segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A essência do Judaísmo

O filósofo alemão Georg Friedrich Hegel definiu a essência do Judaísmo como a consciência da separação entre o homem e a sua origem. Na figuração personalista do deus de Israel, o homem encontra-se “face a face” com um antagonista, ou “outro” com quem tem uma relação de temor e louvor. A consciência do judaísmo seria, para este filósofo, uma etapa muito avançada da descoberta espiritual humana, pois, em comparação com outros povos, os hebreus teriam a vantagem de reconhecer o drama da diferença. Mesmo as civilizações mais avançadas, a exemplo dos gregos, não teriam no entender de Hegel uma consciência clara da diferença. Os distantes deuses olimpianos ou as deidades indianas, ligadas também a distintos elementos da natureza, falhariam em criar este sentimento concreto de distancia e separação tão claro no Velho Testamento.
Ao contrário dos panteões politeístas, onde os deuses não conseguem ocultar seu mistério, já que estão diretamente ligados a coisas ou atividades distintas, o Deus Supremo de Israel é o inteiramente “outro”, grande e incompreensível demais para a mente humana. Seus atributos são efetivamente espirituais, e não se resumem a patrocinar esta ou aquela profissão, fenômeno natural ou emoção; eles transcendem o mundo, e o homem está no mundo; os deuses do panteão também.
         A essência do Cristianismo, ainda segundo Hegel, só poderia ter nascido das entranhas do Judaísmo. Isto porque o Cristianismo tem como missão reunificar o que estava distinto, unir o separado, e nas religiões onde não havia drama e conflito entre Deus e os homens não havia também sentido em uma reunião. Não diminuindo os méritos das outras religiões, o judaico-cristianismo tem uma poderosa vantagem filosófica, aclarando a diferença intrínseca da subjetividade em relação ao divino, e reconciliando-os.
         Até onde está certo o filósofo? Difícil dizer. Mas devemos nos inteirar da essência do Judaísmo, seja ela qual for, se quisermos compreender o Cristianismo.
         O Judaísmo é definitivamente a religião do deus que se revela ao mundo; não conheceu em suas origens a especulação. E um deus que se revela o faz sempre por um motivo ético, ou seja, mostra-se para influenciar de alguma forma o comportamento daqueles a quem se revelou. Cientes de que o seu deus não se havia revelado apenas para ser conhecido, os hebreus guardaram firmemente as noções de promessa e destino. O Senhor falou aos homens, não para dizer eis-me aqui, mas para enviar-lhes mandamentos, promessas e consolação. Em resumo, Ele mostrou-se para mudar o mundo, não para notificá-lo de Sua presença.
      Todas estas idéias estão entre os fundamentos pétreos do judaísmo. Os mandamentos: aquilo que o deus espera de nós; as promessas: aquilo com que o deus garante recompensar os que cumprem seus mandamentos e se mantêm fiéis a ele; e a consolação: a aliança que deus faz com o seu povo, de estar sempre presente com ele.
         Mas o Velho Testamento inclui muito mais do que a revelação de Deus. Poder-se-ia dizer até que ele é minimamente dedicado à narrar a revelação, e majoritariamente voltado para outros assuntos. Cada um destes assuntos segue seus próprios critérios, lógica e interesses, e os críticos ou defensores da Bíblia cometem verdadeiras barbaridades ao tentarem fazer dela um texto uniforme e coerente.   
Entre as funções dos distintos livros que compõem o Velho Testamento estão: 1- O resumo de toda a cultura de todo um povo. 2- História, não apenas dos judeus, mas de povos vizinhos; 3- Leis; 4- Sabedoria (o mais próximo de uma filosofia judaica); 5-Poesia (Salmos e cânticos); 6- Profecias.
Pois bem, profecias seriam as revelações do deus de Israel aos seus eleitos, versando sobre assuntos propriamente religiosos, como mandamentos, promessas e consolações, ou assuntos de utilidade pessoal e comunitária. Todos os outros cinco elementos são de origem humana, e não é preciso muita argumentação para provar isso. Que os registros históricos estejam apenas secundariamente ligados a revelação divina é uma evidência de princípios. Não obstante, tanto judeus quanto cristãos de diversas denominações incluem elementos da história, leis sociais e costumes descritos pelas escrituras sob a égide da teologia, prestando com isto um terrível desserviço a esta.  
A maior parte dos ataques à Bíblia, todos sabem, objetiva suas narrativas mitológicas, registros históricos imprecisos e leis sociais correspondentes a uma vida pastoril muito primitiva. Embora estes aspectos não tenham nenhuma relação direta com a revelação profética, o fato de a religião oficial estabelecer um vínculo entre as diferentes funções das escrituras gera uma dificuldade tremenda no julgamento por parte de pessoas não especializadas quanto à validade e os critérios de verdade do Velho Testamento. Ainda pior, a forma irresponsável de homogeneizar o Velho e o Novo Testamento como um texto único acaba por denegrir o último, também desmerecido em função dos problemas do primeiro.
         É, portanto, obrigatória uma leitura teológica, histórica e filosoficamente crítica da Bíblia, sem o que a compreensão dos detalhes se torna impossível, e o conjunto, erroneamente indiscernível, se torna obscuro e irracional.
         Para começar, a história concreta do povo de Israel só começa a ser cientificamente comprovável a partir de Moisés (+ou – 1300 a.C.). É difícil saber qualquer coisa sobre o período anterior ao do cativeiro no Egito. Só podemos acreditar que o relato é mais ou menos próximo da realidade, e as histórias de Abraão, Isaac e Jacó foram bem preservadas oralmente. Até Moisés, as mensagens transmitidas aos patriarcas não eram muito distintas das que os religiosos caldeus, gregos e egípcios recebiam. Os anjos eram bem conhecidos dos babilônicos antes dos judeus, e os egípcios eram os únicos a acreditar num Deus único.
Os judeus não eram monoteístas, o que é muito óbvio na leitura do Velho Testamento, inclusive até a época de Elias. Eles tinham na melhor das hipóteses um deus único para o povo hebreu, que se destacava em poder e qualidade em relação aos demais deuses, constantemente demonizados, e cada povo possuía como seu protetor um desses outros deuses. Foi, provavelmente, no Egito que Moisés, ou um grupo de patriarcas judeus, aprendeu a idéia do Deus único (agora sim com “D” maiúsculo), criador do mundo, lição que levou alguns séculos para formar raízes na cultura. Assim, Moisés pôde desenvolver uma história coerente que inclui a gênese do mundo por Deus e as origens do povo judeu.
Naturalmente, a mitologia desenvolvida no Gênese tem o seu grande valor simbólico, como também as mitologias de outros povos, e nos permite não apenas olhar para uma visão de mundo primitiva da criação e funcionamento do cosmos, como também e principalmente extrair informações valiosas sobre a filosofia, as revelações e as intuições dos primeiros profetas judeus.  
Também é Moisés que recebe de Deus para criar leis e regras para o seu povo. Ele estabelece algumas sob inspiração divina (mandamentos) e se esforça para criar outras conforme seu juízo e capacidade. Depois de Moisés, os heróis e profetas de Israel passaram a transmitir informações orais, novamente, com exceção dos Salmos, que eram escritos como poemas de louvor.
Quando Davi se torna rei de Israel, Deus revela-se a ele com a disposição para uma nova aliança com os hebreus. A mensagem diz que chegou o tempo de os judeus viverem em cidades, não mais vagando pelo deserto. Assim exige-se a construção de grandes templos para as atividades religiosas, em torno dos quais devem fixar-se para sempre as tribos.
Repetimos, até aqui poucos desses relatos eram escritos. Havia algumas leis, partes do Pentateuco e salmos em papiro, mas a tradição e histórias mais importantes continuaram a ser transmitidas oralmente, até que a primeira versão da escrituras foram compiladas durante o exílio na Babilônia, em torno de 515 a.C.  Desde então acrescentaram-se ainda livros diversos, como Jeremias e Isaías.
Voltando à essência da religião judaica, sua linha mestra é a manifestação de Deus aos seus escolhidos, os mais fiéis entre os fiéis. Ele garante a descendência de Abraão; salva Noé e sua família; conduz Moisés pelo deserto; alça Davi do pasto ao trono, é a segurança dos profetas; mas a nenhum deles Deus garante a sua bênção gratuitamente, de modo que a necessidade do mérito é cristalina em todas as passagens. 
Escolhidos pela virtude, os missionários permanecem sob o amparo divino enquanto se mantêm na virtude. Não encontram facilidades mundanas, mas amargam vidas ásperas onde fome, miséria, doença e perdas de entes queridos são uma constante (chegando ao extremo com o exemplo do livro de Jó). Não há enganos e falsas promessas ao eleitos do Senhor; seus méritos são espirituais, e assim também sua recompensa; ouvem a voz dos céus, recebem visitas dos anjos, têm sonhos premonitórios, manifestam sinais diante da multidão, mas tudo isto é pela obra, e os judeus mais antigos estavam plenamente cientes disso, na medida em que não glorificam os profetas e patriarcas pelos seus milagres, mas Deus que os elevou e glorificou.
De todas as figuras simbólicas da Bíblia a mais primitiva e uma das mais diretas é a de Sansão. O herói não era apenas forte; era invencível. Podia enfrentar um exército. E a sua incomparável força lhe era garantida pela fidelidade ao contrato que tinha com Deus: um acordo simples de uma única regra.
 O intérprete das escrituras não se deve deixar enganar pelo aspecto infantil da narrativa. O essencial na questão não é o comprimento dos cabelos, e sim o próprio contrato, a promessa. Sua lição moral é a de honrar a palavra empenhada e dignificar a expectativa de Deus em relação aos poderes que lhe foram concedidos. Todo o fiel deve enxergar-se como um Sansão; deve espelhar-se nos patriarcas e profetas, e seguir à risca os mandamentos, que são a forma pública do contrato com os céus.
Nosso esclarecimento científico e a crítica filosófica da modernidade nos fizeram desprezar os simbolismos bíblicos, mas semelhantes ataques só ferem o sentido literal do Velho Testamento. É claro que no sentido fundamentalista dos criacionistas e das massas ingênuas que ainda acreditam nas fábulas do Gênese, da arca, de Jonas na barriga da Baleia, a Bíblia contradiz frontalmente a razão e tudo o que descobrimos sobre o mundo. No seu simbolismo moral, que encerra o seu real propósito, ela continuará sempre atual e rica de significado.
Na simplicidade das imagens bíblicas está o homem colocado diante de seu Criador, com a opção de cumprir as regras que Este transmite ao mundo, de acordo com a compreensão da época e de cada indivíduo. A fidelidade humilde e o zelo sincero são as palmas da vitória quanto a tudo o que se refere ao elemento religioso da vida. E aqueles que souberem manifestar essas virtudes nas pequenas coisas estarão preparados para as grandes missões e provações.

5 comentários:

  1. Eu pesquiso em Filosofia e teologia academica ha 10 anos e relamente é dificil encontrar alguem que entende do que fala, como percebo em seu texto.
    Sou cristao reformado Nao-Fundamentalista, e me considero existencialista apreciador de kierkegaard, portanto a metafisica é dispensada das decisoes do homem concreto do aqui-agora.

    E no compromisso frente as dores da realidade que se fazem nossas decisoes, onde as "teorias" metafisicas pouca relevancia tem.

    Mas admirei seu conhecimento, equilibrio e franqueza, seria uma pessoa que teria prazer em conversar. Pois outros religiosos sejam espiritas ou nao , apenas sabem dialogar no dominio de suas idéias.

    marcelo_fisioyes@hotmail.com

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  2. Caro amigo,
    agradeço a lisonja.
    Acredito que em religião só há duas posturas possíveis: venerar todas de todo o coração, ou não ter nenhuma que seja sincera.

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  3. Amigo, confesso que seu texto é uma interessante análise do antigo testamento conforme a tradição cristã.

    Entretanto acho problemático dizer que está tratando da essência do judaísmo, mas analisá-lo apenas pela perspectiva distorcida que o cristianismo trouxe dele.

    Conversando com judeus de verdade tive a oportunidade de conhecer que o judaísmo é muito mais profundo do que imaginamos, e muito mais próximo do espiritismo do que o cristianismo.

    Veja que sua análise se baseou (pelo menos é o que deu a parecer) apenas no Tanach (tradição escrita, cujo conteúdo é próximo ao do Antigo Testamento cristão, mas não igual) e não leva em consideração o Talmud (tradição oral que não é levada em conta pelo cristianismo) e é preciso perceber que o AT, mais ou menos equivalente ao Tanach é o texto cru, cheio de simbolismos, mas é no Talmud onde o texto é interpretado e a verdadeira visão judaica é construída.

    Um exemplo que poucos conhecem é que os judeus acreditam em reencarnação. Está no Talmud.
    A própria visão de mundo é muito mais rica e um judeu estudioso tem muito a ensinar para um espírita, e para Hegel, que infelizmente deve ter conhecido o judaísmo apenas na forma distorcida como o cristianismo o apresenta.

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  4. Rafael,
    a análise de Hegel, ou a minha, não pretende esgotar a complexidade do judaísmo, apenas discernir o seu ponto de originalidade. Estou bem ciente de que o judaísmo possui outras importantes contribuições, como destacou, por exemplo, Severino Celestino em seu livro "analisando as traduções bíblicas", onde ele destaca entre outros os trechos referentes à reencarnação.
    Este e outros conceitos, no entanto, não constituem a essência do judaísmo, aquilo que ele traz de novo, diferente e peculiar.

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  5. Muito bom este texto, bem acessível a leigos como eu.
    E concordo com o comentário do Rafael de que o judaísmo tem um pouco mais a ver com o espiritismo do que com o cristianismo, que tentou diminuir os méritos da fé original do Profeta Yeshua.

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