A prova cabal da unidade
das religiões é o fato de elas compartilharem uma experiência em comum, a qual
é, propriamente falando, a experiência religiosa primária ou experiência mística.
Divergências
doutrinárias, éticas e rituais podem causar embaraço a uma compreensão unificada
da religiosidade humana, e mesmo os fenômenos sobrenaturais variam
infinitamente quanto aos tipos preferenciais de cada tradição e seu conteúdo,
quase sempre influenciado pela cultura. Católicos veem Maria, budistas veem
mandalas, xamãs veem animais de poder; e os papéis atribuídos a estas visões
dentro de cada doutrina são ainda mais díspares.
Experiências místicas,
contudo, parecem contradizer todos os nossos esforços de especificação e
definição das religiões enquanto exclusivas, e os que experimentam estados
místicos, notadamente os fundadores das religiões e alguns de seus principais
santos e reformadores, sempre estão mais de acordo entre si, de forma bastante
cosmopolita, do que com os adeptos de seu próprio círculo.
William James, como de
costume, parece estar certo em categorizar a experiência mística como dotada
de:
1- Inefabilidade: Se nos
faltar o coração ou o ouvido, não poderemos interpretar com justeza o músico
nem o amante, e seremos até capazes de considerá-los donos de espírito fraco.
Para o místico, quase todos conferimos às suas experiências um tratamento igualmente
incompetente. Os não experimentados na mística sequer se aproximam de
compreender de que ela se trata. Analogias são quase totalmente inúteis.
2-
Qualidade no noética: conquanto muito
semelhantes a estados de sentimento, os estados místicos parecem também para os
que os experimentam, estados de conhecimento, estados de visão interior
dirigida a profundezas da verdade não sondadas pelo intelecto discursivo. São
iluminações, revelações, cheias de significado e importância, por mais
inarticuladas que continuem sendo; e, via de regra, carregam consigo um senso
curioso de autoridade pelo tempo sucessivo.
3-
Transitoriedade: Ninguém sustenta um
estado místico por mais do que um momento. Este pode ser um átimo de segundo ou
algumas horas, mas após o seu término o místico mais experiente – aquele que
vivenciou o fenômeno inúmeras vezes – sente-se distanciado do estado místico e
sabe perfeitamente que dele guarda apenas uma vaga memória.
4- Passividade: se bem que a aproximação de
estados místicos seja facilitada por operações voluntárias preliminares, como
fixação da atenção... o místico tem a impressão de que a sua própria vontade
está adormecida e, às vezes, de que ele está sendo agarrado e seguro por uma
força superior. Esta última particularidade liga os estados místicos a certos
fenômenos definidos de personalidade secundários ou alternativos, tais como o
discurso profético, a escrita automática ou o transe mediúnico[1]
É precisamente o que
místicos têm relatado desde tempos imemoriais. Quando Krishna se mostra a Arjuna; quando um nirvana é descrito; quando Deus se revela a Moisés; quando Ibn Arabi
encontra Alá; quando Paulo encontra Jesus a caminho de Damasco; Plotino
encontra o Uno; Agostinho entende o chamado; quando o índio mergulha no Grande
Espírito e o taoísta vê a raiz do Tao; quando o yogi atinge o samadhi sem
semente ou um poeta vê a pulsação do cosmo, todos estão tentando apreender o
inapreensível. E por trás de suas metáforas enxergamos sempre e em todos os
lugares aquelas características habilmente capturadas por James.
Mais por nossa
necessidade do que por vontade própria, o místico nomeia Aquilo com que se
deparou no êxtase: O Supremo, Deus Todo Poderoso, o Bem, o Belo, o Uno, o
Hálito Divino, o Espírito Santo, a Natureza Búdica, o Reino, a Força, o Móvel dos
mundos, o Fogo, o Vazio, o Silêncio, o Nada... E tantos nomes – humanos que são
– somente arranham, quase conspurcam a verdadeira experiência do Absoluto. Por
esses nomes guerreiam as religiões, distanciadas dos mestres que detinham a
experiência original e que sabiam estar empregando metáforas pedagógicas,
termos simplórios de referência.
Excluídos os elementos
culturais, e fenômenos de clarividência ou outros que possam se associar a um
êxtase, podemos arriscar uma descrição genérica que perpasse todas as culturas
humanas.
Trata-se sempre de um
silêncio que tudo preenche; que nos provoca muitas vezes mais arrebatamento do
que o maior arrebatamento que a música nos pode proporcionar. Aquele silêncio
que vem depois de toda a compreensão, depois que tudo foi dito, como um momento
de satisfação tão perfeita que nada mais precisamos ouvir.
A visão idem. Nem a mais
vaga noção de espaço ou tempo, de objeto ou coisa, de finitude ou
particularidade. Maior do que grande, uma amplitude absoluta, uma luz perfeita
que tudo perpasse e que é tudo, e que é quase um nada para o intelecto, pois
ele não pode conceituar ou isolar elemento algum.
Não há mais tato, porque
não há mais corpo, mas um novo sentido intuitivo sente tudo.
A clareza mental é
ausente de mácula e não mais se aflige em devassar os particulares.
O coração finalmente
encontra repouso, está em casa, e é invadido por uma misericórdia, um
acolhimento e uma amizade que o transubstanciam em serenidade e fraternidade
universal.
Esta é a existência
verdadeira, de modo que a morte não é mais tema, e não precisa sequer ser
confrontada com argumentos.
Nenhuma religião pode se
basear apenas sobre estas revelações, já que multifária é a experiência humana;
psicológica, existencial, intelectual, cultural e paranormal. São incontáveis
outros fatores que colaboram com a construção do imaginário, da visão de mundo,
da sensibilidade e da moralidade, mas com esforço, tato e um bom estudo das
religiões é possível resgatar estes traços genéticos da experiência mística.
Nas palavras de Plotino,
o místico participa do intelecto divino e vê as coisas mais ou menos como Deus
as veria. Sua alma, que é cópia da Alma universal, imita o entendimento do Uno
sobre si mesmo.
“A vida do intelecto divino é também um ato: é a luz primordial
despejando luz, primeiro sobre si mesma, sua própria tocha: doadora de luz e
iluminada ao mesmo tempo; o autêntico objeto intelectual, ao mesmo tempo
conhecendo e conhecido, vendo por si e sem necessitar de outro para ser visto.
Autossuficiente para a visão, uma vez que aquilo que ele vê é ele mesmo.” ([V
3], 8. p. 390)
Ou
mais ao estilo de Espinosa, Deus ama a si mesmo, ou seja, tudo.
JAMES, William. As variedades da experiência religiosa. São Paulo: Cultrix, 1995.
PLOTINUS. The
Enneads. Traduzido por Stephen McKenna. London: Faber and Faber, 1930.
Estou muito impressionado com o diferencial que este blog representa no movimento espírita brasileiro. Não há como negar o alcance de suas observações, a pluralidade dos temas, a serenidade com que são apresentados, a erudição que demonstra, a justeza e a segurança de suas conclusões. Plotino, Rumi, Espinoza... Meu Deus! Finalmente o Espiritismo encarando com altivez a alta cultura, sem medo e nem falsa modéstia.
ResponderExcluirParabéns, meu amigo. A sua contribuição dignifica a nossa grande Doutrina. J.Carlos.