quinta-feira, 12 de julho de 2018

14º Encontro Nacional da Liga de Pesquisadores do Espiritismo

       Em 25 e 26 de Agosto a sede da União Espírita Mineira, Belo Horizonte, hospedará a
14º edição do maior encontro existente sobre pesquisa espírita e sobre o Espiritismo. A iniciativa, entre outros méritos, tenta reunir um leque amplo e diversificado de pesquisas que possam não apenas contribuir para uma maior visibilidade deste tipo de pesquisa como também estimular as comunidades acadêmicas interessadas nos fenômenos e/ou história do Espiritismo com novas e arrojadas propostas. 
      O encontro deste ano se dedicará à questão da imortalidade da alma. 
Segue o site do Enlihpe, que ainda aceita inscrições de participantes: 
http://www.lihpe.net/wordpress/?p=1732

E o programa: 
https://espiritismocomentado.blogspot.com/2018/06/14o-encontro-nacional-da-liga-de.html?spref=fb

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Por que não estou produzindo aqui no blog?

             Caros amigos, críticos, gente boa que me acompanha e dá força, muitos têm me perguntado porque abandonei a escrita no blog. Foram duas postagens em 2015, zero em 2014 e nada de 2016 até aqui. A princípio a vida me obrigou a desviar o foco para uma série de outras atividades. Sou pai de duas crianças pequenas, o que é uma carreira bastante intensa, e também me envolvi com cada vez mais questões acadêmicas. Hoje tenho trabalhos administrativos diversos, pesquisa, ensino, e gosto de investir o máximo possível de tempo presencial junto às pessoas com quem trabalho e estudo.
            O motivo principal, contudo, é que a escrita demanda um tipo muito específico de inspiração. Não tenho tido esse tipo particular de ânimo que um ensaio de blog requer. Provavelmente o excesso de trabalho impactou negativamente no tempo livre e mais contemplativo que eu sempre usei para os ensaios. Não quero fazer algo menos estimulante, sincero e íntimo que a média dos textos daqui, que considero bons nesses aspectos. Mas, mais provavelmente ainda, este trabalho foi feito com alguma colaboração, para algum propósito, que agora se distanciaram da fase da vida que estou vivendo.
            Não vejo, contudo, com lamento essa mudança de ares. O que foi realizado aqui permanecerá como retrato de um período muito sentimental, idealista e meditativo da minha vida. São estudos e reflexões que continuarão a servir a alguns, para alguma coisa. E já se vão lá sessenta mil acessos, o que não me permite olhar para este veículo como capítulo encerrado.
            É absolutamente fantástico receber e-mails, solicitações de amizade no facebook, ou encontrar pessoalmente alguém que se revela seguidor e admirador do blog. Alguns dos meus maiores amigos nos tempos recentes me conheceram aqui, como eu também conheci diversos através de suas páginas na internet. Isso é o que de mais belo e enriquecedor levarei destas experiências, a princípio tão despretensiosas e tímidas.  
            Um último motivo substancial para a migração rumo a outros horizontes de trabalho é o fato de que os textos aqui apresentados esgotaram plenamente a sua missão, a de apresentar tudo aquilo que humanamente eu poderia apresentar sobre a relação entre filosofia e espiritismo. Não que não haja mais o que fazer, mas as próximas produções começariam a apresentar um viés fatalmente repetitivo. Nossa visão se esgota em nossos limites, e eu não me vi evoluindo da forma que deveria para alargar ou renovar as ideias e perspectivas que seguem constituindo minha interpretação da relação entre esses dois universos: a filosofia e o espiritismo.
           Várias coisas poderiam ter sido melhor escritas - sei que tenho diversos problemas como escritor -, mas pouquíssimas ou nenhuma eu gostaria de dizer melhor.
           É com essa sensação muito positiva que lhes deixo o convite de seguir pelo caminho que venho seguindo, o do aprofundamento um tanto mais árido e sistemático das intuições e visadas aqui reunidas. A continuação o blog, para mim, é a minha pesquisa, os livros e os artigos que venho escrevendo, as comunicações orais, seja acadêmicas ou seareiras, e muito desse material se encontra disponível online. No link abaixo, do site Academia.edu, pode-se encontrar alguns artigos. No youtube também há algumas coisas, e espero que no futuro não seja difícil continuar acompanhando o que eu faço.
           Fica, não a despedida, mas a gratidão pelos muitos inícios e pontos de partida que esse trabalho me proporcionou. Fica a honra de tê-los como leitores e parceiros de diálogo. Nada me é mais caro do que conviver com almas que se felicitam na harmonização entre Sócrates e Jesus.

https://ufjf-br.academia.edu/HumbertoCoelho

domingo, 6 de setembro de 2015

Momento de ânimo.


Incapazes de fazer frente aos valores, ao conhecimento e ao trabalho paciente de tantas gerações, fracassando fragorosamente diante do melhor, do correto e do verdadeiro, eis que a sombra da humanidade acovardada veste o manto da indiferença e do relativismo, do venenoso cinismo dos indolentes e inúteis que têm como única satisfação destruir e diminuir o que em outras mãos frutifica; revestem-se, em sua vergonha e baixa autoestima, do sarcasmo mais barato e generalizado, que já virou vício, dos ataques militantes e hipócritas contra a hipocrisia, das racionalizações e desculpas convenientes sobre a futilidade de qualquer esforço, e até da injustiça ou fanatismo de todas as causas, exceto a de não se ter nenhuma. 
Como o nada de “A história sem fim”, o relativismo tudo devora, desesperando-nos dos esforços de reação, pois em nenhum lugar se apresenta o vilão a ser confrontado, o talismã a ser quebrado. Anônimo, vazio por natureza, tragando a tudo e a todos no seu niilismo inconsequente, tendo no patrimônio civilizacional seu alvo rancorosamente perseguido, esse monstro informe e nefasto já derrubou incontáveis trabalhadores do progresso e manutenção do que é humano na humanidade. Ele tudo putrefaz, e assume facilmente as formas radicalizadas dos que querem na angústia um adversário tangível, mas acabam por também se render à amargura, seja em silêncio, seja engrossando as falanges que pregam a ausência de sentido.
É um momento horrível, meus amigos, eu o sei. Mas se a consciência coletiva caminhou o bastante para criar um mal invisível e onipresente para além das formas, rostos, nomes e lugares, é que ultrapassamos já o primitivismo mais elementar da luta física, ingressando no mundo abstrato do espírito, onde os combates são igualmente de vida ou morte, mas os combatentes são, enfim, as ideias, sentimentos, esperanças, projetos, sonhos, memórias...
Se o desafio é tremendo, inconcebível e desesperador, é também convite que ressoa nos gongos das consciências até os confins do mundo. Desbaratados e desarmados diante do novo mal transmudado em indiferença, podemos ainda reforçar novas armas para o resgate e reconstrução dos nossos valores.
Essa é a hora extrema da história humana, onde, em crise de idade, precisa escolher novos rumos, mas o relativismo surge pela primeira vez de forma dominante, apontando para a escolha indecente, inumana e irracional de abandono da busca pelo sentido da vida. 
É a hora máxima em que todo resto de fé e esperança valerão mil vezes o que teriam valido às claras e sob um céu limpo. É a hora em que todo aquele que faz o que é certo em anonimato, e apenas porque o certo é o certo, fará estremecer as fibras do planeta. É hora de reunirmos a coragem para dizer que o amor, a verdade, a justiça, o bem e a beleza objetivos, sim, existem, não importa que consequências isso possa trazer para nossas vidas policiadas pelos niilistas e relativistas que histericamente nos queiram achincalhar. E é hora de bater a poeira dos pessimismos, da depressão, dos receios e angústias com que nos contaminaram, esses que odiosos do progresso e do bem conseguiram incutir em nós uma desconfiança doentia que nos faz enrubescer diante do que há de melhor em nós.
Venceremos, meus amados heróis de um reino da consciência, pois os que ouvirão essas palavras sem riso são ainda muitos, e recuperaremos as nossas forças repetidamente, infindavelmente, abastecidos por uma fonte inesgotável, uma que reside em todos nós, inclusive nos que a olvidam ou abominam.
Não nos acomodemos a essa vida e mundo horríveis que ajudamos a construir, senão positivamente, ao menos pelo nosso desforço, preguiça e desânimo. O que está em jogo não é apenas nossa dignidade, mas a felicidade mesma, o que não nos deixa alternativa sã além da iniciativa. 
Piedade para com os que desprezam todas as palavras e gestos capazes de elevar o homem acima dos animais. São os maiores sofredores, os mais lamentáveis miseráveis, carentes de tudo, mesmo quando cobertos pelas joias e glórias do mundo. Seja a nossa a bandeira de todos, para que os que querem dividir os homens em seitas, partidos e igrejas não encontrem em nós ressonância para os seus desvarios. Mas que seja também a bandeira de convicções firmes, equilibradas, razoáveis e justas, para que se finque profundamente nas almas sequiosas de alguma coisa, qualquer coisa. 

segunda-feira, 27 de abril de 2015

'O Testemunho dos Sábios'. Crítica literária.

               Saudações caríssimos! Retornamos às atividades, ou melhor, ressuscitamos após um período de mais de ano e meio de vida atribulada e/ou confusa. Mas retornamos com o gosto de anunciar mais um trabalho de fôlego de nosso querido Rafael de Figueiredo. 
              É novamente com os sentimentos de empolgação, novidade e admiração que terminamos mais um romance de concepção mediúnica da parceria entre o médium gaúcho e Frei Felipe. Na sequência dos eventos dramáticos desencadeados em “Do século das luzes”, Jean retorna à vida terrena com propósito e missão algo mais pacatos e civis. “O Testemunho dos Sábios” traz-nos não apenas a sequência de acontecimentos de uma vida, mas nos leva a traçar a linha de evolução histórica do espiritualismo da era de Mesmer e da Revolução à era dos cientistas e sábios que marcaram as pesquisas espíritas entre meados do século XIX e o início do século XX. Só por isso o livro já seria digno de uma análise atenciosa por parte dos interessados nessa trajetória.
            Mas o novo livro de Rafael é também resultado de seu amadurecimento como escritor do gênero novelesco. Enquanto suas obras anteriores guardam os mesmos traços de superioridade e propósito, com o fio condutor moral e metafísico claramente discernível por entre os acontecimentos da vida, narrados com grande riqueza de detalhe, agora sentimos que o gênero se impõe adicionalmente pelo ritmo e tônus mental específicos. Do começo ao fim temos a impressão de nos confrontarmos com uma vida. A “lição” da história não se sobressai aos eventos cotidianos e ao esmiuçar dos sentimentos e conflitos internos de nosso protagonista, agora nascido do outro lado da Mancha sob a alcunha de Edouard Smith (novamente pseudônimo).
            O grande choque desta sequência para o leitor mais conservador é a troca de referenciais filosófico-religiosos de Jean/Edouard. Enquanto o primeiro se fazia notar pela religiosidade sincera e vivida, muito além das roupagens sociais e linguísticas que caracterizam a quase totalidade da humanidade em sua experiência religiosa, o segundo reflete a educação e conceitos céticos e até certo ponto materialistas do final do século XIX. Tal transformação pode soar conflitante com o princípio ocidental de evolução contínua da consciência, mas a riqueza de ambas as obras nos exige cuidados e aprendizados novos em vista da superação de visões preconceituosas e limitadas dessa evolução.
            O conjunto das obras nos revela, assim, a importância e primazia da personalidade sensível e arraigadamente moralista de Jean/Edouard, e como ela reage aos ambientes históricos em suas fortes variações políticas, estéticas, sociais e científicas. Mais do que um direcionamento distinto para vidas distintas, nosso personagem traz à tona a ambiguidade e o conflito da dialética entre interioridade e contexto sócio-histórico.  Além disso, há uma beleza poética e filosófica em uma transição da vida missionária para a simplicidade dos compromissos honrados da vida burguesa, de modo que a ética subjacente se mostra acentuadamente não revolucionária, mas sim trabalhista. O progresso pelo esforço dos dias e o labor das pequenas atividades profissionais, compromissos familiares, toma proporção quase gloriosa diante da vida instintivamente mais heroica do passado. Nosso conceito de uma missão é amadurecido pelo conjunto da obra. 
Se tivéssemos de definir o propósito existencial de Edouard – e, consequentemente, do livro – poderíamos supor que se trata de uma vida em busca de definição e rumo; trata-se de uma história sobre o posicionamento derradeiro de uma alma diante de problemas e questões que se lhe acumulam ao longo dos séculos. Se com Jean (em Do século das luzes) sentimos esse posicionamento vir de modo fácil e descomplicado, é também verdade que Edouard não goza das vantagens de uma vida condicionada e dirigida ao serviço religioso. Como homem livre, de origem abastada, de educação materialista ou ao menos secular de fins do século XIX, Edouard tem horizontes mais largos de possibilidades, e, é claro, potenciais tentações ou distrações desconhecidas do órfão miserável acolhido desde a infância em um mosteiro. O alargamento desses horizontes, suas vantagens, dentre as quais se sobressai o aumento de responsabilidade por suas escolhas, e os riscos que essa ampliação da responsabilidade lhe traz (os atrasos, as dúvidas, os dramas de consciência, o desperdício de tempo,...) são finamente trabalhados ao longo da narrativa, de modo que é mais a sensação do continuum do drama do que qualquer apresentação teórica e explícita que nos deixa a suspeitar de que este é o tema da obra.

Ao final, guardadas as proporções, temos a impressão de que este segundo e talvez derradeiro capítulo da história de Jean/Edouard o aproxima muito da realidade e dos conflitos que presentemente vivenciamos; da falta de referências e lideranças; da impossibilidade de conciliar nossa cultura secular, relativista e materialista (no sentido metafísico ou socioeconômico) com a adesão de fé às ideias hoje quase inaceitáveis de ordem e bondade intrínsecas do cosmos. O sentido da vida, que eclodia fácil e quase automaticamente para Jean, não pode ser facilmente encontrado por Edouard, diante de quem um maior número de caminhos estão abertos. Só nesta perspectiva saberemos valorizar corretamente o mérito do relutante, mas dedicado Edouard, frente ao piedoso e exaltado Jean.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O pensamento no Antigo Egito

A primeira tarefa de uma filosofia que almeja abranger as origens históricas do pensamento humano é o estudo dos povos primitivos em seus aspectos psicossociais. Para tanto é preciso que nos debrucemos demoradamente sobre a vida do homem primitivo, como o fez André Luiz em Evolução em dois Mundos, seguindo-se com não menos paciência ao estudo dos primeiros antigos, e particularmente dos egípcios.
Infelizmente, contudo, a pesquisa de tais eras primigênias da humanidade é muito difícil e sujeita a diversas imprecisões, motivo pelo qual só muito modestamente arriscamos juízos sobre elas.
Mas como as pesquisas progridem também neste campo em passo satisfatoriamente acelerado surgem há todo momento novas informações e bancos de dados.
No caso da egiptologia, o melhor manual de referência é o Lexikon der Ägyptologie, organizado pelos célebres institutos da Suíça e da Alemanha com grande participação de universidades da França, da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, o que resume basicamente todos os institutos sérios de egiptologia do mundo. O léxico tem, portanto, a vantagem insuperável de reunir virtualmente todos os institutos egiptológicos do planeta, de maneira a potencializar ao máximo o crivo crítico dos verbetes, já que não são produzidos conforme o olhar de uma escola específica, sendo antes fruto do trabalho coletivo de toda a humanidade.
Espelhando esta vocação internacional e universal, o léxico tem verbetes nas três línguas principais em que a pesquisa em egiptologia é praticada: alemão, inglês e francês, tendo sido os verbetes divididos segundo o grau máximo de especialidade nos respectivos assuntos.
 Assim, os alemães e suíços se incumbiram principalmente da religião e filosofia, os franceses das questões sociais e cotidianas, os britânicos e americanos da tecnologia e economia egípcias, seguindo a ordem de interesses e competências de cada instituto. 
O resultado é este fascinante léxico de 7 volumes e mais de duas mil e oitocentas páginas que é atualizado a cada três décadas. E embora a versão que estudamos seja a de 1975, é provável que as maiores mudanças desde então tenham sido no sentido de achados materiais e arquitetônicos, ao passo que a papirologia e as descobertas arqueológicas envolvendo hieróglifos e outras formas de comunicação não foram tão relevantes após esta data.
A versão que ora apresentamos do léxico é, então, um bom retrato do que se sabe hoje sobre a cultura e o pensamento egípcio em geral, o que é muito pouco, mas suficiente para despertar uma intuição geral sobre o clima psíquico do Egito Antigo.
O primeiro e mais básico verbete que vale a pena considerar é o referente a Abstração, capacidade exclusiva do homo sapiens que permitiu o surgimento da cultura (conceitos e símbolos) há aproximadamente 80 mil anos, e atingiu sua forma mais espetacular exatamente no Egito de 3 mil a.C.
Como qualquer cultura, a egípcia é marcada pela abstração, diferenciando-se decididamente dos povos bárbaros e selvagens para os quais a praticidade é praticamente a única prioridade. Esta abstração é projetada na civilização através de formas e sinais de referência que transformam um prédio, instrumento, vestimenta ou ação humana em eventos culturalmente significativos. O que de outro modo seria apenas um abrigo adquire agora uma alta significação através de um projeto que não tem apenas a utilidade como também o sentido cultural em conta. Em outras palavras, o abrigo torna-se além de um abrigo um referente social, religioso ou artístico. O túmulo torna-se também um marco de memória, um instrumento de poder mágico que viabiliza a ressurreição ou ao menos o contato dos vivos com os mortos, um símbolo de status, um ponto de equilíbrio no desenho urbano, e outras coisas mais.
Pirâmides e obeliscos, estátuas e murais decorados são o melhor exemplo de investimento de esforço, tempo e dinheiro na edificação de estruturas sem qualquer utilidade prática. São as primeiras obras “anti-darwinistas”, no sentido da teoria materialista da seleção natural, pois constituem um verdadeiro desperdício da força e do engenho humano em operações inúteis à sobrevivência dos indivíduos e da espécie. Demonstram, bem ao contrário, que o indivíduo pode se engajar em atividades que consomem séculos, e que, portanto, superam qualquer interesse particular a que este poderia jamais aspirar. Demonstram ainda e por isso que o espírito despertou definitivamente, e que um interesse puramente abstrato, intelectual e espiritual pode sobrepor-se a todos os interesses fisiológicos, até mesmo ao sacrifício destes, pois fisicamente falando as obras faraônicas só acarretam em ônus e sacrifício para toda a economia do reino, atingindo inclusive a classe dominante que vê seu luxo reduzido pelos incomensuráveis e intermináveis gastos com templos.
É também a capacidade de abstração que permitiu aos povos semicivilizados do Egito e de outros pontos do globo a formação da escrita, da religião e da arte, cada uma delas dependente de se projetar imagens e referenciais que ultrapassam seu uso comum. Traços e círculos se tornam números, o Sol assume o lugar de pai e legislador, a chuva é associada a uma divindade feminina da fertilidade, o animal deixa de ser um ser natural para simbolizar um atributo.
Contudo, a consciência egípcia do papel da abstração nos elementos culturais não significa que eles estivessem isentos da convicção na sua força real e prática.
Como outros povos antigos os egípcios tinham um grau bem mais alto de esclarecimento do que supunham as pesquisas pretéritas e nossa imagem romântica dos povos primitivos que criam literalmente em seus panteões e mitos. Ao menos a classe instruída tinha razoável ciência de que o mágico e o imaginário deviam ser cuidadosamente distintos, e eram muitas vezes céticos quanto à efetividade última dos rituais e da teologia.
Mais do que os hebreus ou os chineses, talvez só comparáveis aos gregos e indianos, os egípcios sabiam que as lendas de monstros e heróis, gênesis e catástrofes primordiais resumiam mais um recurso pedagógico para a moralização do povo do que registros históricos.
Tal elevação da abstração a sua autoconsciência filosófica é atestada pela teologia, se nos dedicamos à apreciação da Teogonia, a gênese dos deuses.
A teologia egípcia prega que Atum era o primeiro e único ser, unidade primordial do universo a partir da qual a multiplicidade se formou. O criador, contudo, é também o deus do fim do mundo, e sobrevive à aniquilação do universo. Atum é alfa e ômega, o infinito e eterno que precede ao nascimento e transcende o fim do mundo.
Exceto pelos deuses ancestrais, como Atum, os próprios deuses estavam sujeitos à mudança e, portanto, à morte. Eram seres viventes, finitos, mais ou menos corpóreos (veremos a seguir), e bastante próximos do conceito moderno de espíritos tutelares responsáveis por diferentes aspectos da ordem social ou natural.
Êmulo ou filho de Atum é o deus Sol, Aton, que difunde por todo o mundo a força sem a qual nada vive. É um deus impessoal e apartidário, não distinguindo o bom e o mau ao espargir seus benéficos raios. Os egípcios o representaram com enorme sensatez e agudeza de espírito como um sol cujos raios terminam em mãos que acariciam todos os seres indistintamente. Este detalhe é fundamental para que não se confunda a imparcialidade do deus com indiferença, o que lhe retiraria toda a dimensão espiritual fazendo-o assemelhar-se a um gerador de energia, uma lâmpada, ou qualquer outra metáfora material. O sol cujos raios terminam em mãos é um ser imparcial, mas vivente, sensível, pensante e atuante, cujos infinitos raios prodigalizam infinitas obras edificantes. É um espírito mantenedor e cultivador de todos os seres.
Típica representação de Aton onde os raios de Sol terminam em mãos que distribuem bençãos.

Outros verbetes dignos de menção são que designam a “exortação aos vivos” e as “cartas aos mortos”, os quais exemplificam magnificamente a complexidade e relativa banalidade com que os egípcios entravam em intercâmbio com os mortos.
As “exortações aos vivos” eram mensagens dos mortos dirigidas aos vivos. Em casos muito raros poderiam ser mensagens dos deuses, mas o comum era que se tratasse de familiares e amigos íntimos. Os mortos aconselhavam, ameaçavam, amaldiçoavam, abençoavam ou repreendiam os vivos através destas mensagens quase invariavelmente transmitidas por sonhos, mas que também poderiam em casos graves manifestar-se como visões diretas ou por meio de profetas.
A mais conhecida e comum destas exortações aos vivos poderia figurar como máxima de qualquer patriarca a seu povo: “Apegai-vos aos escritos. Trabalhai o seu conteúdo.”[1]
Leitura e interpretação criteriosa dos clássicos e das escrituras sagradas eram já, como hoje, os mais úteis de todos os conselhos.
As “cartas aos mortos” eram um recurso utilizado pelos vivos para endereçar mensagens aos seus mortos.
Estas mensagens consistiam principalmente de lembranças, agradecimentos, rogativas, bravatas e ofensas. Algo que lembra um pouco o propósito dos epitáfios.
 Um filho poderia reclamar ao pai por tê-lo deixado em má situação financeira, ou poderia recomendá-lo aos deuses ressaltando suas qualidades. Um inimigo poderia amaldiçoar o morto para que não encontrasse bons caminhos no além, enquanto um amigo poderia inscrever numa placa comemorando os seus feitos.  É, portanto, difícil distinguir as mensagens que realmente se destinam aos mortos daqueles muitos comentários ou alegações feitas sobre um morto, as quais também são muito frequentes. A verdade inquestionável em meio a todas estas questões é, “os mortos jamais eram esquecidos”.
Havia muitas outras formas de “relação entre este e o outro lado”.[2]
Em geral o além era visto como um lugar escuro e deprimente, de modo que o homem normal pretendia voltar a viver o mais rápido possível. Este renascimento era comumente associado ao corpo original, dando origem, como é sabido, à mumificação dos corpos. As almas mais puras, contudo, podiam aspirar a uma boa vida no além, ao lado dos deuses, mas o cidadão comum e mesmo muitos faraós temiam que este não fosse o seu destino.
A consciência do pecado era muito forte na cultura egípcia, mesmo que o esforço para superá-lo não fosse tão grande. Egípcios parecem ter sido menos propensos ao ascetismo e à bondade do que os sábios hebreus ou gregos, mas eram provavelmente mais humildes ao avaliarem seu estado moral.
A filosofia egípcia era essencialmente dualista,[3] isto é, criam que todas as coisas funcionam por oposição. A geografia influenciou-os, como de costume, mais do que a outros povos na adoção do dualismo. As duas margens do Nilo, o alto e o baixo Egito, unificados na tiara do faraó, o contraste entre o calor escaldante do luminoso dia e a noite fria do deserto.
Mas é claro, a oposição principal é aquela entre corpo e espírito, o mundo material e o dos deuses. E a intermediação entre estas duas substâncias é feita através de uma terceira e ainda uma quarta substâncias (ou propriedades semimateriais do espírito): Ka eBa.[4]
Ba é a força plástica, animalizada e praticamente material através da qual a alma interfere no mundo dos vivos. É através de Ba que a força vital, Ka, se relaciona com o corpo. Os deuses também possuem Ba, e é por isso que podem intervir fisicamente no mundo dos vivos. Mas Ba não é uma energia amorfa, senão uma personificação da energia vital, um duplo ou molde do corpo, em alguns aspectos, e/ou uma projeção da personalidade e dos atributos psíquicos, em outros.
O Ka, por outro lado, é a força vital em seu aspecto mais espiritual, não tendo relação direta com o corpo, o que o torna dependente do Ba. Enquanto Ba parece ser mais um envoltório ou ectoplasma, Ka é a energia pura emanada do espírito.
 Às vezes simploriamente traduzido como alma, a etimologia do Ka guarda forte parentesco com “touro”, palavra da qual se derivam outras como “força”. O Ka também não pode ser resumido como alma pois não é um princípio inteiramente individual, mas reúne famílias ou comunidades. O pai transmite o Ka ao filho, e o filho herda o Ka do pai.
Trata-se, portanto, um padrão de energia que tipifica a atividade da alma.
O primeiro deus cria os demais através da divisão ou doação de seu Ka. E estes ajudam a formar o mundo também através da emanação de seus respectivos Ka. As vibrações das almas dos deuses produzem algo como uma sinfonia cósmica com tons muito distintos, e por isso os deuses têm papéis muito específicos na criação e manutenção do mundo.
Um homem morto geralmente está destituído de Ka, mas pode ser reunido novamente a ele através de rituais poderosos em que o espírito do morto ganha substância anímica, estando a um passo da vida carnal. Um espírito cheio de Ka pode, entre outras coisas, aparecer aos vivos e afetar o mundo dos vivos.
Em resumo, Ka parece ser uma força de que o espírito necessita para produzir fenômenos espirituais de natureza inteligente, inclusive os ligados às leis e à ordem naturais, ao passo que Ba é  um adensamento plasmático que viabiliza fenômenos físicos como curas, maldições e transporte de objetos por parte dos espíritos.
Porque criam firmemente nesta capacidade dos espíritos e deuses de intervir no mundo dos vivos, os egípcios tinham em altíssima conta o ato de orar.[5]
Os próprios deuses são instados a orar para entidades maiores, como o Sol. Os animais também oram, apesar de que suas orações não são verbais.
Os egípcios oravam para qualquer coisa não mundana, isto é, seus antepassados mortos, entidades intermediárias entre os espíritos dos mortos e os deuses, aos deuses, ao rei-deus (faraó). Era possível orar de pé, mas orações sinceras e intensas eram feitas “sob um ou ambos os joelhos, em prostração (beijando o chão) e com os braços geralmente estendidos, com as mãos para baixo ou para cima.”[6]
As orações eram feitas com grande frequência ao nascer do Sol, às vezes ao pôr do Sol, mais raramente em outras ocasiões. Podiam ser ditas em voz alta ou apenas murmuradas, raramente em silêncio. “A parte principal da oração era um hino de agradecimento ou, o que era mais comum, um pedido.”[7]
Quando a oração parecia não ser suficiente os egípcios apelavam para a “visita aos deuses” ou para o “sono reparador”.[8]
A visita aos deuses é o termo que a teologia egípcia empregava para procissões e peregrinações. Tanto quanto qualquer povo antigo, os egípcios acreditavam radicalmente na importância da procissão. A procissão tem duas funções fundamentais: 1- reconhece que algum lugar é sagrado, ou ao menos mais sagrado do que os locais próximos. 2- lembra ao fiel que a busca pelos deuses é uma viagem, uma jornada. Neste segundo sentido pouca diferença faz o destino final da procissão, mas o seu trajeto, a marcha em si enquanto movimento sacrificial de desapego pelos interesses mundanos, pelo lar e pelo estilo de vida local.
O sono reparador ou regenerador era uma técnica, tanto quanto uma crença da religiosidade egípcia. Os egípcios eram bem cientes de que o contato com os deuses ocorre preferencialmente através de sonhos. Sabiam também que a alma acessa, através do simbolismo onírico, recessos de si mesma inatingíveis pela mente consciente. Por isso empregavam amplamente uma variedade de técnicas do sono e dos sonhos.
 A divisão mais básica dos sonhos se refere aos espontâneos em face dos provocados. Provocar sonhos era uma arte que os hierofantes (e apenas eles) dominavam com prática e teoria, sendo que a melhor maneira de produzi-los era dormir em locais especiais, como templos, locais de sacrifício e na proximidade de monumentos. Estes lugares e objetos estariam impregnados da presença e emanação dos deuses a eles associados, alterando por si sós o conteúdo dos sonhos.
A razão principal pela qual um leigo buscava dormir em locais propícios aos sonhos divinatórios ou simbólicos era de saúde. Assim, ou os doentes se dirigiam aos templos na busca de dormir sob o manto dos deuses, ou os sacerdotes eram convidados às casas dos doentes para ministrar o sono regenerador, através de encantos especiais que visavam criar uma atmosfera na residência capaz de imitar o ambiente do templo. Em ambos os casos a autoridade absoluta competia ao sacerdote. O homem leigo, inclusive se poderoso, não ousava discordar ou sequer opinar em questões espirituais.
 Os egípcios observavam também que a técnicas de sono reparador eram especialmente efetivas em casos de doenças e transtornos mentais.
Passando da religiosidade para a base metafísica e teológica da religião, é necessário considerar as características atribuídas aos deuses.
Deuses egípcios são caracterizados por:
·         Tempo: Todos nascem, vivem seus dias divididos em horas e, possivelmente, morrem. Em alguns sentidos são imortais (não envelhecem), mas como podem morrer em conflitos com outros deuses não são jamais eternos e indestrutíveis. Como suas ações são limitadas pelo tempo, é improvável que ajam ou estejam em muitos lugares no mesmo instante.
·         Lugar: Deuses têm corpo, apesar de poderem assumir vários corpos ou formas, e estão sujeitos às leis normais de espacialidade como alto, baixo, dentro e fora.
·         Mudança. Nenhum deus egípcio é imutável. Não apenas porque existem no tempo e espaço, mas porque a existência para os egípcios é sempre regrada por ciclos de transformações.
·         Substancialidade metafórica: Ao contrário dos seres corpóreos que possuem uma substância material e concreta, deuses são compostos por substância fluídica (termo do próprio léxico) e podem emanar partes de suas características ou presença por irradiação. “Este conceito de “fluido divino” só foi confirmado bastante tardiamente”[9]
·         Subclassificações: o sexo, a função e outras características menos importantes, mas comumente atribuídas aos deuses.

Naturalmente, há exceções que não se enquadram neste perfil, como vimos ser o caso de Atum.
Em seu aspecto filosófico, a religião se debruçava sobre os conceitos de segredo e mistério.[10]
A princípio toda ciência pode ser dita um segredo. Os segredos dos céus designam, assim, a astronomia, enquanto a medicina trata dos segredos da saúde e da vida. Toda a natureza encerra, portanto, os seus segredos, e o papel do homem é aos poucos retirar os véus dos fenômenos revelando para si as leis naturais. Os grandes segredos, contudo, pertencem ao mundo dos mortos, e só podem ser vagamente conhecidos pelos homens, através de símbolos.
A teoria do conhecimento egípcia assumia, portanto, que as partes mais profundas da realidade são e sempre serão inacessíveis ao intelecto humano, de maneira que em face das leis maiores estamos absolutamente em dependência para com os deuses. Os mortos descerram alguns segredos a mais em comparação com os sábios encarnados, mas mesmo eles são ignorantes se comparados aos deuses, os detentores do conhecimento sobre o funcionamento básico do mundo e sobre as questões mais radicais da filosofia. Por isso pensadores egípcios não se dedicavam demais à meditação sobre o sentido da vida ou a origem do universo. Tais questões eram por definição assuntos destinados às mentes supremas, não às humanas.
Segundo a convenção típica dos estudos de religião, mistérios é o nome geralmente dado à taumaturgia, à necromancia, à adivinhação e à filosofia pertinente a estes assuntos.Trata, portanto, essencialmente do intercâmbio com os mortos e/ou com os deuses, de sua ação no mundo dos vivos, de presságios e profecias e de um conhecimento ao menos parcialmente divino que justifica tais atividades e ocorrências.
Os mistérios são, assim, a parte espiritual dos segredos da natureza, e os iniciados nos mistérios são os “cientistas dos fenômenos psíquicos”.
Apesar da concepção geral, o léxico de egiptologia afirma que os egípcios não acreditavam na reencarnação como fenômeno corriqueiro ao qual todos os seres estariam sujeitos. A reencarnação pode ocorrer, mas não é uma fatalidade, de modo que algumas almas de fato jamais retornam à Terra, enquanto outras só o poderiam fazer por intermédio da múmia.
Isto é consequência de uma complexa e confusa concepção do além.[11]
Para os egípcios o além não pertencia ao não-ser, mas a uma dimensão do ser. A morte não era ameaça à existência individual, e sim uma transposição do indivíduo do plano carnal para o além, um mundo relativamente desconhecido, mas concreto, onde a vida podia continuar.
O mundo egípcio não se resumia, portanto, na realidade material. Havia também um céu (reino dos deuses) e um submundo (reino dos mortos) que ainda não sendo inteiramente físicos e identificáveis dentro do mundo material, podiam ser apreendidos de um modo ou de outro (pela magia, pelos oráculos, pela razão...). Uma vez que os três mundos respeitam os mesmos princípios de diferenciação e ordenação, não há qualquer mudança de personalidade na passagem entre eles.
Mesmo assim, viver limitado ao submundo não parecia algo desejável aos olhos egípcios, que tinham do além uma impressão obscura, fúnebre e às vezes assombrada.Em consequência disso os egípcios se esforçavam ao máximo para garantir que um lastro de sua existência física, o corpo, pudesse perdurar, daí a “necessidade” de mumificação.
É o caso de se dizer que os egípcios temiam a vida no além não porque fossem pessimistas quanto ao além em si, pois havia dois mundos, um magnífico dos deuses e um obscuro no submundo. Eles eram pessimistas quanto à avaliação de sua moralidade, julgando que o homem comum praticamente nunca merece ascender ao mundo dos deuses após a morte, sendo arrastado por seus pecados ao submundo.
Estranhamente, pelo que podemos inferir do léxico, esse pessimismo moral não estimulava o moralismo, como é comum ocorrer com as teologias que enfatizam o mal radical da alma humana. Ao contrário, havia uma certa condolência e resignação quanto ao fato de que o caráter humano é assediado por desejos indignos. Ao mesmo tempo que tinham total consciência do pecado, do mal, da tentação, não se esforçavam demasiadamente para evitá-los, aceitando ser essa a condição humana. A filosofia moral dos egípcios era schopenhaueriana.
Como na Índia ou no Extremo Oriente, o Lótus era para os egípcios o símbolo máximo da beleza e da perfeição, trespassando por sua glória a mundanidade e trazendo aos homens uma brisa espiritual. Nascida do lodo mais fétido e dos excrementos dos animais, ela também carrega o simbolismo do renascimento, da alma que se desprende pura do cadáver, e do espírito que retorna da morte.
Com isso encerramos esta curtíssima exposição das curiosidades que mais nos atraíram neste fabuloso e extenso manual. É sempre de lamentar que um tema tão instigante e frutífero quanto a cultura da primeira grande civilização humana tenha sido depauperado pelas areias do deserto e do tempo.

Bibliografia.
HELCK, W.; OTTO, E. Lexikon der Ägyptologie. 7Bd. Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1975.





[1]Verbete Anruf an Lebende. Vol. I, p. 297.
[2] Verbete Diesseits-JenseitsBeziehungen.Vol. I, p. 1085.
[3] Verbete Dualismus. Vol. I, p. 1148.
[4] Verbete Ba. Vol. I, p. 589.
[5]Verbete Ba. Vol. II, p. 453.
[6] Idem.
[7]Verbete Ba. Vol. II, p. 455.
[8] Verbetes Besuch an den Götter e HeilendeSchlaff. Vol. II.
[9]Verbete Götter. Vol. II, p. 759
[10] Verbetes Geheimniss e Mysterien. Vols. I e IV.
[11] Verbetes Jenseitsvorstellungen. Vol. III.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Mais uma análise em torno das manifestações de Junho.


Como diagnosticara Hegel, a alienação é a presença de uma consciência sem a respectiva autoconsciência. Essa constatação é sempre muito clara quando uma sociedade está perfeitamente ciente de suas mazelas e desafios, falhando simultaneamente, contudo, em interiorizar esta consciência ao modo de responsabilidade.
O drama de tal alienação se manifesta particularmente nas acusações mútuas e atribuições indiscriminadas de culpa a todos e a tudo.
No movimento seguinte do espírito coletivo, quando a consciência é assumida e alargada pela autoconsciência, o que na vida das nações ocorre costumeiramente por intermédio das classes intelectuais, o papel de indivíduos e instituições, até então alienado, é interiorizado como responsabilidade.
Com isso, as torpezas sociais objetificadas e coisificadas em suas versões alienadas adentram, ou melhor, se reencontram na esfera da liberdade.
O povo, ao menos por intermédio dessa classe intelectual, se reconhece como fonte e meio tanto dos desafios que discerne, quanto dos possíveis caminhos que conduzam à sua superação. Toma, por assim dizer, as rédeas que há pouco considerava pertencentes ao “poder”, à “elite”, ou qualquer outra instância social ultimamente escorada e alimentada por ele mesmo (o povo).
Na liberdade recém-readquirida pela autoconsciência o povo repudia agora os mecanismos (partidos, representantes, leis, instituições e até a própria cultura) por ele mesmo produzidos ativa ou passivamente com fins à sua própria subserviência, não permitindo-se mais, entretanto, a revolta enfurecida contra estes, uma vez que já os reassumiu como um patrimônio seu. Fato este que se pode averiguar pela indecisão e incerteza com que a população se rebela contra “algo”, “as injustiças” ou “tudo o que aí está”, sem conseguir organizar-se mental ou politicamente quanto às providências cabíveis.
Entram, então, em jogo as opiniões conciliadoras, instaurando clima reflexivo sério e debate generalizado, ora excitado, ora ponderado, quanto às resoluções inadiáveis e projetos para reformas futuras.
Já não mais se apresentam os quadros infelizes de guerra civil, matança ou prisões arbitrárias que caracterizaram as revoltas passadas, embora indivíduos marcados por vivências estereotipadas acalentem com grande prazer a reminiscência destes episódios, vindo a exigir maior dureza por parte da polícia ou dos rebeldes, convictos de que somente a força pode dobrar a força.
Urge, pois, que a autoconsciência se generalize por intermédio dos grupos esclarecidos e devidamente aparatados com o conhecimento indispensável sobre o funcionamento da vida pública, sobre as bases do direito e da ética, bem como dos fenômenos históricos que contribuam para o alargamento do panorama especulativo.
Uma vez que a autoconsciência já alcançada é dificilmente reconduzida ao estado de alienação, podemos esperar inúmeros e duradouros frutos dos processos sociais recentemente deflagrados.
Em sentido prático e com caráter imediato já se desenrolam progressos concretos e de grande impacto sobre a vida da nação. Já se desfez ou abalou-se a postura hipócrita com que muitas figuras públicas têm mascarado sua indiferença escandalosa diante dos anseios e necessidades do povo a que pertencem e de que não se diferenciam, exceto pelos poderes criminosos que acumularam por meio do dinheiro ou desvirtuação das leis. Já não podem sofismar que o seu comportamento esteja de acordo com eleitores que “calam e consentem”.
Em outras almas mais valorosas do serviço coletivo (sim, as há também) inflamou-se o desejo quase esquecido de honrar os compromissos assumidos perante a pátria, de modo que se movimentam no sentido de aproveitar o constrangimento dos hipócritas e o temor dos francamente maus, a fim de que se agilizem os programas largamente aguardados das reformas política, partidária e outras emendas constitucionais.
Conquanto a autoconsciência seja por si só um progresso inestimável no amadurecimento do povo, como no de um sujeito, ela ainda representa o modo subjetivo de se encarar a realidade, pelo que deve ser sempre enfatizada a necessidade de se levá-la a ato.
É preciso que a consciência passe novamente ao estado que lhe é próprio, a objetividade, agora não mais ingênua e alienada, mas transubstanciada em ação livre e autoconsciente de sujeitos.
Esta nova forma de consciência não é mais que a realização, a concretização da autoconsciência, que é um momento de dever-ser. E os indivíduos, o povo como um todo, está suspenso na angústia do puro dever-ser, da pura liberdade característica da tomada de autoconsciência. Tão grandes são a angústia e a incerteza do puro dever-ser, que as personalidades humanas, incapazes de pagar o ônus de sua altura divina, corre o risco de se fragmentar ou recrudescer. Por isso a urgência em se passar quando possível, na vida individual ou coletiva, do puro dever-ser à concretização de projetos que desempenhem este papel conscientizador.
Em termos bem mais simples, um debate indefinido tende mais a confusão do que ao progresso, e em algum momento figuras de liderança têm de exercer o papel de representação ao menos de um conjunto mediano e razoável dos desejos coletivos.
Como o diálogo sério não é habito de nossa sociedade, o diagnóstico das nuanças da vontade coletiva (os grupos de interesse) não está facilmente acessível, produzindo o relativo estupor diante das manifestações. Um estupor que atinge tanto os próprios manifestantes, quanto a sociedade que assiste apreensiva quanto aos rumos do processo transformador.
Saindo do campo da análise e permitindo-nos certa liberdade de divagação e opinião, pensamos ser positivo e imensamente valioso o momento vivido, ainda que ele possa revelar-se muito menos frutífero do que esperamos.


            

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A experiência do Absoluto


A prova cabal da unidade das religiões é o fato de elas compartilharem uma experiência em comum, a qual é, propriamente falando, a experiência religiosa primária ou experiência mística.
Divergências doutrinárias, éticas e rituais podem causar embaraço a uma compreensão unificada da religiosidade humana, e mesmo os fenômenos sobrenaturais variam infinitamente quanto aos tipos preferenciais de cada tradição e seu conteúdo, quase sempre influenciado pela cultura. Católicos veem Maria, budistas veem mandalas, xamãs veem animais de poder; e os papéis atribuídos a estas visões dentro de cada doutrina são ainda mais díspares.
Experiências místicas, contudo, parecem contradizer todos os nossos esforços de especificação e definição das religiões enquanto exclusivas, e os que experimentam estados místicos, notadamente os fundadores das religiões e alguns de seus principais santos e reformadores, sempre estão mais de acordo entre si, de forma bastante cosmopolita, do que com os adeptos de seu próprio círculo.
William James, como de costume, parece estar certo em categorizar a experiência mística como dotada de:
1-                 Inefabilidade: Se nos faltar o coração ou o ouvido, não poderemos interpretar com justeza o músico nem o amante, e seremos até capazes de considerá-los donos de espírito fraco. Para o místico, quase todos conferimos às suas experiências um tratamento igualmente incompetente. Os não experimentados na mística sequer se aproximam de compreender de que ela se trata. Analogias são quase totalmente inúteis.
2-          Qualidade no noética: conquanto muito semelhantes a estados de sentimento, os estados místicos parecem também para os que os experimentam, estados de conhecimento, estados de visão interior dirigida a profundezas da verdade não sondadas pelo intelecto discursivo. São iluminações, revelações, cheias de significado e importância, por mais inarticuladas que continuem sendo; e, via de regra, carregam consigo um senso curioso de autoridade pelo tempo sucessivo.
3-      Transitoriedade: Ninguém sustenta um estado místico por mais do que um momento. Este pode ser um átimo de segundo ou algumas horas, mas após o seu término o místico mais experiente – aquele que vivenciou o fenômeno inúmeras vezes – sente-se distanciado do estado místico e sabe perfeitamente que dele guarda apenas uma vaga memória.
4-               Passividade: se bem que a aproximação de estados místicos seja facilitada por operações voluntárias preliminares, como fixação da atenção... o místico tem a impressão de que a sua própria vontade está adormecida e, às vezes, de que ele está sendo agarrado e seguro por uma força superior. Esta última particularidade liga os estados místicos a certos fenômenos definidos de personalidade secundários ou alternativos, tais como o discurso profético, a escrita automática ou o transe mediúnico[1]
É precisamente o que místicos têm relatado desde tempos imemoriais. Quando Krishna se mostra a Arjuna; quando um nirvana é descrito; quando Deus se revela a Moisés; quando Ibn Arabi encontra Alá; quando Paulo encontra Jesus a caminho de Damasco; Plotino encontra o Uno; Agostinho entende o chamado; quando o índio mergulha no Grande Espírito e o taoísta vê a raiz do Tao; quando o yogi atinge o samadhi sem semente ou um poeta vê a pulsação do cosmo, todos estão tentando apreender o inapreensível. E por trás de suas metáforas enxergamos sempre e em todos os lugares aquelas características habilmente capturadas por James.
Mais por nossa necessidade do que por vontade própria, o místico nomeia Aquilo com que se deparou no êxtase: O Supremo, Deus Todo Poderoso, o Bem, o Belo, o Uno, o Hálito Divino, o Espírito Santo, a Natureza Búdica, o Reino, a Força, o Móvel dos mundos, o Fogo, o Vazio, o Silêncio, o Nada... E tantos nomes – humanos que são – somente arranham, quase conspurcam a verdadeira experiência do Absoluto. Por esses nomes guerreiam as religiões, distanciadas dos mestres que detinham a experiência original e que sabiam estar empregando metáforas pedagógicas, termos simplórios de referência.
Excluídos os elementos culturais, e fenômenos de clarividência ou outros que possam se associar a um êxtase, podemos arriscar uma descrição genérica que perpasse todas as culturas humanas.
Trata-se sempre de um silêncio que tudo preenche; que nos provoca muitas vezes mais arrebatamento do que o maior arrebatamento que a música nos pode proporcionar. Aquele silêncio que vem depois de toda a compreensão, depois que tudo foi dito, como um momento de satisfação tão perfeita que nada mais precisamos ouvir.
A visão idem. Nem a mais vaga noção de espaço ou tempo, de objeto ou coisa, de finitude ou particularidade. Maior do que grande, uma amplitude absoluta, uma luz perfeita que tudo perpasse e que é tudo, e que é quase um nada para o intelecto, pois ele não pode conceituar ou isolar elemento algum.
Não há mais tato, porque não há mais corpo, mas um novo sentido intuitivo sente tudo.
A clareza mental é ausente de mácula e não mais se aflige em devassar os particulares.
O coração finalmente encontra repouso, está em casa, e é invadido por uma misericórdia, um acolhimento e uma amizade que o transubstanciam em serenidade e fraternidade universal.
Esta é a existência verdadeira, de modo que a morte não é mais tema, e não precisa sequer ser confrontada com argumentos.
Nenhuma religião pode se basear apenas sobre estas revelações, já que multifária é a experiência humana; psicológica, existencial, intelectual, cultural e paranormal. São incontáveis outros fatores que colaboram com a construção do imaginário, da visão de mundo, da sensibilidade e da moralidade, mas com esforço, tato e um bom estudo das religiões é possível resgatar estes traços genéticos da experiência mística.
Nas palavras de Plotino, o místico participa do intelecto divino e vê as coisas mais ou menos como Deus as veria. Sua alma, que é cópia da Alma universal, imita o entendimento do Uno sobre si mesmo.
“A vida do intelecto divino é também um ato: é a luz primordial despejando luz, primeiro sobre si mesma, sua própria tocha: doadora de luz e iluminada ao mesmo tempo; o autêntico objeto intelectual, ao mesmo tempo conhecendo e conhecido, vendo por si e sem necessitar de outro para ser visto. Autossuficiente para a visão, uma vez que aquilo que ele vê é ele mesmo.” ([V 3], 8. p. 390)

Ou mais ao estilo de Espinosa, Deus ama a si mesmo, ou seja, tudo.

JAMES, William. As variedades da experiência religiosa. São Paulo: Cultrix, 1995.
PLOTINUS. The Enneads. Traduzido por Stephen McKenna. London: Faber and Faber, 1930.



[1] Texto adaptado por mim visando a simplificação. (JAMES, 1995. p. 237-238)