quarta-feira, 13 de julho de 2011

Rousseau e Kardec


            Enfim chegamos a um dos pontos que era o objetivo deste espaço desde a sua criação. A partir daqui veremos ao longo de alguns meses coletâneas de biografias e ideias de alguns dos filósofos que participaram da Codificação do Espiritismo junto a Kardec. Dentre os inúmeros espíritos que se destacaram na liderança do movimento de revelação, os santos e pensadores ocupam posição privilegiada. Entenderemos um pouco do trabalho de alguns dos representantes da segunda classe, de modo que a sua atuação na falange do Consolador se torne não apenas mais clara, como justificada a sua presença.
         Começamos por um personagem controverso, Jean Jacques Rousseau, que em aspectos morais e psicológicos não parece figurar na camada superior das almas esclarecidas. Não obstante, seu impacto sobre o mundo o coloca no rol limitado dos homens que pelo pensamento mudaram os rumos da civilização. E não se pode negar que muitos dos conflitos experimentados pelo escritor estão diretamente associados à sua condição de inspirado e sensitivo, como se defere inclusive de seus escritos biográficos.
         Rousseau foi excepcional desde a infância. Tendo a felicidade de nascer na região de Genebra, um dos raros bastiões onde a liberdade e o progresso não encontravam os entraves da Igreja ou do próprio Estado no século XVIII, o menino revelou-se desde cedo amante das letras, com notável tendência para o gênero de fantasia, típica preferência nutrida pelas almas cujo pensamento certamente está habituado a outros ambientes mais amplos que os da Terra.
         De índole sensível e impetuosa, experimentou quase tudo o que era dado ao homem de seu tempo; mendicância, aventuras amorosas, patronagem por parte de autoridades, perseguição e exílio, incompreensão e loucura.
         Foi sempre um inspirado, tomado quase que obsessivamente pelas ideias de justiça, sinceridade e da felicidade possível na Terra. Todos os seus escritos inflamam o espírito, como que a exigir uma atitude imediata por parte do leitor.
         Negativamente pesa-lhe a defesa da vontade da maioria, teoria que descambou nas absurdas ideologias do comunismo e do fascismo, com prejuízos humanos para todas as minorias e indivíduos não alinhados com a vontade das massas, muitos deles simplesmente por participarem desde o berço de uma classe discriminada. Essa discriminação das aristocracias e dos ricos, enquanto não violenta por parte do próprio autor, incentivou muitas atrocidades por parte de almas sanguinárias que souberam se aproveitar da reivindicação por justiça. Acresce a isso o temperamento inconstante que tanto lhe dificultou a vida prática, a paranoia e a indiferença para com os filhos. Por fim, a ideia de que o homem é bom em seu estado primitivo, responsabilizando a civilização pela sua corrupção, é não apenas infundada como perigosa, pois serviu para alienar gerações de pessoas insatisfeitas com a sociedade, as quais passaram a buscar uma fuga dela ao invés de sua correção.
         Contam entre seus méritos a inauguração na cultura humana do amor a natureza, que alimentou o romantismo e posteriormente a ecologia; o despertamento para a necessidade de transformação e combate a injustiça, que nem sempre se realizou de forma revolucionária e obscura, e a forma inovadora de fazer filosofia, que abriu caminho para uma inédita filosofia do sentimento e da intuição em plena era de racionalismo. Finalmente, suas teorias sobre a educação, ao passo que simplórias, tiveram preciosa colaboração no desenvolvimento da pedagogia humanizada da atualidade.
         A leitura de todas as obras do pensador é uma necessidade para os que se interessam por qualquer desses temas. Como nosso espaço não permitiria analisar em detalhe o discurso sobre a desigualdade ou a biografia do gênio, limitamo-nos ao Emílio, sua obra mais completa e também mais religiosa. Isto nos permitirá vislumbrar um pouco do que foi o homem, para que possamos compará-lo ao espírito comunicante do Livro dos Médiuns e da Revista Espírita.
         No aspecto moral, identificamos facilmente a admiração pela índole socrática, com equilíbrio entre epicurismo e estoicismo, e uma relativa predominância do espiritualismo platônico. Em meio a esta mediação, o que se observa no resultado final é uma teoria sóbria, simples e que soa muito forte aos ouvidos de todas as pessoas, independente de sua orientação ideológica. Os conceitos de moderação e prudência, da Antiguidade, parecem finalmente revividos como que trazidos à tona por uma alma daquela época gloriosa:
De onde vem a fraqueza do homem? Da desigualdade que se encontra entre sua força e seus desejos. São nossas as paixões que nos tornam fracos, pois fora preciso, para contentá-las, mais forças do que nos dá a natureza. Diminuí pois os desejos; será como se aumentásseis as forças: quem pode mais do que deseja, as tem, de resto; é certamente um ser muito forte.[1]
           
Indo um pouco mais fundo, o pensador identifica no amor próprio a origem primeira da vontade. É pelo divino instinto de conservação e autoestima que o homem busca o prazer, o poder e mesmo a felicidade. Mas este mesmo instinto, virtuoso por natureza, pode corromper-se, hipertrofiar-se em egoísmo, e nisto está inteiramente certo nosso sábio genebrino. A neutralidade natural se converte em malícia. Conforme um fragmento do Emílio:
A fonte das paixões, a origem e o princípio de todas as outras, a única que nasce com o homem e não o deixa nunca durante sua vida, é o amor a si mesmo; paixão primitiva, inata, anterior a qualquer outra e da qual todas as outras não são, em certo sentido, senão modificações. Assim, se quisermos, todas são naturais. Mas essas modificações em sua maioria têm causas estranhas sem as quais não ocorreriam nunca; e essas modificações, longe de nos serem vantajosas, nos são nocivas; mudam o primeiro objeto e vão contra o seu princípio.[2]
           
A parte em que a psicologia de Rousseau desliza é quando ele tenta propor uma solução para a corrupção humana. Responsabilizando exclusivamente a civilização, ao invés do próprio homem, ele acredita que o combate aos vícios consiste apenas em reformas sociais, exteriores ao problema. Afastados os vícios, em melhor ambiente, o homem automaticamente manifestaria todas as virtudes, que lhe são naturais. O esforço e o mérito da ascensão são reduzidos ao se deslocar para fora a causa do mal, e muitas das utopias sociais que se seguiram estavam baseadas na expectativa e crença nessa simplória solução. 
         Novamente, o que perdoa nosso revoltado filósofo é o fato de que ele vivia exatamente numa sociedade em que a injustiça parecia triunfante, o poder desmedido e cruel, a sociedade dividida em privilegiados e espoliados. Esta indignação fica evidente em certas passagens muito semelhantes a algumas das que figuram no Evangelho segundo o Espiritismo:
Os homens não são naturalmente nem reis, nem grandes, nem cortesãos, nem ricos; todos nascem nus e pobres, todos sujeitos às misérias da vida, às tristezas, aos males, às necessidades, as dores de toda espécie.[3]
        
Mas logo a seguir, no mesmo capítulo, ele modera o discurso e defende a tolerância e a compaixão para com os maus, assemelhando-se muito mais ao discurso social-liberal do que ao revolucionário, mais ao Cristianismo do que ao socialismo:
São nossas paixões que nos irritam contra as dos outros; é nosso interesse que nos faz odiar os maus; se não nos fizessem nenhum mal, teríamos por eles mais piedade que ódio. O mal que nos fazem os maus leva-nos a esquecermos o que fazem a si mesmos. Perdoaríamos mais facilmente seus vícios, se pudéssemos conhecer quanto seu coração os pune. Sentimos a ofensa e não vemos o castigo; as vantagens são aparentes, o tormento interior... As paixões que partilhamos nos seduzem; as que chocam nossos interesses nos revoltam, e, por uma inconsequência que nos vem delas, censuramos nos outros o que desejaríamos imitar.[4]

         Como compreender semelhante teoria, que ao passo que nos desperta a sede de justiça, nos admoesta a não odiar o injusto? Como compreender um pensador político e moral que serve de inspiração ao liberalismo e ao socialismo, a doutrina da tolerância e a da justiça, quando todos os pensadores políticos os compreendem como realidades opostas e irreconciliáveis? A resposta, segundo nossa própria compreensão, está em ser o nosso respeitável autor uma contradição para o mundo, escândalo para os doutos e prudentes, louco de pedra para a razão terrena. Sua sabedoria é divina, sua teoria política é cristã, absurdidade para todos os ideólogos; inclusive para ele mesmo. Solidariedade para com o pobre, compreensão para com o rico; sede de justiça, e com urgência, mas não por ódio, e sim por amor ao gênero humano. Nem uma classe, nem outra, mas uma fraternidade humana em que o rico, ao invés de eliminado e perseguido, conscientize-se de seus vícios e abandone os abusos a que se permitia, em que o pobre, ao invés de violento, se movimente rumo a justiça que lhe é negada ao invés de contra o injusto.
         Se Rousseau cometeu inúmeros erros de conceito e contradições, ele deixa ao menos transparecer essa superioridade da intenção, que só não se revela ao mais cego e mais fanatizado leitor.
         Esta perspectiva diferenciada tem tudo a ver com a epistemologia exótica de Rousseau. Mais do que cética, ela é socrática, em um sentido que só foi ressuscitado graças a Descartes, Pascal, Fénelon e Voltaire, os mestres da sobriedade intelectual da Era Moderna, responsáveis por toda a luz de Paris. Assim diz Rousseau pela boca do vigário de Saboia:
Consultei os filósofos, folheei seus livros, examinei suas diversas opiniões; achei-os todos orgulhosos, afirmativos, dogmáticos, mesmo em seu pretenso ceticismo, nada ignorando, nada provando, zombando uns dos outros; e este ponto comum a todos se me afigurou o único em que todos têm razão. Triunfantes quando atacam, carecem de vigor quando se defendem... Pequena parte de um grande todo cujos limites nos escapam, e que seu autor entrega a nossas loucas disputas, somos bastante vãos para querermos decidir o que seja esse todo em si mesmo e o que somos em relação a ele.[5]  

         Esta decepção e desânimo com a razão não se refletem em irracionalismo, ou em cinismo, apesar de ambos estarem muito próximos. O que de fato acontece é que o sentimento, para Rousseau, é forte o bastante para arrancar o homem da incerteza, e conduzi-lo por onde não pode o entendimento. É assim que a continuação do argumento do vigário é mais esperançosa:
Sei somente que a verdade está nas coisas e não em meu espírito que as julga, e quanto menos ponho de mim nos julgamentos mais certo estou de aproximar-me da verdade: assim, a regra de entregar-me ao sentimento mais do que à razão é confirmada pela razão.[6]

         Ao chegar propriamente a sua filosofia da religião, Rousseau associa sua sobriedade e ceticismo filosóficos à humildade tipicamente cristã diante dos mistérios da criação. Numa linha agostiniana ele começa:
Percebo Deus por toda parte em suas obras; sinto-o em mim, vejo-o ao redor de mim; mas logo que quero contemplá-lo, logo que quero procurar onde se acha, o que é, qual sua substância, ele me escapa e meu espírito perturbado não percebe mais nada.[7]

         Não poderia ser um trecho das Confissões de Agostinho? Este tipo de meditação se tornou, afortunadamente, muito comum na França entre os séculos XVII e XIX, quando ela era para todos os efeitos a verdadeira herdeira dos apóstolos.
Nosso Grand Finale não poderia ser outro que a defesa da liberdade:
Nenhum ser material é ativo por si mesmo, e eu o sou... minha vontade é independente de meus sentidos; consinto ou resisto, sucumbo ou sou vencedor e sinto perfeitamente em mim mesmo quando faço o que quis fazer ou quando não faço senão ceder a minhas paixões. Tenho sempre o poder de querer, não a força de executar... o sentimento da minha liberdade só se apaga em mim quando me depravo e impeço enfim a voz da alma de erguer-se contra a lei do corpo... Quando me perguntam qual é a causa que determina minha vontade, eu me pergunta qual é a causa que determina meu julgamento: porque é claro que essas duas causas não são senão uma; e se se compreende bem que o homem é ativo em seus julgamentos, que seu entendimento não é senão o poder de comparar e julgar, vê-se que seu orgulho é apenas um poder semelhante ou derivado daquele; escolho o bom como julgou o verdadeiro, se julga errado, escolhe o mal. Qual é a causa que determina a vontade? Sua faculdade inteligente, seu poder de julgar; a causa determinante está em si mesmo.[8]
        
Esta apologia do juízo pode ter muito a ver com a educação protestante de Rousseau. Num curto comentário de suas confissões ele expõe com sarcasmo a sua estranheza diante da religião católica, a qual só conheceu após abandonar a pátria em busca de aventura: “Naturalmente os protestantes tendem a ser mais instruídos que os católicos. A doutrina dos primeiros exige discussão, a dos segundos submissão.“ 
         Em resumo, Rousseau parece ter englobado todas as questões e atividades de sua época. Além de pensador político destacado, literato virtuoso, poeta, cientista natural com imenso impacto sobre os estudos botânicos, era um profundo cristão, talvez não exemplar, mas envolvido com a própria transformação a ponto de experimentar as fortes angústias do conflito interior que caracteriza todas as almas em busca de regeneração.
      Como espírito, parece ter participado secundariamente da Codificação do Espiritismo. Seu papel é duplamente o de apresentar sua opinião, enquanto filósofo, e, com isso, reforçar a autoridade do Espiritismo através de seu “aval”, enquanto celebridade intelectual. A sua dissertação em O Livro dos Médiuns contém, além de referências também importantes para a interpretação de sua obra, uma pequena confissão quanto à reencarnação:
Penso que o Espiritismo é um estudo todo filosófico das causas secretas, dos movimentos interiores da alma, pouco ou nada definidos até aqui. Explica, mais ainda do que descobre, horizontes novos. A reencarnação e as provas sofridas antes de chegar ao objetivo supremo não são revelações, mas uma confirmação importante. Estou tocado pelas verdades que este meio coloca às claras. Disse meio com intenção, porque, ao meu pensar, o Espiritismo é uma alavanca que afasta as barreiras da cegueira. A preocupação pelas questões morais está inteiramente para ser criada; discute-se a política que examina os interesses gerais; discutem-se os interesses privados, apaixona-se pelo ataque ou a defesa das personalidades; os sistemas têm seus partidários e seus detratores; mas as verdades morais, as que são o pão da alma, o pão da vida, são deixadas na poeira acumulada pelos séculos. Todos os aperfeiçoamentos são úteis aos olhos da multidão, salvo o da alma; sua educação, sua elevação são quimeras aptas pelo menos para ocuparem o ócio dos padres, dos poetas, das mulheres, seja na condição de moda, seja na condição de ensino.
Se o Espiritismo ressuscita o Espiritualismo, dará à sociedade o impulso que dá a uns a dignidade interior, a outros a resignação, a todos a necessidade de se elevarem até o Ser supremo esquecido e desconhecido pelas suas ingratas criaturas.[9] (Capítulo XXXI, Dissertações espíritas.)

         Aqui está Rousseau inteiro: sua religião empolgada e empolgante, livre de dogmas e interiorizada, a indignação com o estado da humanidade, e uma evocação ao seu poder inato de renovação, e, finalmente, todos os esforços voltados para a investigação das sutilezas do mecanismo moral, em seus aspectos psicológicos e metafísicos. O comentário sobre a reencarnação dá o que pensar. Teria ele nutrido crenças e intuições sobre ela, ou apenas fazia alusão à popularidade do tema em meio aos sábios em geral?
         No ano de 1861 ele apresentou uma dissertação mediúnica sobre o estado da literatura no ano anterior, lastimando a degeneração da alta cultura na França, apesar dos avanços na pintura e nas ciências. O filósofo considera que este empobrecimento das obras filosóficas e literárias se deve, sobretudo, ao despreparo dos jovens franceses.
         É de lamentar que Rousseau não tenha se comunicado mais, especialmente no que se refere às suas teorias políticas. Isso poderia ter ajudado muito a esclarecer os espíritas quanto ao seu papel de cidadãos e atores políticos, mas, naturalmente, a proposta das comunicações feitas a Kardec tinha objetivos específicos e já extensos demais.
         Fica em nós o desejo de ver este espírito publicar, através da mediunidade ou encarnado, novos de seus brilhantes tratados.

Bibliografia:

ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio, ou da Educação. São Paulo: Difel, 1979.


[1] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 171.
[2] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 232.
[3] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 246.
[4] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 272.
[5] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 302.
[6] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 305.
[7] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 313.
[8] Jean J. ROUSSEAU. Emílio, ou da Educação. Pg. 317-318.
[9] Allan KARDEC. O Livro dos Médiuns. Pg. 419.

2 comentários:

  1. Obrigada pela pesquisa....

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  2. Não encontro nele razão suficiente (muito ao contrário) para ser inserido na codificação espírita. Há, certamente, muitos espíritos mais esclarecidos em exemplo e dignidade pessoais.

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