A primeira tarefa de uma
filosofia que almeja abranger as origens históricas do pensamento humano é o
estudo dos povos primitivos em seus aspectos psicossociais. Para tanto é
preciso que nos debrucemos demoradamente sobre a vida do homem primitivo, como o
fez André Luiz em Evolução em dois Mundos,
seguindo-se com não menos paciência ao estudo dos primeiros antigos, e
particularmente dos egípcios.
Infelizmente, contudo, a
pesquisa de tais eras primigênias da humanidade é muito difícil e sujeita a
diversas imprecisões, motivo pelo qual só muito modestamente arriscamos juízos
sobre elas.
Mas como as pesquisas
progridem também neste campo em passo satisfatoriamente acelerado surgem há
todo momento novas informações e bancos de dados.
No caso da egiptologia, o
melhor manual de referência é o Lexikon der Ägyptologie, organizado pelos
célebres institutos da Suíça e da Alemanha com grande participação de universidades
da França, da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, o que resume basicamente todos
os institutos sérios de egiptologia do mundo. O léxico tem, portanto, a
vantagem insuperável de reunir virtualmente todos os institutos egiptológicos
do planeta, de maneira a potencializar ao máximo o crivo crítico dos verbetes,
já que não são produzidos conforme o olhar de uma escola específica, sendo
antes fruto do trabalho coletivo de toda a humanidade.
Espelhando esta vocação
internacional e universal, o léxico tem verbetes nas três línguas principais em
que a pesquisa em egiptologia é praticada: alemão, inglês e francês, tendo sido
os verbetes divididos segundo o grau máximo de especialidade nos respectivos
assuntos.
Assim, os alemães e suíços se incumbiram principalmente
da religião e filosofia, os franceses das questões sociais e cotidianas, os
britânicos e americanos da tecnologia e economia egípcias, seguindo a ordem de
interesses e competências de cada instituto.
O resultado é este
fascinante léxico de 7 volumes e mais de duas mil e oitocentas páginas que é
atualizado a cada três décadas. E embora a versão que estudamos seja a de
1975, é provável que as maiores mudanças desde então tenham sido no sentido de
achados materiais e arquitetônicos, ao passo que a papirologia e as descobertas
arqueológicas envolvendo hieróglifos e outras formas de comunicação não foram
tão relevantes após esta data.
A versão que ora
apresentamos do léxico é, então, um bom retrato do que se sabe hoje sobre a
cultura e o pensamento egípcio em geral, o que é muito pouco, mas suficiente
para despertar uma intuição geral sobre o clima psíquico do Egito Antigo.
O primeiro e mais básico
verbete que vale a pena considerar é o referente a Abstração, capacidade
exclusiva do homo sapiens que permitiu o surgimento da cultura (conceitos e
símbolos) há aproximadamente 80 mil anos, e atingiu sua forma mais espetacular
exatamente no Egito de 3 mil a.C.
Como qualquer cultura, a
egípcia é marcada pela abstração, diferenciando-se decididamente dos povos
bárbaros e selvagens para os quais a praticidade é praticamente a única
prioridade. Esta abstração é projetada na civilização através de formas e
sinais de referência que transformam um prédio, instrumento, vestimenta ou ação
humana em eventos culturalmente significativos. O que de outro modo seria
apenas um abrigo adquire agora uma alta significação através de um projeto que não tem apenas a utilidade como também o sentido cultural em conta. Em outras palavras, o abrigo torna-se além de um abrigo um referente social, religioso ou artístico. O túmulo torna-se também um marco de memória, um instrumento de poder mágico que viabiliza
a ressurreição ou ao menos o contato dos vivos com os mortos, um símbolo de
status, um ponto de equilíbrio no desenho urbano, e outras coisas mais.
Pirâmides e obeliscos,
estátuas e murais decorados são o melhor exemplo de investimento de esforço,
tempo e dinheiro na edificação de estruturas sem qualquer utilidade prática.
São as primeiras obras “anti-darwinistas”, no sentido da teoria materialista da
seleção natural, pois constituem um verdadeiro desperdício da força e do
engenho humano em operações inúteis à sobrevivência dos indivíduos e da
espécie. Demonstram, bem ao contrário, que o indivíduo pode se engajar em atividades
que consomem séculos, e que, portanto, superam qualquer interesse particular a
que este poderia jamais aspirar. Demonstram ainda e por isso que o espírito
despertou definitivamente, e que um interesse puramente abstrato, intelectual e
espiritual pode sobrepor-se a todos os interesses fisiológicos, até mesmo ao
sacrifício destes, pois fisicamente falando as obras faraônicas só acarretam em
ônus e sacrifício para toda a economia do reino, atingindo inclusive a classe
dominante que vê seu luxo reduzido pelos incomensuráveis e intermináveis
gastos com templos.
É também a capacidade de
abstração que permitiu aos povos semicivilizados do Egito e de outros pontos do
globo a formação da escrita, da religião e da arte, cada uma delas dependente
de se projetar imagens e referenciais que ultrapassam seu uso comum. Traços e
círculos se tornam números, o Sol assume o lugar de pai e legislador, a chuva é
associada a uma divindade feminina da fertilidade, o animal deixa de ser um ser
natural para simbolizar um atributo.
Contudo, a consciência
egípcia do papel da abstração nos elementos culturais não significa que eles
estivessem isentos da convicção na sua força real e prática.
Como outros povos antigos os
egípcios tinham um grau bem mais alto de esclarecimento do que supunham as
pesquisas pretéritas e nossa imagem romântica dos povos primitivos que criam
literalmente em seus panteões e mitos. Ao menos a classe instruída tinha
razoável ciência de que o mágico e o imaginário deviam ser cuidadosamente
distintos, e eram muitas vezes céticos quanto à efetividade última dos rituais
e da teologia.
Mais do que os hebreus ou os
chineses, talvez só comparáveis aos gregos e indianos, os egípcios sabiam que
as lendas de monstros e heróis, gênesis e catástrofes primordiais resumiam mais
um recurso pedagógico para a moralização do povo do que registros históricos.
Tal elevação da abstração a
sua autoconsciência filosófica é atestada pela teologia, se nos dedicamos à
apreciação da Teogonia, a gênese dos deuses.
A teologia egípcia prega que
Atum era o primeiro e único ser, unidade primordial do universo a partir da
qual a multiplicidade se formou. O criador, contudo, é também o deus do fim do
mundo, e sobrevive à aniquilação do universo. Atum é alfa e ômega, o infinito e
eterno que precede ao nascimento e transcende o fim do mundo.
Exceto pelos deuses
ancestrais, como Atum, os próprios deuses estavam sujeitos à mudança e,
portanto, à morte. Eram seres viventes, finitos, mais ou menos corpóreos
(veremos a seguir), e bastante próximos do conceito moderno de espíritos
tutelares responsáveis por diferentes aspectos da ordem social ou natural.
Êmulo ou filho de Atum é o
deus Sol, Aton, que difunde por todo o mundo a força sem a qual nada vive. É um
deus impessoal e apartidário, não distinguindo o bom e o mau ao espargir seus
benéficos raios. Os egípcios o representaram com enorme sensatez e agudeza de
espírito como um sol cujos raios terminam em mãos que acariciam todos os seres
indistintamente. Este detalhe é fundamental para que não se confunda a
imparcialidade do deus com indiferença, o que lhe retiraria toda a dimensão
espiritual fazendo-o assemelhar-se a um gerador de energia, uma lâmpada, ou
qualquer outra metáfora material. O sol cujos raios terminam em mãos é um ser
imparcial, mas vivente, sensível, pensante e atuante, cujos infinitos raios
prodigalizam infinitas obras edificantes. É um espírito mantenedor e cultivador
de todos os seres.
|
Típica representação de Aton onde os raios de Sol terminam em mãos que distribuem bençãos. |
Outros verbetes dignos de
menção são que designam a “exortação aos vivos” e as “cartas aos mortos”, os
quais exemplificam magnificamente a complexidade e relativa banalidade com que
os egípcios entravam em intercâmbio com os mortos.
As “exortações aos vivos”
eram mensagens dos mortos dirigidas aos vivos. Em casos muito raros poderiam
ser mensagens dos deuses, mas o comum era que se tratasse de familiares e
amigos íntimos. Os mortos aconselhavam, ameaçavam, amaldiçoavam, abençoavam ou
repreendiam os vivos através destas mensagens quase invariavelmente
transmitidas por sonhos, mas que também poderiam em casos graves manifestar-se
como visões diretas ou por meio de profetas.
A mais conhecida e comum
destas exortações aos vivos poderia figurar como máxima de qualquer patriarca a
seu povo: “Apegai-vos aos escritos. Trabalhai o seu conteúdo.”
Leitura e interpretação
criteriosa dos clássicos e das escrituras sagradas eram já, como hoje, os mais
úteis de todos os conselhos.
As “cartas aos mortos” eram
um recurso utilizado pelos vivos para endereçar mensagens aos seus mortos.
Estas mensagens consistiam
principalmente de lembranças, agradecimentos, rogativas, bravatas e ofensas.
Algo que lembra um pouco o propósito dos epitáfios.
Um filho poderia reclamar ao pai por tê-lo
deixado em má situação financeira, ou poderia recomendá-lo aos deuses
ressaltando suas qualidades. Um inimigo poderia amaldiçoar o morto para que não
encontrasse bons caminhos no além, enquanto um amigo poderia inscrever numa
placa comemorando os seus feitos. É,
portanto, difícil distinguir as mensagens que realmente se destinam aos mortos
daqueles muitos comentários ou alegações feitas sobre um morto, as quais também são muito frequentes. A verdade
inquestionável em meio a todas estas questões é, “os mortos jamais eram
esquecidos”.
Havia muitas outras formas
de “relação entre este e o outro lado”.
Em geral o além era visto
como um lugar escuro e deprimente, de modo que o homem normal pretendia voltar
a viver o mais rápido possível. Este renascimento era comumente associado ao
corpo original, dando origem, como é sabido, à mumificação dos corpos. As almas
mais puras, contudo, podiam aspirar a uma boa vida no além, ao lado dos deuses,
mas o cidadão comum e mesmo muitos faraós temiam que este não fosse o seu
destino.
A consciência do pecado era
muito forte na cultura egípcia, mesmo que o esforço para superá-lo não fosse
tão grande. Egípcios parecem ter sido menos propensos ao ascetismo e à bondade
do que os sábios hebreus ou gregos, mas eram provavelmente mais humildes ao
avaliarem seu estado moral.
A filosofia egípcia era
essencialmente dualista,
isto é, criam que todas as coisas funcionam por oposição. A geografia
influenciou-os, como de costume, mais do que a outros povos na adoção do
dualismo. As duas margens do Nilo, o alto e o baixo Egito, unificados na tiara
do faraó, o contraste entre o calor escaldante do luminoso dia e a noite fria
do deserto.
Mas é claro, a oposição
principal é aquela entre corpo e espírito, o mundo material e o dos deuses. E a
intermediação entre estas duas substâncias é feita através de uma terceira e
ainda uma quarta substâncias (ou propriedades semimateriais do espírito): Ka eBa.
Ba é a força
plástica, animalizada e praticamente material através da qual a alma interfere
no mundo dos vivos. É através de Ba
que a força vital, Ka, se relaciona
com o corpo. Os deuses também possuem Ba,
e é por isso que podem intervir
fisicamente no mundo dos vivos. Mas Ba
não é uma energia amorfa, senão uma personificação da energia vital, um duplo
ou molde do corpo, em alguns aspectos, e/ou uma projeção da personalidade e dos
atributos psíquicos, em outros.
O Ka, por outro lado, é a força vital em seu aspecto mais espiritual,
não tendo relação direta com o corpo, o que o torna dependente do Ba. Enquanto Ba parece ser mais um envoltório ou ectoplasma, Ka é a energia pura emanada do espírito.
Às vezes simploriamente traduzido como alma, a
etimologia do Ka guarda forte
parentesco com “touro”, palavra da qual se derivam outras como “força”. O Ka também não pode ser resumido como
alma pois não é um princípio
inteiramente individual, mas reúne famílias ou comunidades. O pai transmite o Ka ao filho, e o filho herda o Ka do pai.
Trata-se, portanto, um padrão de
energia que tipifica a atividade da alma.
O primeiro deus cria os
demais através da divisão ou doação de seu Ka.
E estes ajudam a formar o mundo também através da emanação de seus respectivos Ka. As vibrações das almas dos deuses
produzem algo como uma sinfonia cósmica com tons muito distintos, e por isso os
deuses têm papéis muito específicos na criação e manutenção do mundo.
Um homem morto geralmente
está destituído de Ka, mas pode ser
reunido novamente a ele através de rituais poderosos em que o espírito do morto
ganha substância anímica, estando a um passo da vida carnal. Um espírito cheio
de Ka pode, entre outras coisas,
aparecer aos vivos e afetar o mundo dos vivos.
Em resumo, Ka parece ser uma força de que o
espírito necessita para produzir fenômenos espirituais de natureza inteligente,
inclusive os ligados às leis e à ordem naturais, ao passo que Ba é um adensamento plasmático que
viabiliza fenômenos físicos como curas, maldições e transporte de objetos por
parte dos espíritos.
Porque criam firmemente
nesta capacidade dos espíritos e deuses de intervir no mundo dos vivos, os
egípcios tinham em altíssima conta o ato de orar.
Os próprios deuses são
instados a orar para entidades maiores, como o Sol. Os animais também oram,
apesar de que suas orações não são verbais.
Os egípcios oravam para
qualquer coisa não mundana, isto é, seus antepassados mortos, entidades
intermediárias entre os espíritos dos mortos e os deuses, aos deuses, ao
rei-deus (faraó). Era possível orar de pé, mas orações sinceras e intensas eram
feitas “sob um ou ambos os joelhos, em prostração (beijando o chão) e com os
braços geralmente estendidos, com as mãos para baixo ou para cima.”
As orações eram feitas com
grande frequência ao nascer do Sol, às vezes ao pôr do Sol, mais raramente em
outras ocasiões. Podiam ser ditas em voz alta ou apenas murmuradas, raramente
em silêncio. “A parte principal da oração era um hino de agradecimento ou, o
que era mais comum, um pedido.”
Quando a oração parecia não
ser suficiente os egípcios apelavam para a “visita aos deuses” ou para o “sono
reparador”.
A visita aos deuses é o
termo que a teologia egípcia empregava para procissões e peregrinações. Tanto
quanto qualquer povo antigo, os egípcios acreditavam radicalmente na
importância da procissão. A procissão tem duas funções fundamentais: 1-
reconhece que algum lugar é sagrado, ou ao menos mais sagrado do que os locais
próximos. 2- lembra ao fiel que a busca pelos deuses é uma viagem, uma jornada.
Neste segundo sentido pouca diferença faz o destino final da procissão, mas o
seu trajeto, a marcha em si enquanto movimento sacrificial de desapego pelos
interesses mundanos, pelo lar e pelo estilo de vida local.
O sono reparador ou
regenerador era uma técnica, tanto quanto uma crença da religiosidade egípcia. Os
egípcios eram bem cientes de que o contato com os deuses ocorre
preferencialmente através de sonhos. Sabiam também que a alma acessa, através
do simbolismo onírico, recessos de si mesma inatingíveis pela mente consciente.
Por isso empregavam amplamente uma variedade de técnicas do sono e dos sonhos.
A divisão mais básica dos sonhos se refere aos
espontâneos em face dos provocados. Provocar sonhos era uma arte que os
hierofantes (e apenas eles) dominavam com prática e teoria, sendo que a melhor
maneira de produzi-los era dormir em locais especiais, como templos, locais de
sacrifício e na proximidade de monumentos. Estes lugares e objetos estariam
impregnados da presença e emanação dos deuses a eles associados, alterando por
si sós o conteúdo dos sonhos.
A razão principal pela qual
um leigo buscava dormir em locais propícios aos sonhos divinatórios ou simbólicos
era de saúde. Assim, ou os doentes se dirigiam aos templos na busca de dormir
sob o manto dos deuses, ou os sacerdotes eram convidados às casas dos doentes
para ministrar o sono regenerador, através de encantos especiais que visavam
criar uma atmosfera na residência capaz de imitar o ambiente do templo. Em
ambos os casos a autoridade absoluta competia ao sacerdote. O homem leigo,
inclusive se poderoso, não ousava discordar ou sequer opinar em questões
espirituais.
Os egípcios observavam também que a técnicas de
sono reparador eram especialmente efetivas em casos de doenças e transtornos
mentais.
Passando da religiosidade
para a base metafísica e teológica da religião, é necessário considerar as
características atribuídas aos deuses.
Deuses egípcios são
caracterizados por:
·
Tempo: Todos
nascem, vivem seus dias divididos em horas e, possivelmente, morrem. Em alguns
sentidos são imortais (não envelhecem), mas como podem morrer em conflitos com
outros deuses não são jamais eternos e indestrutíveis. Como suas ações são
limitadas pelo tempo, é improvável que ajam ou estejam em muitos lugares no
mesmo instante.
·
Lugar: Deuses têm
corpo, apesar de poderem assumir vários corpos ou formas, e estão sujeitos às
leis normais de espacialidade como alto, baixo, dentro e fora.
·
Mudança. Nenhum
deus egípcio é imutável. Não apenas porque existem no tempo e espaço, mas
porque a existência para os egípcios é sempre regrada por ciclos de
transformações.
·
Substancialidade
metafórica: Ao contrário dos seres corpóreos que possuem uma substância
material e concreta, deuses são compostos por substância fluídica (termo do
próprio léxico) e podem emanar partes de suas características ou presença por
irradiação. “Este conceito de “fluido divino” só foi confirmado bastante
tardiamente”
·
Subclassificações:
o sexo, a função e outras características menos importantes, mas comumente
atribuídas aos deuses.
Naturalmente, há exceções
que não se enquadram neste perfil, como vimos ser o caso de Atum.
Em seu aspecto filosófico, a
religião se debruçava sobre os conceitos de segredo e mistério.
A princípio toda ciência
pode ser dita um segredo. Os segredos dos céus designam, assim, a astronomia,
enquanto a medicina trata dos segredos da saúde e da vida. Toda a natureza
encerra, portanto, os seus segredos, e o papel do homem é aos poucos retirar os
véus dos fenômenos revelando para si as leis naturais. Os grandes segredos, contudo, pertencem ao mundo dos mortos, e só podem ser vagamente conhecidos pelos
homens, através de símbolos.
A teoria do conhecimento
egípcia assumia, portanto, que as partes mais profundas da realidade são e
sempre serão inacessíveis ao intelecto humano, de maneira que em face das leis
maiores estamos absolutamente em dependência para com os deuses. Os mortos
descerram alguns segredos a mais em comparação com os sábios encarnados, mas
mesmo eles são ignorantes se comparados aos deuses, os detentores do
conhecimento sobre o funcionamento básico do mundo e sobre as questões mais
radicais da filosofia. Por isso pensadores egípcios não se dedicavam demais à
meditação sobre o sentido da vida ou a origem do universo. Tais questões eram
por definição assuntos destinados às mentes supremas, não às humanas.
Segundo a convenção típica
dos estudos de religião, mistérios é
o nome geralmente dado à taumaturgia, à necromancia, à adivinhação e à
filosofia pertinente a estes assuntos.Trata, portanto, essencialmente do
intercâmbio com os mortos e/ou com os deuses, de sua ação no mundo dos vivos,
de presságios e profecias e de um conhecimento ao menos parcialmente divino que
justifica tais atividades e ocorrências.
Os mistérios são, assim, a
parte espiritual dos segredos da
natureza, e os iniciados nos mistérios são os “cientistas dos fenômenos
psíquicos”.
Apesar da concepção geral, o
léxico de egiptologia afirma que os egípcios não acreditavam na reencarnação
como fenômeno corriqueiro ao qual todos os seres estariam sujeitos. A
reencarnação pode ocorrer, mas não é
uma fatalidade, de modo que algumas almas de fato jamais retornam à Terra, enquanto
outras só o poderiam fazer por intermédio da múmia.
Isto é consequência de uma
complexa e confusa concepção do além.
Para os egípcios o além não
pertencia ao não-ser, mas a uma dimensão do ser. A morte não era ameaça à
existência individual, e sim uma transposição do indivíduo do plano carnal para
o além, um mundo relativamente desconhecido, mas concreto, onde a vida podia
continuar.
O mundo egípcio não se
resumia, portanto, na realidade material. Havia também um céu (reino dos
deuses) e um submundo (reino dos mortos) que ainda não sendo inteiramente
físicos e identificáveis dentro do mundo material, podiam ser apreendidos de um
modo ou de outro (pela magia, pelos oráculos, pela razão...). Uma vez que os
três mundos respeitam os mesmos princípios de diferenciação e ordenação, não há
qualquer mudança de personalidade na passagem entre eles.
Mesmo assim, viver limitado
ao submundo não parecia algo desejável aos olhos egípcios, que tinham do além
uma impressão obscura, fúnebre e às vezes assombrada.Em consequência disso os
egípcios se esforçavam ao máximo para garantir que um lastro de sua existência
física, o corpo, pudesse perdurar, daí a “necessidade” de mumificação.
É o caso de se dizer que os
egípcios temiam a vida no além não porque fossem pessimistas quanto ao além em
si, pois havia dois mundos, um magnífico dos deuses e um obscuro no submundo.
Eles eram pessimistas quanto à avaliação de sua moralidade, julgando que o homem
comum praticamente nunca merece ascender ao mundo dos deuses após a morte,
sendo arrastado por seus pecados ao submundo.
Estranhamente, pelo que
podemos inferir do léxico, esse pessimismo moral não estimulava o moralismo,
como é comum ocorrer com as teologias que enfatizam o mal radical da alma
humana. Ao contrário, havia uma certa condolência e resignação quanto ao fato
de que o caráter humano é assediado por desejos indignos. Ao mesmo tempo que
tinham total consciência do pecado, do mal, da tentação, não se esforçavam
demasiadamente para evitá-los, aceitando ser essa a condição humana. A
filosofia moral dos egípcios era schopenhaueriana.
Como na Índia ou no Extremo
Oriente, o Lótus era para os egípcios o símbolo máximo da beleza e da
perfeição, trespassando por sua glória a mundanidade e trazendo aos homens uma
brisa espiritual. Nascida do lodo mais fétido e dos excrementos dos animais, ela
também carrega o simbolismo do renascimento, da alma que se desprende pura do
cadáver, e do espírito que retorna da morte.
Com isso encerramos esta
curtíssima exposição das curiosidades que mais nos atraíram neste fabuloso e
extenso manual. É sempre de lamentar que um tema tão instigante e frutífero
quanto a cultura da primeira grande civilização humana tenha sido depauperado
pelas areias do deserto e do tempo.
HELCK, W.; OTTO, E. Lexikon der Ägyptologie. 7Bd. Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1975.