segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A lucidez do pragmatismo americano


           O final do século XIX parecia trazer grande desesperança para os filósofos. Os especialistas e sábios dividiam-se entre a metafísica idealista ou romântica, esta última influenciada pelo darwinismo e dando origem ao vitalismo moderno, e, de outro, um completo niilismo marcado pela desesperança na razão e adoção de um materialismo cínico aos moldes de Nietzsche e Marx. Filosofia, num sentido estrito, não havia, pois ao lado desses modelos estéticos e elaborados com o maior rigor lógico carecia-se da postura imparcial necessária ao fazer filosófico.
         A fabulosa conquista da perspectiva transcendental de Kant havia se engessado em uma metafísica dogmática após a morte de Hegel, o último descendente de Kant a fazer filosofia ao invés de defendê-la como bandeira ideológica, e as primeiras brilhantes intuições de Nietzsche, que o levaram a questionar a cultura ocidental de uma forma nunca antes imaginada, acabaram não sendo levadas por ele mesmo à condição de proposição útil à renovação do pensamento; seu trabalho se resumiu lamentavelmente aos aspectos destrutivos do que ele mesmo definia “filosofar com o martelo” ou aos floreios poéticos que enchem os olhos do estudante, deixando na mesma o pesquisador.
         Neste cenário um tanto quanto negativo surge a filosofia vigorosa da nova cultura gestada entre Boston e Chicago, nas palavras de William James “um novo nome para uma velha forma de pensar”: o pragmatismo.

William James, considerado por muitos o primeiro grande pensador das Américas.

         A cultura americana, ou melhor dizendo, do nordeste dos Estados Unidos, no período pós a guerra civil era em todos os aspectos estuante. O país deu em cinquenta anos uma arrancada da periferia para o topo da economia mundial, o que não deixou de ser acompanhado por um crescimento tecnológico, científico e humanístico igualmente impressionante.  As universidades americanas se dividiam, em matéria de filosofia, entre a replicação do utilitarismo inglês e a replicação do idealismo germânico conforme propagado na Grã-Bretanha. Filosofia nacional era um termo inaplicável antes de 1880, embora já houvesse uma percepção geral de que um modo de pensar tipicamente americano estaria já presente nos inspiradores da República.
         William James foi um dos responsáveis pela materialização da forma arrojada de pensar que caracterizaria teoricamente o que na prática tão bons resultados produzia: o empreendedorismo, a liberdade, a representatividade e o espírito objetivo da cultura americana.
         Ninguém o teria feito melhor que James, pois poucos indivíduos reúnem o gênio à mais completa educação disponível em seu tempo, ambos necessários ao trabalho que viria a iniciar. Vindo de uma família de intelectuais espiritualistas, teve desde cedo contato com a alta cultura e com uma fé profunda na liberdade religiosa e intelectual. Seu pai, conhecido adepto do swedenborguianismo, transmitiu-lhe uma abertura inusitada para as questões metafísicas e espirituais; os estudos de filosofia feitos na Alemanha lhe deram segurança no trato dos mais difíceis problemas conceituais da época; sua formação como médico na tradição inglesa, finalmente, propiciou-lhe um senso empírico impecável. Mas não foi a nenhuma destas inclinações que ele dedicou a parte principal de suas reservas psíquicas, senão à psicologia, o campo desconhecido e controverso por excelência, que antes mesmo de Freud abarcava praticamente tudo o que há do esoterismo à anatomia cerebral, da filosofia sensualista à estética transcendental de Kant. James foi um dos poucos a assumir a estafante tarefa de pôr ordem a este amplo universo, e o que melhores resultados apresentou em língua inglesa.
         Pragmatismo ou empirismo radical era a forma como James definia a sua “velha forma de pensar”, nomes que também eram empregados por Peirce e Dewey, embora com conotações e agendas completamente distintas. O diferencial dessa filosofia era a intenção de escapar do problema dos pressupostos, um problema lógico gravíssimo que ronda toda a filosofia desde sempre, e que se apresentava especialmente incômodo na época, dividida entre as metafísicas e o ceticismo dogmáticos.
         Comicamente James propôs uma revolucionária solução após participar de uma discussão de acampamento a respeito de um esquilo. O grupo de amigos dividia-se em duas facções munidas de argumentos filosóficos com distintos graus de seriedade. O caso em questão: um colega que havia tentado encarar um esquilo preso a uma árvore. O esquilo corria sempre para o lado oposto, evitando o inconveniente rapaz, que tinha sempre o tronco entre ele e o animal, sem lograr alcançá-lo, apesar de circundar completamente a árvore O problema que surgiu entre os amigos foi o de saber se o rapaz circundou o esquilo. Um grupo afirmava que o esquilo, embora circundando a árvore, havia sido por sua vez circundado pelo rapaz como num par de círculos concêntricos. O segundo grupo afirmava que, estando o esquilo sempre do lado oposto ao do rapaz, este jamais teria sequer alcançado, quanto mais circundado o esquilo.
         Com a chegada do sábio o grupo o incumbiu de solucionar o enigma, e James partiu para a desambiguação. Há duas perspectivas simultaneamente corretas e contraditórias. A primeira estipula a noção de circundar como ato de estar a norte, depois a leste, depois a sul, depois a oeste e finalmente de novo ao norte do esquilo. Neste sentido ele foi circundado. A segunda perspectiva é a de ter o esquilo à sua frente, depois à direita, então por trás, à esquerda e finalmente de novo à frente. O rapaz não efetuou a circunvolução neste sentido. Ou seja, James transferiu o problema lógico para o da definição; naquele a contradição era insolúvel, neste é legítima, mas irrelevante.
         A grande ideia do pragmatismo é a de que a verdade não depende de uma essência metafísica ou fórmula lógica, e sim da perspectiva segundo a qual as ideias são formuladas. Trata-se de um relativismo, mas um muito diferente do que se pratica vulgarmente. Verdades contraditórias podem coexistir, sem que, ao final, as coisas sejam indiferentes.
         Na questão do esquilo os grupos se dividiam entre duas noções de espaço, uma absoluta, com o esquilo circundado, e uma subjetiva, com o esquilo mais astuto que seu perseguidor. James negou ambas as posições filosóficas clássicas e relativizou o espaço segundo os critérios ditados pelos “interesses” dos dois grupos.
O pragmatismo ganha daí o seu nome. A verdade é o que ela significa na prática, e por trás disto não há uma verdade absoluta, ao menos nenhuma que o homem possa captar. Com isto se satisfaz os céticos, pois nenhuma verdade é pressuposta dogmaticamente, sem que se percam as verdades instrumentais necessárias à vida, que é o problema do ceticismo irredutível. A verdade relativa do pragmatismo é, portanto, uma verdade válida, uma certeza conveniente que deve ser sustentada para critérios práticos.
Para sentir o peso dessa revolução vamos criar um cenário fictício.
O cético e o metafísico passaram séculos numa discussão a respeito de Deus.
Deus existe _ afirma o metafísico_ porque é um ser necessário. A ordem do mundo não funciona sem ele. Além disso, nossa vida moral também exige um juiz absoluto, sem o que o mal não seria compensado ou punido, e o bem seria a menos compensadora das opções.
O cético replica _ Nossa vida moral pode ser fruto de interesses egoísticos e ilusões sociais, neste caso a garantia da moral não faz qualquer sentido, pois ela mesma é efêmera. Nosso olhar sobre o cosmo também pode estar essencialmente errado, de modo que a lei e a ordem que enxergamos não signifique nada no universo em-si.
Antes que a discussão se alongue indefinidamente o pragmatista intervém. _ A verdade ou as verdades desta questão não podem ser definidas de imediato, pois tanto nossa razão quanto nossa experiência são limitados demais. Tudo o que podemos fazer é confiar numa perspectiva razoável, adotando-a por convicção, e modifica-la quando ela se mostrar infrutífera. Se Deus responde às nossas necessidades de um arquiteto cósmico, convém afirmar sua existência como verdadeira para critérios de compreensão do cosmo. Se duvidar da harmonia universal nos ajuda a eliminar a ingenuidade no campo científico, duvidemos dela e de qualquer outro princípio de segurança, e em suspendendo todas as noções metafísicas conseguimos, de fato, enxergar com novos e mais desanuviados olhos a realidade que se mostra. Vocês estão ambos corretos, pois a existência ou inexistência de Deus serve aos propósitos dos dois.
Isto é uma desonestidade! _ trovejam os velhos espíritos da filosofia em uníssono. _ Seu arbítrio nos deixou na mesma, e não inaugura critério algum para decidir o que é verdadeiro. A verdade é o que te convém em cada circunstância.
Não, não, meus amigos. O pragmatismo aceita como verdade o que funciona, não apenas o que convém aos distintos indivíduos. Vamos apenas tomar ambas as perspectivas como válidas enquanto não houver meio de bater o martelo, mas a experiência segue correndo, e vamos observar como a realidade responde às nossas verdades, qual delas produz mais e melhores frutos, quantas outras verdades se associam a cada partido e quantas pessoas encontram sentido nesta ou naquela perspectiva. Se em algum momento a vida decidir a controvérsia, um dos partidos deverá ser extinto. Assim como na ciência, a filosofia deve subordinar-se ao progresso e à refutação de suas teorias.
Mas então _ declaram novamente ambos _ a filosofia jaz devorada pela ciência.
Mais uma vez não, pois onde a ciência para a filosofia segue desinibida. O método é semelhante ao da ciência, mas o objeto radicalmente diverso, e assim também a avaliação. Uma verdade funcional pode não gerar qualquer efeito mensurável ou objetivo, mas apenas efeitos subjetivos, emocionais ou ideais. Uma pessoa diz que sua religião a conforta na dor, a outra jura que um ritual lhe deu coragem, um terceiro confirma que a arte transformou-lhe a vida. São alegações desprovidas de sentido para a ciência, mas que podemos qualificar filosoficamente como verdades válidas, funcionais. E o teste dessas verdades não será feito pela ciência, e sim em foro íntimo por cada consciência ao longo da vida.
De fato é uma visão diferente, _diz o metafísico_ mas prefiro continuar com a minha. Estou convicto de que a razão é capaz de desvendar verdades essenciais, não apenas estas funcionais. Acho que vocês dois estão errados.
Também admiro tua inovação, pragmatista, _completa o cético _ e permaneço, contudo, igualmente na dúvida metódica que me parece melhor do que esta aceitação de “verdades convenientes”.
Aí também o pragmatismo se diferencia do dogma e da dúvida, _conclui o pragmatista _ pois esta perspectiva não exclui as outras. Para que o ceticismo esteja correto, é preciso que todas as certezas sejam abolidas, e para que a metafísica esteja correta, é imprescindível que toda a dúvida seja superada. Nós temos ao mesmo tempo certeza e dúvida, mas ambas estão numa tal tensão que é impossível a realização completa de qualquer uma delas. Tanto o cético quanto o metafísico pode estar com a razão, numa proporção maior do que a nossa. O pragmatismo não é um espaço intermediário, ele se põe fora da questão, como juiz da luta, não como participante. Essa é uma posição confortável e privilegiada, mas nos impede de concorrer ao troféu da vitória. Nós regulamos o método, mas cada um segue suas intuições entre dúvidas e certezas. Um de vocês deve vencer, ou talvez ambos lutem eternamente, e eu estou aqui apenas para evitar que haja trapaças e confusões no embate.
***
Como se vê, a virada pragmatista traz interessantes elementos para a revitalização do pensamento em geral. Estando extremamente próximo da ciência, ajuda-nos a evitar uma filosofia que, pelo distanciamento dos dados positivos, se desmoralizasse em face da cultura estabelecida. Ao mesmo tempo, o pragmatismo oferece um tratamento sério e em primeira mão das questões metafísicas, éticas, psicológicas e religiosas, impedindo que o reducionismo científico e/ou materialista desqualifique a concretude destes aspectos da vida humana.
Embora tendo relativamente poucos adeptos declarados, foi uma das escolas de maior impacto sobre o pensamento do século XX em diante, com amplas consequências em pensadores como Popper e correntes como a analítica, que bebem da fonte pragmatista praticamente sem o reconhecer.
O pragmatismo é o substituto crítico, aperfeiçoado e aprofundado do positivismo, no sentido de se oferecer como filosofia compatível com a mentalidade científica. Os positivistas liberais, ecléticos e moderados se assemelham na íntegra à índole pragmatista. E com isto chegamos a conclusão de que um estudo mais atual do programa científico-filosófico de Kardec deveria se haver com o seu símile posterior, o pragmatismo.


Obs: Para conhecer o pragmatismo todas as obras de William James são recomendadas, mas as que tratam mais diretamente do método são: Pragmatism e The meaning of Truth.

2 comentários:

  1. Eu não conhecia quase nada do pragmatismo e tenho algumas dúvidas:

    Achei em alguns aspectos muito semelhantes com a corrente da filosofia analítica do círculo de Viena. Principalmente porque ele pretende reduzir problemas filosóficos a questões de linguagem. Qual seria a diferença entra as duas perspectivas?

    Qual seria exatamente a relação dessa perspectiva com o espiritismo? Por negar uma metafísica não colocaria o espiritismo em maus lençóis? Pois como você diz no post sobre Kant, o espiritismo sustenta uma metafísica das substâncias. (apesar de que geralmente os positivistas negam a perspectiva metafísica, e Kardec se coloca como positivista)

    Por fim, você naturalmente simplificou a perspectiva metafísica e cética a fim de melhor expôr o pragmatismo. Entretanto a própria metafísica não teria críticas oportunas para o pragmatismo? Você como estudioso de metafísica não poderia dar algumas?

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  2. Rafael,
    são muitas questões, tentarei responder a todas nos meus próximos textos aqui. Mas principalmente a diferença em relação à fil. analítica é que o pragmatismo coloca menos fé na semântica e mais na psicologia. Além disso não há necessariamente uma negação da metafísica (isto seria mais ceticismo). O pragmatismo ao estilo James é uma virada de perspectiva sobre o método e os valores da filosofia, mas, ao contrário da fil. analítica, a metafísica e/ou o ceticismo podem subsistir de forma apenas um pouco mais moderada.

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