segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O espiritualismo de Aristóteles


 
Após o nosso texto sobre Platão, permaneceu no ar uma exigência de fazer justiça a Aristóteles. Afinal, aquele outro texto inspirado em Popper e em renomados platonistas contemporâneos coloca o discípulo principal da Academia sob pesadas acusações, que podem ofuscar a importância ímpar de Aristóteles no desenvolvimento do pensamento humano, da religião Cristã, do realismo ético, da lógica, da estética, de diversas ciências... Aristóteles é também combatido devido à incompreensão que se tem sobre seu conceito de ciência, especialmente no tocante a física e a astronomia. Seus avanços e contribuições preciosas são sistematicamente ignorados em favor da paródia infantilizada de uma ascensão apoteótica das ciências durante a Renascença, como se as contribuições de Hiparco, Euclides, Arquimedes, Hipácia, Anaxágoras, Aristóteles, Galeno e outros pesquisadores antigos fossem maculadas por falhas capitais que apagassem todos os seus méritos.
   É bem verdade que Aristóteles seja mais dogmático do que Platão, mas ele não o é num sentido do dogmatismo religioso, por exemplo, nem pode ser considerado mais dogmático do que a maioria dos demais filósofos. O seu é um dogmatismo racional, o que quer dizer que ele acreditava no poder da razão para resolver todas as questões, e isso não significa a adoção de máximas e crenças transmitidas por autoridade, como no dogmatismo que as igrejas costumam propagar. Além disso, é possível que Aristóteles seja um dos indivíduos que mais contribuiu em favor das ciências em todos os tempos, ao lado de Galileu, Newton, Pasteur, Darwin ou Einstein, e em relação a maioria destes tampouco ele poderia ser considerado um dogmático.
 Se cientistas acreditam firmemente no poder da matemática e da lógica, na invariabilidade e objetividade da observação, eles são, ao menos nisso, herdeiros de Aristóteles. Claro, Aristóteles não possuía um método científico tão rigoroso, ou estava aberto a competição com outras teorias, mas as suas observações criteriosas e a sua lógica impecável propiciaram tanto avanços no conhecimento quanto na doutrina do método.
   Muito do que nos soa anti-científico não passa de propaganda da ideologia materialista, aquela que o vulgo associa à ciência, e que condena impiedosamente hipóteses espiritualistas como a necessidade de um arquiteto inteligente para o cosmo e a existência de uma força vivente dirigindo a vida para o desenvolvimento de suas formas. São hipóteses explicativas para problemas legítimos que Aristóteles encontrou na natureza, e que desde o século XIX passaram a ser descartadas “por questão de princípio”. 
    Aristóteles é incompreensível sem um amplo e minucioso estudo da filosofia e da história da Academia de Platão. Disso depende o acerto de contas com as discrepâncias e injustiças cometidas contra Aristóteles, dentre as quais a maior delas é a suposta “separação” ou “briga” entre ele e o mestre, o que jamais ocorreu ou se justifica. Os mitos quanto ao confronto derivam quase todos dos comentários do Aristóteles maduro sobre o mestre, décadas depois da morte deste, e que se baseiam nas distinções naturais que o caminho próprio de Aristóteles necessitava enfatizar. Esse desenvolvimento pessoal e independente da filosofia, coisa que Platão sempre incentivou e esperou de seus discípulos, corresponde integralmente ao distanciamento que o próprio fundador da Academia teve para com seu ídolo e mestre da juventude. O quadro do distanciamento entre Aristóteles e Platão, portanto, se assemelha ao que separa Platão de Sócrates, com uma semelhança impressionante de características.
    Em primeiro lugar, o Platão poético da juventude, com seus diálogos realmente combativos, metáforas, simbolismos e estreita vinculação entre a estética e a epistemologia, quase correspondendo nele o arrebatamento estético ao acesso intelectual à verdade, já era tido como fase terminada e superada na época em que Aristóteles ingressava na Academia. 
  O ambiente liberal do mestre, seu amadurecimento e o próprio contato com outros alunos e professores haviam transformado o ensino platônico. O cavaleiro solitário do Fédon, da Apologia, do Banquete e do Górgias, que vingava intelectualmente a morte de Sócrates e buscava preservar o seu legado, era agora o filósofo mais bem estabelecido e sucedido do mundo, sem necessidade nem do caráter combativo nem da nostalgia de uma época áurea de suas conversações com o mestre. Ele próprio era agora o mestre para o qual discípulos de todas as partes do mundo viajavam na esperança de obter sabedoria e virtude. Ele era então a figura de quem se esperava as respostas, e não um jovem modesto cantando as proezas de seu mentor. 
  A essas diferenças de postura somam-se as profundas experiências da Academia e de suas viagens. Dotado de inigualável lucidez, Platão não demorou a absorver as críticas que lhe eram dirigidas e adaptar seu método a elas. Alunos brilhantes de todas as partes, entre eles muitos matemáticos, ajudaram a expandir o seu saber sempre aberto à inovação e mudança. Ao mesmo tempo, as exigências que ele mesmo e o seu papel de referencial universal da filosofia lhe impunham tornaram-no muito mais cuidadoso, técnico e afirmativo nos seus pronunciamentos.
    Por essa época chegava a Academia o jovem Aristóteles, enquanto ela iniciava uma nova fase com a escrita do Teeteto, um diálogo já mais voltado para investigação analítica do que para a busca de consensos gerais. O caráter cético e jovial do jovem Platão era abertamente ironizado e criticado na Academia, talvez por ele mesmo, de modo que o estilo lógico e a minúcia da análise de categorias que tanto influenciou Aristóteles não está em contradição com o que ele então via na Academia. O mestre, inclusive, desaprovava os trabalhos dos alunos que copiavam pedantemente o seu estilo e doutrina, fomentando justamente as inovações, as particularidades e a originalidade de cada aluno. 
 ristóteles foi desde cedo um dos que mais correspondeu a essa expectativa do mestre, confrontando-o com competência e forçando sempre os limites de sua filosofia. Essa postura não foi o que os separou, mas pode-se até imaginar, foi a causa da admiração do mestre desde o princípio.
 Platão chegava de suas viagens com novos problemas sobre física, medicina e antropologia para os quais ele mesmo não tinha tempo ou interesse em trabalhar, mas que transmitia aos seus alunos, muitos dos quais se ocupavam dessas disciplinas já antes de ingressarem no colégio. Não foi de modo algum Aristóteles quem criou as novas disciplinas, ou que combateu o diálogo platônico, ele apenas continuou uma ruptura e desenvolvimento que correspondiam à prática da comunidade da Academia, e que era diretamente patrocinado pelo mestre.
 O sistema de Platão permaneceu coerente e harmônico, mas havia crescido tanto para além dos diálogos da juventude, eram tão distantes as suas fronteiras daquelas mais estreitas e monótonas do passado, que a suposta revolução de Aristóteles não foi mais do que um passo para além dessas fronteiras já muito largas. Distante do jovem Platão, estava ele ainda bem próximo do velho.
O primeiro dos escritos aristotélicos é um diálogo que lembra muito o Fédon, o Eudemo. Nesse livro expõe o estagirita com proeza uma crítica aos materialistas e a doutrina de que a alma seria apenas uma harmonia de funcionamento do corpo físico. Aristóteles defende tão convictamente a imortalidade da alma quanto o mestre em seu escrito original. (JAEGER 1923, p.38) Aristóteles começa lembrando que a harmonia é um conceito dependente de um oposto, a desarmonia, e que alma não possui um conceito oposto como uma não-alma. Enquanto a desarmonia é claramente identificada num conjunto, um oposto para a alma não existe nem na experiência nem no pensamento. Não havendo para ela um pólo oposto, não pode ser submetido ao conceito de harmonia, ou outro predicado qualquer que possuam um estado contrário, só podendo então ser uma substância. Se a alma é uma substância, não pode ser dependente do corpo, que é uma outra substância, desta vez material, provando-se assim a imortalidade da alma.
O argumento tem ainda validade, e mesmo restringindo a alma ao conceito de mente, não se escapa das implicações de que ela deve ser uma substância, pois o oposto de uma substância é sempre o nada. Uma não mente, ou não espírito, só são pensáveis como ausência de suas funções e qualidades, e tudo aquilo de cujo oposto só podemos pensar a ausência é por princípio uma substância.
O materialismo, geralmente, tenta passar por cima dessa conclusão lógica reafirmando que a alma é sim uma harmonia entre propriedades fisiológicas, o que, no entanto, só poderia ser assumido como verdade se para isso houvesse uma prova conclusiva. Na dúvida, a hipótese mais lógica é a de que a alma seja uma substância, pois a hipótese contrária apresenta o conflito de terminologia descoberto por Aristóteles.
Também se encontra no Eudemo uma defesa da personalidade da alma após a morte, baseada na memória, que é um atributo intelectivo da alma. A permanência da memória seria, então, o critério para que a personalidade sobrevivesse, em contradição com um princípio intelectual apenas, conforme defendido por muitos filósofos.  Não apenas nesse texto, mas ainda em outros defendeu Aristóteles a preexistência da alma antes da sua conexão com o corpo e a conseqüente possibilidade de reminiscência de conhecimentos anteriores ao nascimento. Em outro fragmento o filósofo afirma: “A alma penetra visionariamente o futuro ao libertar-se do corpo, durante o sono ou na proximidade da morte, e então percebe sua verdadeira natureza e é arrebatada pelo firmamento estrelado.” (Frag. 10 R)
O protréptikos é o outro texto destacado da fase platônica de Aristóteles, guardando enorme número de conceitos de sua filosofia posterior, como as noções de potencias e ato, desenvolvimento das formas, a função ética do conhecimento e a impossibilidade de se combater a filosofia. 
O primeiro argumento significativo é em favor da filosofia como única forma de legitimar a vida humana. Uma vida precisa de filosofia para afirmar qualquer escolha ou projeto existencial, e igualmente é preciso filosofar para combater a filosofia. Não se pode legitimar qualquer conclusão sem um desenvolvimento lógico e dialético, de modo que para qualquer posicionamento consciente e justificado é preciso filosofar. Aristóteles também especifica sua noção de substancia em relação ao platonismo. Enquanto este último tem a substância como a essência já dada das coisas, a sua origem ideal, Aristóteles acrescenta a ideia de evolução e desenvolvimento, télos, de modo que a essência das coisas só se revela na sua ação, não numa análise sobre elas.
 Um animal não se permite definir somente pela sua forma e atributos, como pensou Platão, mas principalmente pelo seu papel, pelo que ele faz. Um Leão é, desta forma, além de um animal quadrúpede, forte e feroz, um predador. Esta última característica é a única relacionada à sua ação, e a mais importante. Um homem não tem a sua essência medida pelos seus talentos, origem, aparência e disposições, mas pelo que ele realmente faz e realiza. Enquanto Platão definiria um homem como bom pela sua natureza, ideias e inclinações, Aristóteles diria que essa definição só pode ser dada ao final da vida, como observação dos atos desse homem. A essência não pode ser apreendida inteiramente no estado inicial, ela se revela no desdobramento da existência dos seres. A substância não é assim apenas a estrutura a partir da qual é feita uma coisa ou ser, mas a sua destinação, a essência não é o quê, mas para quê.
Pouco depois da morte de Platão, Aristóteles deixa a Academia e inicia um ciclo de viagens que vai culminar na Macedônia, onde ele inicia a educação do então não tão grande Alexandre. Nessa fase marca-se ainda mais a sua cisão com a escola platônica num ponto que é em quase todos os aspectos um avanço, a abjeção das Ideias. E o equívoco aqui é imaginar que esta esteja ligada ou acarrete numa negação da imortalidade da alma e de um mundo espiritual que lhes correspondesse. Os dois primeiros escritos confirmam que Aristóteles não cogitava em associar o “além” ao mundo das ideas. Este último seria somente uma abstração epistemológica e metafísica do platonismo, nada mais. Uma metáfora a qual Aristóteles continuou a recorrer para exemplificar a independência da teoria das coisas mundanas, mas sem atribuir qualquer existência às ideias como formas reais, existindo por si próprias num mundo ideal.
As essências das coisas, sua parte intelectiva, princípios organizadores, deveria estar estreitamente vinculada à própria coisa. Não haveria, portanto, ideia e leis num “lugar”, esperando para se unirem a matéria e formar coisas. As coisas já teriam em si leis e matéria como partes inseparáveis e constituintes. A matemática, por exemplo, não teria nenhuma realidade em si, existindo num mundo independente de figuras, fórmulas e grandezas, mas seria uma proporção das coisas, ou entre as coisas. Real e verdadeira, mas dependente deste mundo e desta realidade.
Novamente a difundida conclusão de que isso eliminaria a possibilidade de vida após a morte é errônea, pois o mundo dos mortos e as próprias almas não compõem uma “outra” realidade em contradição ou diferenciação com a nossa, mas seria parte da mesma realidade, apenas invisível para nós. As almas não seriam ideais, mas reais, daí a famosa conclusão de Aristóteles de que elas não teriam existência imaterial, já que tudo o que existe tem substância, matéria. A confusão com a terminologia de Aristóteles é produzida por uma interpretação platônica fraca, que associa o material ao mundano, e o ideal ao espiritual. 
Para Aristóteles toda a realidade é matéria intelectualizada, força organizada. Não há separação de mundos e realidades em oposição. O corpo é matéria e energia organizadas segundos certas leis, a alma é outra forma de matéria e energia organizada segundo outras leis.
A teologia platônica consistia em afirmar a supremacia absoluta do espiritual sobre o material. O mundo das ideias existiria, dessa forma, por antecipação e em completa independência. Seria imóvel e inalterável a estrutura das ideias. O mundo material seria uma cópia imperfeita e decadente, e a matéria um princípio grosseiro, sombrio e desprovido de qualquer qualidade positiva. Se a matéria possui organização e vida é porque uma força espiritual a habita, porque o reflexo das ideias lhe dá ser e qualidades positivas, como beleza, utilidade, equilíbrio ou justiça. Aristóteles, por outro lado, não apenas não vê as ideias separadas da matéria, como não admite um princípio vil e pernicioso no universo. Tudo tem sua razão de ser, e, portanto, o seu bem. O universo não é dividido em mundo das ideias e das coisas, com as primeiras sendo eternas e as segundas criadas, mas é inteiramente criado por Deus. Somente Deus estaria fora da cadeia de causa e efeito que tudo regula.
Assim desenvolveu Aristóteles a primeira e talvez ainda hoje a mais consistente teoria da criação. Ele percebeu que a definição de movimento é mecânica, transmissão de forca de um para outro objeto, uma cadeia de causalidade sem ator, apenas com elementos passivos. Essa definição revela-se insustentável quando buscamos a origem do movimento, e nos deparamos com uma série infinita de corpos movidos por outros, sem que nenhum seja o responsável final pelo início do movimento. Embora muitas pessoas ainda acreditem na hipótese do movimento eterno, ela conduz a um paradoxo, logicamente inaceitável como hipótese científica ou filosófica. 
Afirmar que o movimento é eterno ou negar o problema da sua origem nada resolve, pois a sua conceituação não permite qualquer outra definição além da de que é preciso um ator no início da cadeia. Explicar o movimento a partir da passividade é uma falácia assombrosamente popular, mas insistir nisso não a torna racional. A energia inicial precisa ser criada, não pode “estar sempre aí”, pois a transmissão mecânica é passiva, não tem uma existência fundamentada em si mesma, senão por definição uma existência derivada. Então. conclui Aristóteles, o movimento exige uma causa ativa, uma forca autônoma que não seja influenciada por outra, o que só prolongaria o problema da cadeia mecânica. Esse primeiro motor universal, que deu origem a todas as coisas, é a causa intencional de todos os movimentos do universo.
         Foi Aristóteles quem deu a Deus o papel de criador em termos filosóficos. Até então este papel só era atribuído de maneira mitológica a Deus, como no Gênese, e Platão não conseguiu justificar bem o papel de Deus no processo da natureza. É por isso que o filósofo peripatético afirma: “Deus é espírito, se não for algo ainda mais elevado que o espírito.” (Frag. 49 R) Fora da cadeia mecânica, passiva, ele é o intelecto que por sua vontade traz o mundo à existência.

Referências:

GILL, Mary Louise & LENNOX, James G. Self-Motion from Aristotle to Newton. New Jersey: Princeton University Press, 1994.
JAEGER, Werner. Aristoteles: Grundlegung einer Geschichte seiner Entwicklung. Berlin: Weidman, 1923.

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