto com a fonte de sentido da religião
em geral.
Religiosos quase sempre se dividem de
forma perceptível entre essa doutrina finita gestada por uma comunidade e uma
cultura específicas, e a doutrina infinita e sem fronteiras que perde a
capacidade e o interesse em diferenciar a minha
das outras fés. E, ao passo que a
manifestação religiosa culturalmente limitada é inevitável, é ao incondicionado que o instinto religioso almeja. A
divisão é uma fatalidade, mas a união, a generalidade, a universalidade da
religião é a meta sem a qual se perde o seu propósito.
Toda a religião singular é tão mais
reprochável, tão menos útil ao progresso geral, quanto mais ela se entender
como algo único, exclusivo e diferenciado; quanto menos ela entender as demais
como irmãs que compartilham a mesma busca.
Indiscutivelmente, há diferenças
marcantes e radicais em algumas ou todas as tradições religiosas. As religiões
hipercomplexas como Cristianismo e Hinduismo reúnem elementos aparentemente
inconciliáveis como niilismo, panteísmo, politeísmo e monoteísmo, sustentando,
por isso, conflitos teóricos imensos, enquanto religiões mais homogêneas como o
Islã são capazes de integrar as diferenças numa quase ordem mundial, criando um
tom que se destaca na sinfonia.
Judaísmo e Cristianismo produziram a
mentalidade ocidental graças ao seu enfoque na história deste mundo como
desenvolvimento de um mundo ideal ou transcendente. Profetas, santos e
reformadores se sucedem ininterruptamente na formação de uma corrente de
revelação continuada, uma estória contada por Deus.
O Budismo concentra suas forças na
iluminação para fora do mundo (não em sentido ontológico, mas em sentido
existencial). A realização de um reino de Deus não é crível, dada a natureza
essencialmente ilusória e corrupta da existência, mas algumas versões não tão
minoritárias não vêem problemas em associar a natureza búdica com Deus, e
apresentar algum tipo de individualidade imortal que resiste à toda a corrupção
da transitoriedade.
A parte majoritária do Islamismo prega o
governo absoluto de Deus, de modo que a nós criaturas não cabe decidir quanto
aos rumos e projetos, nosso livre-arbítrio servindo apenas para a nossa
adequação ou inadequação ao plano de Deus, com conseqüência para a alma imortal
mais do que para este mundo.
O Hinduísmo é tão variado que suas
próprias subdivisões se apresentam radicalmente distintas umas das outras,
sendo difícil traçar linhas gerais que as agreguem. Talvez a reencarnação e a
busca pela salvação sejam os únicos elementos comuns.
Se considerarmos o materialismo e o
espiritualismo holista de muitos cientistas e pensadores contemporâneos como
uma espécie de religião, acrescentamos elementos muito incomuns em relação ao
que em geral se classifica como tal.
Mas toda a diferença não é senão o
pensar finito, a definição de termos e elementos, “objetos” e “ações”
religiosos, não aquilo em torno do qual a religião é fundada, não o pensar que
se volta para o infinito. Há, portanto, um erro de princípio visceral em
considerar esses elementos mais importantes do que o elemento propriamente
religioso, o incondicionado, o indizível, aquilo que consideramos merecedor de
respeito e devoção. Quando o denominamos Deus, deuses, a humanidade, a
natureza, a vida, a força cósmica, a verdade, não estamos mais do que revelando
o aspecto que nos toca em particular, mas nosso instinto religioso nos faz
sensíveis aos aspectos que não nos interessam ou mesmo nos desagradam, na medida em que revelam os mesmos traços de
infinitude e sentido.
A alma religiosa jamais poderá rejeitar
completamente um humanismo ateu como o de Carl Sagan, vazado por um estupor
estético e intelectual diante da grandeza, complexidade e perfeição do cosmos,
centrado na figura humana e na valorização de toda a forma de vida em atitude
de verdadeira adoração. Por mais
progressista que seja, o coração religioso nunca deixará de respeitar também e
não obstante o xamanismo tribal, organizado em torno de totens e animais
sagrados. Ao passo que a inteligência social ou natural enxerga uma projeção do
imaginário, a inteligência espiritual – se o indivíduo tiver alguma – é tocada
pela beleza e força do símbolo, do qual pode aprender tanto sobre a realidade
espiritual quanto de uma doutrina mais elaborada.
A parte religiosa da constituição humana
não pode ser imunizada contra o respeito e a simpatia a que nos compungem o
zelo israelita, o fervor abrasivo dos muçulmanos, a disciplina adamantina dos
yogis, a pulcritude budista, a placitude taoista, o amor cristão, e, porque
não, a indignação justa dos materialistas quanto aos problemas imediatos da
vida física, social e psicológica. Essa nossa essência religiosa nos faz
admirar todos os diferentes esforços para o cultivo do que de melhor possui o
ser humano, aquilo que lhe permite superar-se, que o leva a transcender os seus
limites.
Ademais, enquanto religiosos medíocres,
mesmo em posições elevadas em suas respectivas instituições, enfatizam sempre a
diferença e a especificidade de suas doutrinas, religiosos de “elite” como os
místicos e os fundadores de religião demonstram sempre um comportamento
completamente distinto. Confúcio, ao ser questionado quanto ao seu conceito de
homem perfeito, enfatizava que apesar de seus esforços ele mesmo ainda
apresentava vícios que o afastavam desta condição, mas apontava uma série de
outros indivíduos que, conquanto justos, todos consideravam menos sábios e
nobres do que ele. Jesus chocava a sociedade e seus discípulos enobrecendo os “hereges”
samaritanos como um povo reto aos olhos de Deus. Questionou dogmas do judaísmo
e se negou sempre a estabelecer princípios, incentivando seus ouvintes a
investigação da consciência. Não apenas Buda, mas Nagarjuna, Jizang, Hui Neng e
uma série de sábios budistas combateram duramente noções doutrinais em favor de
uma postura crítica e questionadora, muitas vezes com reconhecimento de
praticantes de outras religiões como “budas” e “santos”. Rumi, místico e poeta
islâmico desafiou os dogmas vigentes para acolher a ideia de reencarnação e de
fraternidade com as demais religiões, louvando judeus e cristãos piedosos.
Qualquer cultura possui exemplos
edificantes de diálogo inter-religioso, bem como missionários da dupla pertença,
ou seja, pessoas que se consideram membros de duas religiões distintas. São
inúmeros os exemplos de devotos que conciliam paganismo helênico e
cristianismo, islamismo e misticismo persa, budismo e taoismo .. O hinduísmo,
por sua vez, é reconhecido por sua flexibilidade e conversibilidade em termos
de outras fés. Há yogis muçulmanos, budistas, cristãos, e nunca houve
problemas em identificar mestres de culturas alheias como gurus iluminados.
O Espiritismo, que não é uma tradição
religiosa, baseia-se na teoria tanto quanto na revelação de uma harmonia
superior entre as religiões, as ciências, as filosofias e todas as demais
formas de cultura e civilidade que venham a contribuir para o progresso.
Desloca o foco das particularidades da crença e da organização religiosa para
uma concepção universalista da espiritualidade e da religiosidade, contra os
velhos impositivos das noções de religião institucionalizada. Abre a
consciência para novas perspectivas, novas oportunidades iluminativas e
vitaliza a fé demonstrando serem muitas as mensagens dos céus a nós caminhantes
das baixadas enevoadas.
A sua apresentação pode e deve se
associar à tradição cristã, com a qual nossa cultura ocidental desenvolveu
profundos laços históricos, mas não deve deixar de também estender seu
acolhimento e prestígio a todas as demais tradições religiosas. São também
todas divinas, e também se fecharam ou cristalizaram por culpa dos erros
humanos. A perspectiva de uma revelação continuada deve superar esses entraves
que a sociedade impôs às revelações momentâneas. Disso depende o futuro das
religiões.
Humberto, gostaria de contar com sua visão sobre o que está faltanto para a Filosofia Espírita passe a ser aceita nas universidades? Levantei cerca de 30 livros que abordam diferentes filosofias e em apenas um aparecia o verbete Espiritismos, com foco no fenômeno mediúnico. Ou, o que uma filosofia precisa ter para ser considerada como filosofia? Agradeço o retorno e torço para aceitar essa proposta.
ResponderExcluirIvan, para não depreciar ou acusar ninguém eu diria que a questão é histórica e cultural. Nosso papel é trabalhar para que isso mude aos poucos. Tenho sim muito interesse no assunto.
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